sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O código de leis como assento: O círculo de giz caucasiano, de Brecht


Estela Santos

O círculo de giz caucasiano, do dramaturgo alemão Bertold Brecht, escrito em 1944, é uma obra-prima do teatro épico. A primeira montagem brasileira da peça foi feita em 1963, a partir de uma tradução de Manuel Bandeira que conserva a força do texto brechtiano.

Bertolt Brecht

Breve introdução de O círculo de giz caucasiano

A peça nasceu a partir de uma pergunta do dramaturgo, ao final da Segunda Guerra Mundial, no exílio americano: a quem devem caber as coisas? É para responder esta pergunta universal que ele concebe a peça.

O círculo de giz caucasiano, ambientado na União Soviética, inicia com o encontro, num vale do Cáucaso devastado pela Segunda Guerra Mundial, de duas comunidades que pretendem recomeçar suas vidas após a destruição, comunidades estas que disputam a posse de um vale. É alegado pelos antigos donos do local que o vale é deles por tradição, que, de acordo com a a lei, o vale a eles pertencem. Já a outra comunidade que deseja repartir o vale apresenta propostas e projetos para que a terra seja, de fato, bem aproveitada; alegam que as leis devem ser revistas e que a tradição precisa dar lugar ao bom do vale. Por fim, os primeiros são convencidos e, para comemorar, um menestrel conta uma “antiga lenda chinesa”, com determinadas modificações para exemplificar a ação; é uma espécie de “peça dentro da peça”.


É parte de Brecht que todo teatro deve não só divertir, mas também ensinar. Suas peças buscavam transmitir verdades sem abrir mão do valor literário, da estética literária. Percebemos esta questão claramente na “peça dentro da peça”, que trata de Miguel, filho de um líder político, o Governador.


Em um golpe político, o herdeiro dos bens do Governador é esquecido por sua mãe durante uma fuga, golpe que, inclusive, levou o líder político a ser decapitado. No entanto, a serva Grucha é tomada pela bondade e resolve cuidar do menino; fugiu com ele para as montanhas, para casa de seu irmão. A pobre carrega a criança durante um longo caminho, neste percurso é perseguida por couraceiros do novo governante, este quer o herdeiro morto; além disso, Grucha passa por inúmeras reflexões a cerca do que acarretou seu ato de bondade. Vale destacar que, em sua cidade, Grucha havia noivado com Simão, um soldado que foi para guerra, e prometeu esperá-lo. Mas a moça, depois da primavera, já não podia ficar com seu irmão e, além disso, não conseguia mais suportar tantas perseguições; a partir de então, Grucha percebeu que o menino precisava de um teto, e em função disso se casa. Ao voltar, Simão descobre que Grucha está casada e que tem “um filho”; chateia-se com isso, não espera explicações e a abandona.


Tempos depois há outro golpe. Então, os antigos líderes políticos voltam ao poder e a mulher do falecido Governador só poderia ter acesso aos bens do marido se estivesse com a posse da criança; a partir daí, surgem couraceiros querendo levar o menino para a mãe verdadeira. Percebe-se que há pouco (ou nenhum) interesse na criança e sua saúde por parte da mãe biológica, o que importa para ela (que largou seu filho) é a herança.


O Juiz e o código de leis como assento


É o personagem Azdak que decide quem fica com Miguel. Azdak não era um juiz, era um escrivão da aldeia, maltrapilho e bêbado, que certo dia, sem ter ideia do que fazia, deu asilo a um fugitivo disfarçado de mendigo, o Grão-duque, um líder absoluto antes do primeiro golpe, que volta a comandar no segundo. O homem resolve se entregar, uma espécie de autopunição por ter dado asilo e, portanto, salvar a vida do antigo governante. No entanto, ao longo da conversa mantida com os couraceiros, pouco intelectuais, o escrivão demonstra ter noções jurídicas e conhecer a história da aldeia, além de possuir ideias semelhantes dos atuais governantes da comunidade, assim acaba (de forma um tanto cômica) por ser escolhido para representar o Tribunal: torna-se o Juiz.


Durante um período de dois anos, Azdak julga o povo. Em um primeiro momento parece que ele tende a beneficiar o proletariado; no entanto, com o tempo, essa característica dá lugar a uma conduta imprevisível, destaca principalmente quando Azdak utiliza o código de leis como assento. Em determinado momento Azdak ordena: “Vá me buscar o livro grosso em que sempre me sento”. Em seguida diz: “Isto é o código, podem dar testemunho de que sempre me utilizei dele”. Estas passagens demonstram dão destaque à falta de apego às leis por parte do Juiz.


Dentre suas decisões proferidas por ele ao longo da história, a primeira delas se refere a um crime de extorsão em que há um homem inválido, um médico e um coxo; outra se refere ao caso de uma camponesa é acusada de ter detido uma vaca de um proprietário; há o principal caso, que é o julgamento para decidir quem deveria ficar com Miguel. Neste julgamento, instala-se a questão: afinal, o menino deve ficar com a mãe biológica ou com a “mãe” que o criou quando fora abandonado?

Um círculo de giz

O circulo. A decisão é tomada de forma simples, aparentemente. Para decidir de uma vez por todas quem ficaria com Miguel, o juiz traça um círculo de giz no meio do chão e profere o julgamento: a criança deve ser puxada pelas duas até que saísse do círculo, isto é, quem puxar a criança pra fora do círculo fica com o menino.


A serva Grusche, sempre tão cuidadosa com o menino, ficou com medo de puxá-lo com força e machucá-lo, e por isso perde a disputa. Mas ao perder na disputa ela ganha a guarda. De acordo com o julgamento de Azdak, a verdadeira mãe é aquela que não pode fazer a criança sofrer.


Por fim, há o processo do divórcio de um casal de velhos que já não se entendiam mais. Azdak não os desquita, mas sim Grucha e o marido, assim fica ela livre para casar-se com Simão, que assume o filho. A peça termina com uma festa, em que Azdak desaparece pra sempre. E a moral da peça que prevalece, segundo Manuel Bandeira, ao prefaciar o livro, é que “as coisas devem caber àqueles que são bons para elas”.


Referências:

BRECHT, Bertolt. O círculo de giz caucasiano. [Trad.Manuel Bandeira] São Paulo: Cosac & Naify, 2010.

BERNSTS, L. G; TRINDADE, A. C; ZANOTTO, C. N. A representação do juiz em “O círculo de giz caucasiano”, de Bertold Brecht. Anais da mostra científica do Cesuca, v.1, n. 7, 2013.

SOUZA, Maurini de. A ética e a lei em Azdak, de O círculo de giz caucasiano. Revista de Letras do Departamento Acadêmico de Comunicação e Expressão (UFTPR).


Homoliteratus

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