sábado, 10 de fevereiro de 2018

"No Café Existencialista"

Em tom de romance, livro narra as origens da filosofia de Sartre

Thana Souza
RESUMO Escritora britânica consegue rara façanha de, num texto com qualidade literária, manter o rigor ao apresentar conceitos filosóficos. Em livro sobre responsáveis pelo existencialismo e pela fenomenologia, Sarah Bakewell mostra como surgiu e se popularizou uma corrente de pensamento que uniu teoria e cotidiano.

Quem se interessa pela história das ideias e gostaria de conhecer a vida dos principais pensadores do século 20 tem agora uma ótima oportunidade com o livro "No Café Existencialista" [trad. Denise Bottman, Objetiva, 416 págs., R$ 59,90, R$ 39,90 em e-book]. Sua autora, Sarah Bakewell, possui a grande virtude de dar vida às questões filosóficas e rigor conceitual à narrativa literária.



Escrita em 2016, a obra é publicada no Brasil com o subtítulo "O Retrato da Época em que a Filosofia, a Sensualidade e a Rebeldia Andavam Juntas", menos teórico que o original ("Liberdade, Ser e Coquetéis de Damasco"), mas preservando a noção de um pensamento que tem na liberdade e no cotidiano seus temas fundamentais.



Formada em filosofia, Bakewell alcançou sucesso com o livro "Como Viver" (Objetiva, 2012), sobre o francês Montaigne (1533-92).



Em seu novo título, sem mudar de país, mas saltando quatro séculos à frente, descreve a época em que se desenvolveu o existencialismo, vertente filosófica cujo lema se expressa na frase "a existência precede a essência" –isto é, o pensador deve compreender a própria existência humana e suas ações, em vez de se preocupar com questões abstratas e universalizações.



Ao investigar a natureza da mulher, por exemplo, a filosofia essencialista não leva em consideração as mulheres reais. O existencialismo, por sua vez, propõe mudar não só as respostas preconceituosas (como a de Aristóteles, que via na mulher certa deficiência natural) como também a própria indagação.



Não se trata mais de encontrar uma definição definitiva do que é ser mulher, mas de olhar as condições históricas e compreender como a educação das crianças leva a um menor estímulo à libertação e à autonomia das mulheres.



Do mesmo modo, se a filosofia essencialista buscava demonstrar a existência do mundo e dos outros seres humanos como questão prévia da filosofia, o existencialismo parte do pressuposto de que estamos jogados na existência, diante de outras pessoas, e é a partir desses dados concretos que devemos fazer filosofia.



O ENCONTRO



Bakewell constrói sua trama a partir do relato de um encontro entre Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Raymond Aron . Num bar, os três debatem a fenomenologia, nova corrente de pensamento que surgia na Alemanha e que possibilitava atribuir status filosófico a tudo que estivesse próximo à existência. Até o coquetel de damasco que tomavam poderia ser analisado dessa maneira.



E é exatamente isso que interessa a esses jovens. Assim, eles passam a estudar a fenomenologia alemã e a propor um desenvolvimento dessa filosofia, com alguns direcionamentos diferentes, desaguando no existencialismo.



Sartre e Beauvoir são dois personagens importantes da obra de Bakewell, mas outros pensadores ligados ao movimento também intervêm. O grupo inclui Albert Camus, Maurice Merleau-Ponty, Edmund Husserl, considerado o pai da fenomenologia, e Martin Heidegger –que se filiou ao nazismo e recusou-se a ajudar seu antigo mestre (Husserl) e seus amigos Karl Jaspers e Hannah Arendt.



Os capítulos seguem mais ou menos uma ordem cronológica. Percorrem quase todo o século 20, indicam as circunstâncias históricas dessa época (Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria e Maio de 68) e contam como os filósofos tiveram suas vidas e ideias modificadas pela conjuntura política e cultural.



Acompanhamos as aventuras desses pensadores, suas afinidades teóricas e entreveros, que não foram poucos. Embora humanize a filosofia, Bakewell não evita as questões mais delicadas e aponta os silêncios, idiossincrasias ou erros desses personagens.



Conhecemos sua intimidade, suas ousadias (como o relacionamento aberto de Sartre e Beauvoir) e atos de coragem, assim como suas falhas e covardias.



Não há o distanciamento tão comum nos textos de filosofia, nos quais raciocínios costumam ser apresentados como se não houvesse pessoas de carne e osso por trás deles. Em "No Café Existencialista", aproximamo-nos tanto desses personagens que passamos a torcer por uns e desejar que outros não consigam o que querem, como faríamos num romance.



DA VIDA À OBRA



Tais eventos cotidianos, porém, não se descolam das teorias desses filósofos. Ao ler sobre as viagens de Beauvoir aos EUA na década de 40 e sua relação com o romancista Nelson Algren, o leitor também aprende sobre as principais ideias do livro "O Segundo Sexo" e fica sabendo de seu impacto. Não era trivial pensar a questão de gênero como dissociada de uma natureza ou essência e associada exclusivamente à construção histórica –podendo, por assim dizer, ser modificada.







Mas "No Café Existencialista" não é um romance inspirado em fatos reais nem um livro voltado apenas para as curiosidades e escândalos biográficos. Trata-se, antes, de relato bastante concreto sobre uma teoria e sua época –uma história intelectual na qual o pensamento não se encontra dissociado das condições históricas em que surge, e a vida está intrinsecamente relacionada às teorias inventadas pelos filósofos.



É por isso que a descrição dos acontecimentos pessoais se intercala com uma apresentação detalhada das teorias elaboradas em "O Ser e o Nada" (Sartre), "Ser e Tempo" (Heidegger) e "Fenomenologia da Percepção" (Merleau-Ponty), para citar alguns exemplos.



Bakewell demonstra conhecimento abrangente e profundo da fenomenologia e de suas principais obras. Seu rigor pode ser observado nas quase 50 páginas de notas de rodapé, importantes para quem busca referências para leituras futuras, mas que podem ser dispensadas caso o leitor não queira se aprofundar nos temas mencionados.



A autora consegue a rara façanha de, num texto com qualidade literária, manter a precisão de artigos e livros acadêmicos; noções complexas, se não são apresentadas de forma exaustiva, em nada deixam a desejar em termos de cuidado conceitual.



Se fica mais fácil fazer essa associação quando falamos de filósofos que se aproximam do cotidiano, essa proposta também nos leva a refletir sobre nossos modos, muitas vezes herméticos demais, de mostrar a importância da filosofia de uma forma que quase ninguém consegue compreender.



É necessário preservar o rigor das leituras, mas também urge tornar essas pesquisas compreensíveis para não especialistas, dado que os temas filosóficos vão além das análises estruturais de jogos de linguagem às vezes indecifráveis.



Os filósofos constroem seus sistemas para tornar claras as questões de seu tempo e propor mudanças em suas realidades. Uma pesquisa que desconsidera o aspecto concreto e pensa o ensino de forma abstrata vai não só na contramão das intenções dos filósofos mas também reforça o discurso que exige o fim do ensino da filosofia no Brasil.



Nesse sentido, o livro de Bakewell é essencial para mostrar a possibilidade e o sucesso de unir escrita agradável e didática ao rigor filosófico.



A estratégia de dar concretude à teoria leva Bakewell a não apenas descrever as condições históricas como também se colocar pessoalmente no livro como leitora e admiradora da filosofia. Torna-se evidente, em particular, seu gosto pelo pensamento crítico e rebelde; compreendemos por que ela se dedicou a essa obra, trazendo, para nossos dias, as discussões sobre corpo, sexualidade e liberdade, entre outras noções fundamentais da fenomenologia.



Embora vivamos em outro momento, no Brasil e não na Europa, muitas das questões levantadas por esses filósofos fazem sentido e podem nos ajudar a compreender dilemas atuais e a modificar problemas que ainda existem.



Em um mundo em que a tecnologia se infiltra nos atos mais corriqueiros, é importante resgatar Heidegger e discutir os perigos desse tempo acelerado no qual parece não mais haver espaço para o passar do tempo.



De forma análoga, nesses momentos em que a própria noção de sentido parece perder sentido , em que, diante das inúmeras possibilidades que o mundo parece nos dar, as pessoas se sentem perdidas e incapazes de dar um significado a suas vidas, é essencial voltarmos a Camus e compreendermos como se opera a passagem da admissão do absurdo da vida para a valorização da vida.



Em alguns trechos de "No Café Existencialista", o relato de Bakewell avança no campo da opinião. E é assim, como impressão subjetiva (sujeita a contestação, portanto), que os fragmentos devem ser tomados.



A autora afirma, por exemplo, que a filosofia existencialista tem uma "mensagem individualista" (p. 28) ou que era uma "tarefa impossível e destrutiva" (p. 262) a tentativa de Sartre de unir existencialismo e marxismo –ocasiões em que a acertada simplicidade da obra cede lugar ao simplismo, e afirmações discutíveis não são confrontadas com questionamentos.



São deslizes pontuais, que não tiram o encanto do livro. O trabalho de Bakewell é essencial para quem deseja conhecer melhor o mundo teórico e ao mesmo tempo tão humano do existencialismo e da fenomenologia, em suas florestas, cafés, jogos de futebol, universidades e boates em que se ouve muito jazz.



Como diz a autora, é uma "filosofia habitada", de uma intersecção entre "filosofia e biografia" (p. 38), tornando a primeira mais bela, e a segunda, mais precisa.



Sarah Bakewell nos convida a sentar na mesma mesa que os filósofos e a tomar parte na conversa, ora amigável, ora tensa, mas sempre prazerosa. Quando a noite finda, quando os pensadores se vão, permaneço sentada à mesa, absorta em suas vidas, pensamentos e erros; chamo o garçom e peço mais um café, desejando que o convívio ultrapasse a última página.



THANA SOUZA, 38, doutora em filosofia pela USP, é professora da Universidade Federal do Espírito Santo e autora de "Sartre e a Literatura Engajada" (Edusp).





1folha.uol

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