segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Intelectuais não falam a língua do povo ?

Entrevista de Carlos Nelson Coutinho a Dênis de Moraes (trecho)

Não teria a intelectualidade de esquerda uma certa dificuldade de se comunicar com um público mais amplo, em função da linguagem elaborada que utiliza?

Gramsci tem uma teoria dos intelectuais muito rica, precisamente, nesse sentido. Segundo ele, há o grande intelectual, o produtor de ideologias, mas há também um sem-número de ramificações e mediações, através das quais os pequenos e médios intelectuais fazem com que as grandes ideologias e teorias cheguem ao que ele chama de “simples”, ou seja, ao povo. 

Para Gramsci, não há uma relação direta entre a grande filosofia, a grande cultura, e o que ele chama de “simples”; trata-se de uma relação que se dá através da mediação de uma grande massa de pequenos e médios intelectuais, aos quais devemos dedicar enorme atenção. Na batalha das ideias, na luta pela hegemonia, devemos estar atentos não só à produção dos grandes intelectuais, mas também temos de levar em conta o modo pelo qual os pequenos e médios intelectuais estabelecem uma relação entre esta produção e o senso comum dos “simples”.

Outro ponto interessante em Gramsci é a afirmação de que, entre os intelectuais e os subalternos, ou os “simples”, há sempre um diálogo. Lenin afirmava que o Partido revolucionário tinha como missão trazer “de fora” a consciência política, socialista, para o movimento operário. Esta afirmação, entre outros problemas, atribui aos intelectuais um peso que eles não têm. A função dos intelectuais, enquanto criadores e propagadores de ideologias é, sobretudo, dialogar com os “simples”.

Gramsci dizia que o povo sente, mas não sabe, enquanto o intelectual frequentemente sabe, mas não sente. Desse modo, embora saibamos em teoria que a integração entre os intelectuais e o povo é extremamente importante, muitas vezes esquecemos disso na prática. Ficamos satisfeitos quando nosso departamento universitário tem dois ou três marxistas, quando na revista do departamento, que circula para cem pessoas, são publicados três ou quatro artigos de inspiração marxista. Isso é importante, mas só terá um papel social quando as ideias do marxismo chegarem às grandes massas.

Gramsci dizia que é mais importante difundir entre as massas uma ideia correta já conhecida pelos intelectuais do que um intelectual criar uma ideia nova que se torne monopólio de um grupo restrito. A socialização do conhecimento, sobretudo do conhecimento ligado ao pensamento social, é uma tarefa fundamental para os intelectuais – tarefa que, muitas vezes por vaidade, nem sempre fazemos bem.

Nessa tarefa de socialização do saber, há muitos exemplos positivos.  já falei em Noam Chomsky, que certamente tem um peso na opinião pública norte-americana e não só norte- americana. Nos Estados Unidos, boa parte da opinião pública contrária à direita e ao militarismo é inspirada por grandes intelectuais, como o próprio Chomsky, Edward Said, Susan Sontag, Gore Vidal, Michael Moore e outros.

Isso acontece também no Brasil. Então, ao contrário da opinião pós-moderna de que o grande intelectual universalista perdeu sua função, diria que ele continua tendo as mesmas funções que Gramsci lhe atribuía, só que em condições morfológicas diferentes. Ou seja: mudou a morfologia dos intelectuais, assim como mudou a morfologia do mundo do trabalho, mas – em ambos os casos – permanecem as funções sociais destes grupos. Os intelectuais continuam a ser tão importantes hoje na produção de hegemonia e de contra-hegemonia quanto o eram na época de Gramsci e nos gloriosos anos 1960.

Intelectuais, luta política e hegemonia cultura
Entrevista de Carlos Nelson Coutinho a Dênis de Moraes*
Revista praiavermelha / Rio de Janeiro / v. 22 no 2 / p. 87-100 / Jan-Jun 2013


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