quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Muito além do mundo familiar



Kátia Marko

Ao romperem paredes do ambiente conjugal, seus jogos de isolamento e culpa, comunidades instigam a viver sem medo de ser

Muita coisa aconteceu desde a nossa última coluna Outro Viver. Uma profunda crise me impossibilitou de dar continuidade a este espaço. Alguns escritores criaram suas maiores obras em crise existencial. Eu não consigo falar sobre a comunidade em que moro e o nosso jeito de viver se não sinto o que escrevo. 


O mês de dezembro foi bastante movimentado na Comunidade Osho Rachana. Em meio a todo um processo de criação da Gincana do Namastê, que acontece há 11 anos no final de ano, reunindo quase 200 pessoas, as reuniões da comunidade mexeram intensamente com as relações amorosas. A tradição nos ensina desde cedo que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Como decidimos não viver no senso comum, os problemas de relacionamento são expostos na busca de ajuda. Sempre achamos que nossos problemas são únicos ou muito maiores do que dos outros. Mas quando compartilhamos, vemos que nossos padrões de pai e mãe são bem parecidos. E fica bem mais fácil ultrapassar os limites com o apoio de outros olhares.

Mesmo separada há dez meses, passei por um desses confrontos de casais com meu ex-companheiro. Não há como dizer que não existem ressentimentos após uma relação, seja longa ou curta. Mas a diferença de terminar um relacionamento, morando em uma comunidade como a que vivo é a possibilidade de se lidar com a questão e não colocar pra debaixo do tapete. Ter o apoio necessário para viver a dor do fim sem entrar em depressão. O que se vê normalmente são mágoas arrastadas anos a fio, pessoas que nunca mais conseguem amar, jogos eternos de culpa.

Em Poder e Prazer – O livro negro da família, do amor e do sexo, José Ângelo Gaiarsa diz que a convenção matrimonial permite, justifica e me estimula a transformar minhas necessidades e carências pessoais em dever do outro — ou seja, cobrar ou exigir dele, como meu direito, aquilo de que preciso ou sinto falta.

“Não somos tudo um para o outro? Não temos que ser tudo? Como os deveres matrimoniais – afora a fidelidade – são bastante indeterminados, cada um põe neles o que lhe faz falta e cobra do outro, quer ele tenha, quer não tenha, o que ou com o que pagar. O matrimônio consagra o direito de exigir e abusar do outro sem que ele possa se defender – e com a plena aprovação social.”

Pode parecer estranho, mas mesmo vivendo com um grupo que busca o preenchimento além da relação do casal, estes padrões se repetem. Num dos confrontos ouvimos a frase ”não quero mais viver isolado”. Isso me remeteu à grande dificuldade que temos de partilhar, de sermos inteiros, seja com nossa luz ou nossa sombra. É muito difícil admitir que não somos tão legais. Não queremos que enxerguem nosso egoísmo, nossa inveja, nossa raiva, nossos medos, nossa fragilidade. Com isso, também escondemos o nosso melhor. Vivemos na aparência.

Quando decidi viver em uma comunidade que tem como norte o autoconhecimento, sabia que não seria simples e teria que mexer profundamente como minha acomodação. Arrisquei e não me arrependo. O mestre indiano Osho definiu estas comunas como sociedades alternativas. “Um pequeno oásis no deserto do mundo, na qual a vida é vivida como uma gestalt, uma visão, um objetivo totalmente diferente, onde ela é vivida com propósito e significado, em alerta, consciente, desperta. Onde ela não é apenas acidental, onde começa a se tornar mais e mais um crescimento numa determinada direção, a um determinado destino, onde a vida não é mais um vagar sem destino. Um pequeno riacho não pode alcançar o oceano. Ele se perderá em algum lugar, está tão distante… Ele se perderá em algum deserto, em alguma terra árida. Mas se vários pequenos riachos se reunirem em um, tornam-se um Ganges. Então ele pode alcançar o oceano…”

Em julho de 1988, em plena ditadura do general Pinochet, 300 intelectuais e artistas participaram de “Chile Cria”, um encontro internacional de arte, ciência e cultura pela democracia no Chile. Em nome de todos os convidados, Eduardo Galeano leu o discurso de inauguração, reproduzido no livro Nós dizemos Não. Em contextos bem diversos, este texto ainda é bastante atual e diz muito sobre o que estamos criando em nossa comuna: “Dizemos não ao elogio do dinheiro e da morte. Dizemos não a um sistema que põe preço nas coisas e nas pessoas, onde quem mais tem é quem mais vale; (…) nós dizemos não a um sistema que nega comida e nega amor, que condena muitos à fome de comida e muitos mais à fome de abraços. Dizemos não à mentira. Essa cultura mentirosa que, grotescamente, especula com o amor humano para arrancar-lhe mais-valia. (…) Premiam a nossa obediência, castigam a nossa inteligência e desalentam a nossa energia criadora. Temos direito ao eco, não à voz, e os que mandam elogiam nosso talento de papagaios. Nós dizemos não: nós nos negamos a aceitar esta mediocridade como destino. Nós dizemos não ao medo. Não ao medo de dizer, ao medo de fazer, ao medo de ser.”

E dizendo não ao triste encanto do desencanto, dizemos sim ao que realmente importa: à vida, com todas as consequências de ter a coragem de seguir o que faz meu coração vibrar. Em 2013, seguiremos juntos e espero que, como declarou Charles Chaplin em “O Último Discurso”, a alma do homem ganhe asas e afinal comece a voar. E que todos “erguemos os olhos”!

Outras Palavras

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