terça-feira, 24 de novembro de 2015

Economia: o mito das “decisões erradas”




Felipe Calabrez
Conservadores e mídia insistem que problemas do país decorrem de “erros técnicos” ou “pedaladas”. É truque rasteiro para evitar debate sobre sentido social das políticas econômicas

Uma leitura mais atenta dos grandes jornais diários revela que, apesar de alguns colunistas dissonantes, há um fio condutor que ilumina as interpretações sobre nossa “crise econômica” – compartilhado, aliás, pelos âncoras dos principais telejornais. De acordo com essa leitura geral, os equívocos contínuos contidos nas decisões da presidente da República explicam o conjunto de mazelas que nos acometem. 


Entre estas, estão: a) retração do investimento produtivo privado; b) baixo crescimento do PIB, que se converteu em recessão econômica; c) aumento insustentável do endividamento público; d) rebaixamento da “nota” de crédito do país (que baliza o custo de acesso ao crédito externo); e) pressões inflacionárias, e, por fim, f) altíssima taxa de juros, aquilo que sempre aparece como “consequência” de problemas indesejáveis (turbulências internacionais ou erros do presidente, a depender daquilo que se quer defender ou atacar), mas jamais como “causa” de problema algum. Todos esses seis elementos seriam, de acordo com o discurso hegemônico, frutos de erros cometidos por Dilma Roussef em seu primeiro mandato. “Onde a Civilização acaba” e “Fim dos Tempos” foram alguns dos títulos dos colunistas econômicos mais catastrofistas a acusar a presidente de acabar com o país1.

Por vezes é preciso dizer o óbvio: Quando se acusa um presidente e seu governo por “erros”, o que se tem na verdade é uma disputa, algo inerente à política. Em um primeiro plano, a disputa é mais visível. Trata-se da disputa político-partidária. No que diz respeito à condução da política econômica, acusa-se a presidente por sua teimosia, intransigência, falta de diálogo etc. Apresenta-se a solução óbvia: Sua substituição, mediante impeachment ou convocação de novas eleições, ideias sustentadas pelo escândalo de corrupção envolvendo seu partido e pelo absoluto enfraquecimento da base de apoio que lhe permitiria algum grau de governabilidade. O que tem embasado a tese do impeachment são as chamadas “pedaladas fiscais”, elemento que nos conecta a um segundo plano da disputa, menos evidente. Estão em disputa interesses, visões de mundo, valores e ideologias econômicas que orientam a busca por um projeto de país (ou a ausência dele) e balizam as decisões tomadas pelo governo.

Na enfadonha narrativa construída nos jornais diários, os “erros da presidente”, peça central da argumentação, deram-se em torno da política econômica adotada. Segundo esse discurso, haveria uma política econômica correta e responsável, e uma alternativa incorreta, equivocada e irresponsável. Esta última teria sido a adotada pela presidente e consistiria, principalmente, no descuido com as contas públicas, algo que se materializa em repasses do Tesouro Nacional para bancos públicos, principalmente via créditos subsidiados ao BNDES, excesso de gastos em programas sociais e programas chamados de “eleitoreiros” – notadamente, o Minha Casa Minha Vida (MCMV).

Não estou afirmando – convém esclarecer desde logo – que não se possa imputar erros às decisões de política econômica tomadas por Dilma em seu primeiro mandato. Parece plausível concluir que houve um conjunto de equívocos, de medidas mal calibradas e que não surtiram os efeitos calculados. Um exemplo é a política de desonerações tributárias setoriais e mal planejadas anunciadas pelo ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega. Tais medidas, alegava-se na época, estimulariam os empresários de certos setores a ampliar seus investimentos, funcionando como uma espécie de política anticíclica. O esforço fracassou: os setores beneficiados não “reagiram ao estímulo” do governo, não houve investimento e a arrecadação ficou muito prejudicada.

Este texto não pretende afirmar, também, que não haja uma dimensão técnica em política econômica. Evidentemente, é necessária uma expertise que embase as decisões – ou seja, elas precisam apoiar-se em um conjunto de saberes testados e validados que permitam antever quais as medidas mais adequadas para atingir determinados fins. O ponto aqui é o mesmo levantado por Gabriel Cohn a respeito da posição de Max Weber: “Deve-se distinguir claramente, no entanto, entre a ciência econômica no sentido estrito do termo, como disciplina preocupada com o uso mais adequado de meios específicos para a obtenção de fins também específicos num contexto de escassez, da política propriamente dita, que envolve decisões baseadas em valores fundamentais e inquestionados”. (COHN, 2008, p.19).

Parece, no entanto, que o que está verdadeiramente em jogo não diz respeito a “equívocos de política econômica”, ainda que eles possam ter ocorrido. O ponto que levanto é o seguinte: Acertadas ou equivocadas – de um ponto de vista de sua adequação aos fins almejados – e bem ou mal sucedidas – do ponto de vista de seus resultados observados ex-post – as medidas do primeiro governo Dilma desencadearam uma forte reação por parte de um grupo de economistas de oposição. Assim, fortaleceu-se uma antiga narrativa com novos ingredientes. As seis “mazelas” que o país enfrenta – descritas acima – seriam decorrentes do pensamento heterodoxo e desenvolvimentista que orientou Dilma e sua equipe econômica no primeiro mandato. De acordo com essa visão, heterodoxia e desenvolvimentismo seriam ideologias, algo que encobre a visão correta da realidade. Seriam, portanto, equívocos.

Reconstrói-se assim um discurso simplista, que personaliza os problemas e ignora um conjunto de variáveis explicativas. Abre-se mão da qualidade analítica a fim de construir um inimigo. Para citar um exemplo: a existência de uma “economia internacional globalizada” e seus capitais voláteis eram um argumento mobilizado para explicar as crises da década de 1990 e inocentar o então presidente; agora, passaram a não explicar nada. Os ciclos econômicos, fartamente discutidos pelos clássicos da economia política, também sumira de cena. Retomou-se a velha estratégia de construir um inimigo que abarca em si próprio tudo aquilo que se quer combater: A heterodoxia e o desenvolvimentismo, doença infantil da esquerda, teriam desviado o país de seu rumo por conta de suas políticas equivocadas e intervencionistas. E isto é sustentado a todo tempo, pouco importa que a história nos revele que quem agigantou o Estado e produziu um brutal endividamento (externo) tenha sido a direita, com os militares e com expresso apoio dos empresários nacionais. Importa menos ainda que a explosão da dívida pública interna tenha ocorrido ao longo dos anos 1990, a partir do Plano Real.

Há portanto, por trás da disputa mais cotidiana e comezinha da política partidária, uma batalha em torno de projetos, de visões sobre qual o papel do Estado na economia. Há, sobretudo, uma batalha que envolve valores e prioridades. As chamadas “pedaladas fiscais” são um exemplo de como, olhado de perto, “erro” e “acerto” também se confundem com valores e prioridades. Acusa-se o governo federal de ter atrasado repasses de verbas para outros entes, a fim de maquiar as contas públicas. Isso ocorreu em relação à Caixa Econômica Federal (CEF), órgão responsável por efetuar os repasses aos programas sociais do governo, notadamente o Bolsa Família. Diante disso, a CEF efetuou os pagamentos aos beneficiários do programa antes mesmo de ter recebido os recursos do Tesouro para esse fim, o que poderia configurar operação de empréstimo entre entes da administração pública, suscetível de ser enquadrada como crime de responsabilidade fiscal. Ora, em que pese a falta de transparência contida na medida de adiar o pagamento de uma despesa para melhorar artificialmente o resultado primário das contas públicas, cabe perguntar: a quem interessa mais diretamente o resultado primário das contas públicas?

O debate sobre as “pedaladas fiscais” elege como problema de primeira gravidade a “operação de crédito”, isto é, o repasse da CEF aos beneficiários antes do recebimento do dinheiro pelo Tesouro. É este o crime que o Tribunal de Contas da União (TCU) imputa ao governo. A quem interessa enquadrar o governo no crime de responsabilidade fiscal? Dentro da hierarquia de valores contida nesse debate, um eventual “não pagamento” do Bolsa Família a seus beneficiários tem peso zero. Nesse debate, o mais importante de tudo é o resultado primário das contas do governo, para onde os analistas de risco e gestores do dinheiro graúdo olham incessantemente. E é a narrativa destes últimos que encontra acolhida em todos os grandes jornais.

O exemplo acima, embora controverso, carrega aquilo que seria comum nas discussões mais gerais sobre política econômica. Por trás das visões sobre política “errada” e “correta”, há implícita uma definição de prioridades e valores. Isto fica claro mais por conta do que os discursos omitem do que daquilo que revelam. Os “economistas de mercado”, sempre chamados a dar seus pareceres em jornais e telejornais, falam sempre em excesso de gastos, mas costumam omitir a chamada componente financeira desses gastos – isto é, a conta de juros. Esta, quando mencionada, é sempre apresentada como consequência do excesso de gastos, nunca como parte dele. O próprio orçamento – um assunto eminentemente político – aparece nos discursos como uma questão técnica e de “responsabilidade”. Por trás de uma discussão fiscalista está, sem dúvida, uma questão de projeto de país e de prioridades a serem atendidas. E isso passa também pela questão do remanejamento do orçamento público.

E é essa a discussão que deveria ser feita e que não encontramos nos velhos jornais. O caráter político do orçamento sugere que “ajuste fiscal” é um termo vazio se não explicitarmos da onde serão cortados recursos orçamentários. Quem arcará com as perdas? A escolha entre reduzir a renda do trabalhador, os benefícios do desempregado ou os retornos de capital dos grandes aplicadores em títulos públicos é uma decisão política e exige correlação de forças favorável. Tal correlação de forças passa também pela batalha das idéias, que está sendo perdida para aqueles que acham que nosso incipiente estado de bem estar-social já é exagerado e não cabe no PIB. Parece o momento perfeito para estes últimos colarem suas narrativas aos escândalos de corrupção que alimentam diariamente os jornais. Procura-se casar um discurso econômico sobre erros e acertos econômicos ao discurso midiático da corrupção, que gira em torno de culpados e inocentes e é, quase sempre, atribuída a um partido político. Assim o debate se torna tecnicista e partidarizado, mas não politizado.

Diante disso, cumpre fazer o debate que não é feito: Não se trata de uma discussão sobre macroeconomia ou sobre erros e acertos do presidente de turno. Trata-se de uma discussão sobre projetos de país, sobre poder e privilégios. Trata-se de uma discussão sobre perdas e ganhos. A quem interessa produzir desemprego? A quem interessa o superávit primário? Por que déficit primário é um problema grave e estagnação da renda do trabalhador não é? Quem pagará pelo “ajuste”? É importante que os valores e objetivos de longo prazo em questão estejam explícitos, e não mascarados pelo paupérrimo debate cotidiano sobre responsabilidade, superávit primário e outras bobagens.


Bibliografia citada:

COHN, Gabriel, org, Weber. Sociologia, São Paulo, Editora Ática, 2008.

1Alexandre Schwartsman (FSP, 14/10/2015) e Vinícius Torres Freire (FSP, 15/10/2015) respectivamente.

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