sábado, 12 de março de 2016

O Brasil Vertical e Ético



Dante Donatelli

Um país como o nosso, autoritário e profundamente arraigado a uma hierarquia social na qual a mobilidade traz medo, angústia e conflito, as questões éticas se tornam subterfúgio e não preocupação.

 
A sanha conservadora nascida no senso comum sempre ataca o ser brasileiro de aético, imoral, preguiçoso e pactuado com a malandragem, no pior sentido da palavra. Estas certezas professadas, muito mais pela ignorância da nossa história combinada a um profundo desprezo antropológico, reforçam os estereótipos e se deleitam em clichês, que se tornam argumentos de má qualidade.
 


Joaquim Nabuco, lá nos fins do século XIX, afirmava em Minha Formação que a escravidão estava entranhada na História do Brasil, e não se dissolveria ao dissabor das elites ou dos burocratas e plutocratas de plantão. Podemos afirmar que Nabuco não era um esquerdista, sem medo de errar. Esta nação, entranhada na lógica escravista, traria dissabores para a nossa formação, o principal deles é ter legado uma sociedade profundamente hierarquizada e medrosa de qualquer mobilidade.

Se o gênio de Nabuco percebeu o que seríamos, Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala e em Sobrados e Mocambos, aponta o que, de fato, nos tornamos: uma sociedade marcada pela hierarquia rígida e inamovível. Fundamos e edificamos o Brasil através de uma ética de princípios claros e profundamente bem demarcados, na qual cabe a cada indivíduo, a cada sujeito em nossa sociedade, um determinado lugar, seja na coisa pública, seja na coisa privada.

Freyre nos fez ver que a sociedade brasileira é, por definição, um lugar onde as novidades sociais não são de bom alvitre, pois os espaços formativos, simbólicos ou não, já trazem em si, a priori, o papel que cada sujeito deve ocupar na sociedade, seja na rua, no trabalho, nas instituições ou na família.

Exemplo desta realidade pode ser visto no decorrer da nossa história republicana com a séria dificuldade de se construir uma sociedade cidadão, entre 1889 e 1982, os primeiros cem anos de república, fomos compelidos por um Estado autoritário com diferentes facetas, desde a República Velha e sua oligarquia decrépita, oportunista e truculenta passando pelo Estado Novo e a Ditadura Militar. Na esfera privada, sugiro a leitura das memórias de Pedro Nava, os seus cinco volumes, exemplo cabal do maior memorialista brasileiro, em especial no terceiro volume, Chão de Ferro as incontáveis e magníficas passagens onde Nava, com maestria, narra a iniciação sexual dos jovens brancos brasileiros, nas décadas de 1910 e 1920, pelas negras, domésticas ou não, e como tais práticas repetiam o mesmo narrado por Freyre em Casa Grande e Senzala quatro séculos antes. Em Nava também é possível observar como a família patriarcal brasileira se organizava em uma rígida hierarquia de poderes e papeis bem definidos.

O que depreendemos desta certeza freryana, e corroborada pela maioria dos nossos antropólogos, sociólogos e historiadores é que nações nascidas desta herança escravista e altamente hierarquizadas são por definição autoritárias. Sociedades autoritárias, e aqui recomendo a leitura de Max Webber A ética protestante e o espírito do capitalismo e de Norbert Elias A Sociedade dos Indivíduos, grupamentos sociais autoritários tendem sempre a uma construção ética muito bem delimitada como forma de preservação do status quo reinante e, por conseguinte do modelo hierárquico vigente. Qualquer ação fora do script estabelecido, se recrudesci o autoritarismo reinante e a violência.

Em outras palavras, sociedades autoritárias, como a brasileira, se notabilizam pela construção de modelos éticos bem definidos, quando Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil atesta que o catolicismo aqui é todo ele formado de particularidades, um híbrido similar a miscigenação racial, pensava exatamente em como as elites brasileiras se serviram do aparato moral e ético da igreja para legitimar as suas agruras, aventuras e desventuras sociais e pessoais.

As validações das regras morais e éticas serviam para o outro, e não para mim e os meus, sejam eles na esfera pública, sejam eles na esfera privada. Para o outro o rigor da lei, para os parentes e amigos, o refresco da interpretação da lei. Esta lógica nascida entre nós como meio de preservação de interesses e vantagens para indivíduos, famílias ou grupos se presta como meio legítimo de manutenção da hierarquia posta e consumada, em um evidente ato de autoritárismo. Eticamente pensamos que deve sempre haver dois pesos e duas medidas, uma tolerável e a outra condenável. É assim quando é com o meu filho ou meu pai, meus aliados é assim, na medida contrária, quando é com os meus inimigos. Dúvidas, perceba como parte expressiva dos ferrenhos defensores de uma ética pública hoje separam o meu interesse, do interesse dos outros. Lula é ladrão, mas Alckmin e Cunha são vestais.

A fantasia do senso comum que fez nascer o malandro que nada mais é do que o negro, o mulato e o pobre construindo meios de atalho e burla das regras “morais e éticas” estatuídas pela sociedade autoritária e hierarquizada, o que no alto é sinal de inteligência, na base da pirâmide é sacanagem de vagabundo. O senso comum não cansa de repetir que na base há gente esperta e predisposta a tirar vantagem da sociedade e dos laureados e bacharéis no alto da pirâmide. O malandro é por definição o cidadão de segunda classe. Bom exemplo, o aparato policial mata o substrato social, o malandro que pode ser negro ou mulato, mas sempre pobre sem que haja comoção, mas a morte de um, um único sujeito do topo da hierarquia é motivo de consternação, medo e revolta.

O rompimento deste histórico lastro escravista, de hierarquia sólida advinda do autoritarismo, com distribuição de renda, acesso à educação e a bens e serviços por parte expressiva da base social produz o que hoje ouvimos, vemos e sentimos. Há um medo claro e resoluto de rompimento desta estrutura hierárquica profunda e autoritária, o alto da pirâmide faz ranger, vocifera e esperneia, os mais equilibrados falam ainda em democracia, os realistas em volta da velha ditadura militar para que tudo volte ao seu devido lugar de sempre.

Os argumentos da degenerescência ética da sociedade brasileira equivale a percepção escandalizada, de que esta gentinha faz o mesmo que nós fazemos, só que com outros fins. Em suma, nossa elite é senhora de uma ética, revelada e exposta por seus próprios pares, Freyre em especial, perpassada de nuances e possibilidades tergiversativas, na qual público e privado sempre se confundiam, causa espécie os níveis atuais de indignação diante do fato de que há uma compressão na pirâmide social e um risco efetivo de comprometimento da hierarquia acreditada e louvada. A saber, quem conhece do que é feita a elite brasileira e a sua classe média urbana, falar em ética e moralidade é quase um acinte de comicidade, se não fosse, em verdade, puro cinismo.


Dante Donatelli - "Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida" Bernardo Soares, citado por José Saramago em meio a reflexão sobre a poética de Fernando Pessoa..
 

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