terça-feira, 26 de maio de 2015

Motivos fúteis de uma sociedade violenta


Os brasileiros vivem com o dedo no gatilho

Maria Rita Kehl

Li em Época da semana passada e ouvi na CBN: mais da metade das pessoas que morrem de tiro, no Brasil (na proporção de uns 60%), morre por 'motivos fúteis'. A expressão é chocante. Refere-se, sabemos, aos crimes de ocasião, cometidos por pessoas que não tinham nenhuma relação com a vítima e/ou nenhum antecedente criminal: brigas de bar, ciúme, confrontos entre torcidas, desentendimentos no trânsito. Mas parece sugerir que outros 40% dos assassinatos ocorrem por motivos sérios, consistentes, filosoficamente justificados. A meu ver, toda morte ocorrida pela mão de um semelhante é fútil, absurda, incompreensível. Inclusive nos casos em que o Estado pratica a pena de morte.



Em todo caso, saber da grande quantidade de mortes por 'motivos fúteis' desmente um pouco nossos preconceitos a respeito da periculosidade dos jovens marginalizados, a horda de desocupados e enfurecidos que parece ameaçar a paz de nossos lares. O risco de você levar um tiro daquele pacato vizinho que se irritou com os latidos de seu cachorro é maior que o de ser morto por um seqüestrador do crime organizado.

Por que tantas pessoas passam tão rapidamente ao ato extremo de tirar a vida alheia em conseqüência de um desentendimento besta? Por que cresce o número de pessoas que escolhem — isso mesmo, escolhem — matar o oponente a tiros em vez de discutir uma desavença mesquinha? Primeiro: porque cada vez mais gente anda armada no Brasil. A Justiça, comprometida com a defesa da propriedade e dos direitos privados, é omissa quanto à gravíssima questão do porte de armas. Claro que um bandido profissional não vai tirar porte de armas antes de assaltar. Mas o vizinho nervoso, o motorista estressado, o comerciante paranóico vão. E, se não conseguirem, não vão ter com que atirar.

Em segundo lugar, as pessoas matam porque estão com medo umas das outras. A sociedade brasileira é violenta, sim, cordialmente violenta, desde a colonização. Mas o clima de medo em que vivemos hoje, incentivado e fomentado por programas pseudojornalísticos no rádio e na TV, além de dezenas e dezenas de enlatados violentíssimos, produz efeitos de pura paranóia. O desconhecido no ônibus, na fila do banco, o sujeito que esbarra no outro numa calçada apinhada são vistos antes de mais nada como uma ameaça. Vivemos com o dedo no gatilho, prontos para 'nos defender'. Só não temos defesa contra as próprias fantasias.

Entre tantos motivos fúteis, destacam-se as brigas de trânsito. Por uma fechada, uma batida, um arranhão na lataria, o motorista já sai perseguindo o culpado com sangue nos olhos. Para muitas pessoas um carro arranhado vale bem o preço de uma vida. É o pilar de sustentação da auto-estima. Fomos convencidos de que um homem motorizado vale mais que um pedestre e um homem com um carro zero vale mais que o dono de um carrinho velho, que cumpre apenas a função de meio de transporte. O carro no Brasil não é um meio de transporte; é o bem precioso que dá sentido à vida de seu proprietário. Diga-me em que carro andas, e te direi Quem és. Dentro do modelo novo de uma marca importada o sujeito vive uma espécie de intoxicação narcísica. É um rei, um 'vencedor' (argh). Um semideus.

Morte àquele que danificar essa ilusão.

Maria Rita Kehl é psicanalista

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR50774-6071,00.html

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