sábado, 8 de janeiro de 2011

Os dois lados da vida


Santo Tomás de Aquino apontou: o mínimo de bens materiais é indispensável ao exercício da virtude

Mauro Santayana

MUITOS PENSADORES do passado, qualquer que fosse a cultura predominante, identificaram a divisão dos homens entre os poderosos e os débeis, entre os ricos e os pobres. Os dirigentes de todas as grandes igrejas sempre se associaram ao poder temporal – quando não o exerceram diretamente, como fizeram os papas, até a unificação da Itália e o estranho acordo com Mussolini. No entanto, sempre fizeram o discurso do perdão, da promessa da igualdade, não aqui, mas nas dimensões transcendentais do paraíso celestial. A astúcia é diabólica: os pobres devem aceitar a sua situação de inferioridade. É-lhes concedida a esperança de que os ricos sejam condescendentes “caridosos”, e lhes deixem um pouco do que não podem, pelas limitações da natureza, consumir – como os restos dos banquetes.

O historiador polonês Bronislaw Geremek, anticomunista conhecido, fez exaustivo e lúcido estudo sobre a divisão entre ricos e pobres, dando destaque à hipocrisia da Igreja e dos poderosos. O pensamento predominante pode ser resumido em uma frase colhida na Vida de Santo Eloi: Deus fez os ricos para que eles, ao praticarem a caridade para com os pobres, venham a merecer o reino dos céus. Santo Eloi, no sétimo século de nossa era, foi um exemplo disso: depois de levar uma vida opulenta, como ourives dos reis, dedicou os últimos anos a praticar a caridade e, assim, foi declarado santo.

De acordo com Geremek, os pobres, que agiam com humildade, recebiam o pão da caridade. Aos que se rebelavam, reservava-se a forca.

É sempre citada, e forte, a frase de Platão: existem duas cidades na cidade; a cidade dos ricos e a cidade dos pobres. Elas continuam assim. Uma é a cidade de Ipanema, Leblon, Cosme Velho. A outra se divide entre o Complexo do Alemão, a Rocinha e todas as outras comunidades de nosso país em que se distribui a miséria.

O discurso da presidente Dilma Rousseff, ao empossar-se, promete a erradicação da miséria, o que é um grande passo para a ascensão humana e política dos pobres.

A primeira necessidade e o primeiro direito do homem é comer, para manter-se vivo. É sempre citável uma cena antológica do filme O ladrão de Bagdá, de 1940, dirigido, entre outros, por Alexander Korda e Michael Power. Quando o gênio é liberto da garrafa, o pequeno ladrão pede-lhe um prato de linguiça: não sabe pensar com a barriga vazia. Disso sabem todos os que passaram pela experiência da fome. A miséria os condena ao desespero, que os faz buscar o seu pão de qualquer maneira: no assalto à mão armada, quando não são recrutados pelos barões do tráfico de drogas, da prostituição. Como apontou Santo Tomás de Aquino, o mínimo de bens materiais é indispensável ao exercício da virtude.

A presidente não conseguirá o seu objetivo, enquanto os grandes ricos e a alta classe média, cuja aspiração de vida é a do consumo conspícuo, não entender que começa a ser insustentável essa disparidade. Ela se associa às mais elevadas taxas de juros do mundo – cruel transferência dos resultados do trabalho produtivo ao setor financeiro, nacional e internacional. Uma medida simples, embora paliativa, já foi tomada, com a proposta de controle da entrada de capitais estrangeiros no Brasil – aqueles que chegam e partem em seguida, depois dos juros auferidos, pagos pela sociedade e pelo Tesouro.

É hora de reunir as duas cidades, a dos ricos e a dos pobres, em uma só cidade: a cidade dos homens. É essa tarefa que a presidente deseja começar a cumprir, em nosso país. A miséria não é só cruel pelo fato de produzir a fome, de amontoar as famílias em barracos precários, que desabam sob as chuvas e matam as pessoas. A miséria retira dos pobres a esperança, corrói-lhes a dignidade. Aos pobres não falta só o pão. Falta futuro.

Jornal do Brasil

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