domingo, 30 de outubro de 2016

Perdemos uma batalha, mas o resultado da guerra não está decidido.

Entrevista de Carlos Nelson Coutinho a Dênis de Moraes (trecho)

Você faz parte de uma geração de intelectuais que testemunhou diversas mutações culturais e políticas nos últimos 40 anos. Do  Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes à febre digital, nada parece ser como antes. Como se sente na condição de remanescente dos anos 60 vivendo neste conturbado começo de milênio?

Enormes mutações realmente ocorreram, mas ao mesmo tempo se pode perceber, por trás da descontinuidade entre os anos 1960 e o início do século XXI, algumas linhas de continuidade.

A batalha pela hegemonia continuou a marcar todo esse período, com momentos que, sobretudo no início do período, foram mais favoráveis à esquerda. Para resumir o que sinto, lembro que a Livraria Leonardo da Vinci, do Rio de Janeiro, organizou em 2002 uma série de debates sobre as décadas passadas. Coube a mim e a Leandro Konder falar sobre os anos 1960. Depois de preparar o texto da minha intervenção, pensei comigo mesmo: “Que saudades dos anos 1960!” Foi uma época em que tivemos grandes esperanças.

Por paradoxal que pareça, era mais esperançoso viver sob a ditadura do que agora. Você tinha a ideia de que iria sair daquilo e construir alguma coisa realmente nova.

Se Eric Hobsbawm referiu-se ao “breve século XX”, poderíamos falar de uma longa década de 1960. Na verdade, a década iniciou-se em 1956 com o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, onde foram denunciados os crimes de Stalin; e, de certo modo, se encerrou com o colapso do eurocomunismo no início dos anos 1970. O eurocomunismo foi uma tentativa de retomada do núcleo democrático do comunismo e, ao mesmo tempo, de renovação do pensamento marxista. E, no meio de tudo isso, ocorreu 1968, com o Maio Francês, a Primavera de Praga e tantos outros movimentos libertários por todo o mundo, no Norte e no Sul, no Leste e no Oeste. Não é casual que, no início dessa longa década – numa declaração feita, se não me engano, em 1958 – Jean-Paul Sartre tenha afirmado que o marxismo era a filosofia  insuperável do nosso tempo. Naquele momento, seguramente, o marxismo disputava hegemonia com muita força.

De lá para cá, assistimos a sucessivos triunfos do capital no terreno da luta de classes. A correlação de forças mudou contra nós. O avanço do capitalismo se refletiu também, evidentemente, no campo da cultura. O pós-modernismo – que Fredric Jameson chamou adequadamente de “lógica cultural do capitalismo tardio” –, com sua tentativa de desconstrução de visões totalizantes do mundo, indica uma perda de força do marxismo. Sabemos que o marxismo coloca a totalidade como critério básico de sua metodologia. Embora acredite que ainda há forças que resistem a essa avalanche
irracionalista, não posso deixar de reconhecer que este início do século XXI não parece muito favorável a um intelectual como eu, formado na década de 60 do século passado. Quarenta anos depois, contemplo o mundo com mais ceticismo e mais pessimismo. Mas quero dizer, enfaticamente, que não perdi as esperanças. Adoto
e cito sempre aquele dístico de Gramsci: “pessimismo da inteligência e otimismo da vontade”.

Não se trata de um pessimismo irracional, mas daquele que se alimenta da razão crítica. Quanto ao otimismo da vontade, que é uma indicação para que mantenhamos unidas teoria e prática, ele se apoia no fato de que quase tudo o que Marx disse a respeito do capitalismo se confirmou. A crítica ao capitalismo formulada por Marx é cada vez mais atual. O capitalismo de hoje – cuja natureza “globalizada” Marx e Engels já haviam ressaltado há mais de 150
anos no Manifesto Comunista – não eliminou, mas até aguçou, todas as suas contradições.

O que devemos repensar e discutir é a questão do sujeito revolucionário, o sujeito capaz de operar as transformações. A meu ver, esse sujeito situa-se ainda no mundo do trabalho, mas não é mais a classe operária fabril, como Marx pensava. Temos que estudar a nova morfologia do trabalho e também os vários movimentos
sociais que, sem provirem do mundo do trabalho, colocam demandas que chamo de radicais, como são os casos dos movimentos feminista e ambientalista, para citar dois exemplos. São sintomas de que as coisas podem recomeçar para nós. Precisamos recomeçar de novo, com a modéstia de quem perdeu uma batalha, tanto no sentido político quanto no sentido cultural, mas com a convicção de que o resultado da guerra não está decidido.

Intelectuais, luta política e hegemonia cultura
Entrevista de Carlos Nelson Coutinho a Dênis de Moraes*
Revista praiavermelha / Rio de Janeiro / v. 22 no 2 / p. 87-100 / Jan-Jun 2013


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