sexta-feira, 11 de março de 2016

Juiz de direito: nem boca da lei, nem xerife

 
Gerivaldo Neiva *

 

A conjuntura política brasileira está repercutindo fortemente no Direito Brasileiro e caminhamos para um quadro de perigosa insegurança jurídica, do salve-se quem puder e que agora tudo é permitido em nome da realização da justiça e punição de corruptos ou desafetos políticos. Mais grave ainda é ver alguns juízes de direito, juristas e integrantes de outras carreiras jurídicas ocuparem redes sociais em defesa do indefensável juridicamente, justificando-se com alegações de “efetividade das decisões primeira instância” ou “fim da impunidade”. Ora, se a grande mídia estabeleceu o clima de disputa irracional, despida de qualquer debate político, aos juízes e juristas competem exatamente preservar o Direito e as conquistas históricas da humanidade no que diz respeito às garantias constitucionais.
 


Não questiono, evidentemente, o direito à liberdade de expressão de qualquer pessoa, inclusive dos juízes de direito, muito menos o direito de ocupar as redes sociais em defesa de seus pontos de vista. Longe de mim, portanto, defender a neutralidade e imparcialidade dos juízes diante de questões relevantes, sejam jurídicas ou políticas. O que defendo, e estou certo disso, é que aos juízes de direito cabe um papel fundamental nesta crise: a defesa intransigente da Constituição e do Estado de Direito.
 

Na verdade, a imparcialidade dos juízes é um sentimento que permeia muito forte no senso comum. Para a opinião púbica em geral, o juiz de direito é uma figura alheia à realidade, protegido por uma bolsa que não lhe permite emitir opiniões e que seus julgamentos são resultado de uma intepretação absolutamente neutra de interferências mundanas. O juiz é quase como um santo na terra. Talvez vindo de marte ou outro planeta para nos dizer, de forma mais imparcial possível, o direito de cada um.
 

Na doutrina, sob outro ângulo, também á assim que o juiz é visto. Antes, muito antes, seria apenas a “boca da lei”. Depois, passou a intérprete da lei e atualmente existe até quem defenda que o juiz pode até criar leis em seus julgamentos. Ora, sendo assim, o juiz deixou de ser a “boca da lei” para ser xerife e estabelecer padrões de comportamento, regras processuais ou espécies de punição? Não. Nem boca da lei simplesmente e nem xerife. O juiz, antes de tudo, tem o papel fundamental de defender a Constituição e, na interpretação e aplicação da lei, ter sempre como paradigma a principiologia e garantias constitucionais.
 

Não quero dizer, até aqui, que não seja bom o fato da imparcialidade do juiz. Seria até bom demais que o juiz fosse, de fato, imparcial em seus julgamentos. Nem digo que o juiz devesse ser neutro, pois neutralidade nos remete a um estado de letargia diante da lei e dos fatos que lhe são apresentados para julgamento, o que também não é bom. Aliás, a parte sempre espera que o juiz julgue seu caso com imparcialidade e que não aceite conversas de pé de ouvido com o advogado da parte contrária e, muito menos, que negocie suas sentenças ou que se deixe levar por paixões do cotidiano ou da opinião pública.
 



Na verdade, no senso comum, a lógica dos julgamentos é mais ou menos assim: o caso é contado oralmente a um advogado que transforma esta fala em linguagem escrita (petição inicial) e encaminha ao juiz; este texto é lido (deve, pelo menos) e compreendido pelo juiz, fazendo um giro desde o que foi dito ao advogado, o que foi escrito e, agora, o que foi compreendido; espera-se, sendo o caso, que o juiz defira um pedido liminar ou de antecipação da tutela se ficar convencido das alegações e das provas apresentadas; caso contrário, o juiz deverá chamar a outra parte ao processo par que faça o mesmo périplo, ou seja, conte sua história a um advogado (contestação) e este transforme esta fala em linguagem escrita e encaminhe ao juiz. O que se pretendo, daí pra frente, é o que o juiz, de sua vez, tendo compreendido as falas de cada um, de forma absolutamente imparcial, permita que as partes produzam as provas e, ao final, anuncie um vencedor da demanda. Na verdade, a lógica do processo é mais ou menos assim compreendida por quem se submete ao judiciário para dirimir uma demanda.
 

Neste sentido, é de se estranhar quando o juiz, de vontade sua, determina a produção de provas ou diligências. Ora, isto não é tarefa das partes? Além disso, fica muito estranho quando o juiz assume uma postura de inquisidor em busca da verdade. Ora, basta lembrar que a petição inicial é o resultado da tradução da fala da parte em linguagem escrita e revestida dos contornos judiciais e que a prova testemunhal é apenas um relato de um momento passado e também contaminado pela compreensão da pessoa que presenciou e que agora faz seu relato ao juiz. É possível, portanto, falar em “busca da verdade”. Qual a verdade? Aquela que o juiz quer que seja ou aquela que as partes querem. No fim, é preciso ter consciência que a verdade simplesmente não é.
 

Estranha-se muito também quando o juiz mantém firmemente um entendimento sobre determinadas questões e antecipa seu julgamento sem estudar com cuidado os autos e ouvir atentamente as partes. Muitos juízes procuram, como se decidir fosse simplesmente escolher, uma decisão que ele entende “justa” para aquele caso e, depois disso, procura uma roupagem jurídica para o caso. Ora, mas o que define para o juiz o que seja justo ou injusto. Sua consciência? Será que os juízes, de fato, imaginam que suas escolhas são fruto da sua pura consciência ou definitivamente contaminadas por sua compreensão e pré-juízos? Como questionava Warat, seriam as sogras dos juízes a fonte do direito?
Neste sentido, nenhum juiz é neutro e, muito menos, imparcial. 


Todos os juízes são o resultado da sua formação familiar, comunitária, acadêmica, cultura e intelectual. Sendo assim, tem preferências por gênero musical, esportes, autores, vícios, sexo, política etc. Também não se quer dizer que sejam definitivas essas preferências, pois o conhecimento pode mudar a compreensão e a forma de ver o mundo. Assim, por exemplo, um curso de filosofia do direito pode mudar a compreensão de um juiz sobre o papel do próprio direito na sociedade moderna e influenciar em suas decisões sobre questões de gênero, por exemplo. Da mesma forma, um curso sobre Direitos Humanos pode mudar radicalmente a compreensão de um juiz sobre a questão da pena privativa de liberdade e um curso de sociologia pode mudar a forma de se lidar com problemas sociais, seja o movimento dos sem-terra ou a delinquência comum.
 

Quem me leu até aqui deve agora se perguntar: ora, e qual a garantia que o cidadão tem ao levar seu caso à apreciação de um juiz? Se a sentença depende da escolha do juiz, significa que o julgamento depende do resultado do futebol ou da música que o juiz estaria ouvindo no momento em que decide? Se o juiz não é imparcial, o que me garante que a decisão judicial não será exatamente o que pensa o juiz, independentemente do que diz a lei ou das decisões dos tribunais superiores? Se o juiz decide de acordo com sua compreensão do que seja o justo, o que me garante que o decreto de prisão preventiva não seja apenas resultado de preconceitos do juiz?
 

A resposta a tantas indagações nos remete exatamente ao cerne da questão: qual o papel do juiz no Direito contemporâneo? É certo que o juiz será sempre um ser humano, terráqueo e não é possível, como em um passe de mágica, que se afaste dos fatos para julgá-los de forma absolutamente imparcial. Neste caso, como tem defendido Lenio Streck há muito tempo, seria necessário a construção de uma certa “teoria da decisão” que sempre levasse os juízes à mesma decisão sobre os mesmos fatos, sempre norteado pela Constituição e com a garantia de que essa decisão pudesse ser aferida constitucionalmente por um tribunal superior.
 

Por enquanto, na falta dessa “teoria da decisão”, o norte que os juízes não podem se afastar é a Constituição. Portanto, garantias constitucionais devem ser, na ordem atual, o vetor máximo e definitivo para as decisões judiciais. Nesta esteira, os princípios construídos ao longo da história da humanidade devem ser seguidos com o rigor que a própria história impõe. Logo, não há como se pensar em mitigação ou relativização dos princípios da dignidade da pessoa humana, da presunção da inocência, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, inviolabilidade do domicílio etc. Assim, entre a vontade do juiz e a decisão, deverá sempre haver o filtro constitucional para moldar essa decisão. Em consequência, entre a vontade desenfreada de punir do juiz e o criminoso, deve-se sempre obedecer as garantias constitucionais, sob pena de retorno à barbárie e ao estado de exceção.


* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e penitenciária (CNPCP).


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