terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Revisitando: Brasil em Weimar


O que está em curso no Brasil é mais do que um golpismo eleitoral: é um complexo e pegajoso processo de destruição da Constituição democrática, pela liquidação do prestígio das instituições políticas do país

por Tarso Genro

A personagem de Thomas Mann, em seu romance medular Carlota em Weimar, após uma longa digressão sobre a política concluiu, de forma amarga, uma dura sentença sobre os tempos difíceis que vivencia: “Os nossos (tempos) têm uma luz acre de claridade implacável, e em cada coisa, em cada problema humano, em cada beleza, fazem romper e manifestar-se a política que lhes é inerente. Sou o último a negar que daqui se desprende muita dor e perda, muita separação amarga”. Publicada em 1939 – tempos de guerra e tempos de ódio –, essa sofisticada reflexão sobre o humanismo moderno e sua grave crise não foi gerada lembrando Weimar de maneira gratuita. A República de Weimar, recordada injusta e frequentemente apenas como uma experiência prévia à desordem que promoveu o nazismo, foi um dos períodos mais ricos de experimentação política, de desenvolvimento cultural, de movimentos emancipacionistas inclusive nas lutas de gênero e de revoluções nas artes e nas letras experimentados na modernidade europeia.


A República de Weimar, que perdurou de 1919 a 1933, foi varrida pela crise de 1929 – pela inflação norte-americana que se transmudou em hiperinflação na Alemanha, destruindo moedas em todo o mundo ocidental – e caiu sob o assédio dos antigos aristocratas, dos latifundiários, dos altos funcionários da burocracia estatal, dos banqueiros e industriais deprimidos, para os quais a democracia política não tinha mais condições de oferecer canais de evasão para a crise. A agonia e a queda da República de Weimar devem servir de analogia recorrente para analisar as crises políticas e sociais de países que têm uma estrutura de classes desenvolvida como estrutura capitalista moderna, mas conservam traços evidentes de atraso, desigualdades sociais e riqueza concentrada, combinando modernidade e atraso, inclusão e desigualdade, potência política de classes emergentes na sociedade e capacidade de reação extralegal e fora da Constituição de que as classes e os setores privilegiados da sociedade dispõem para proteger-se. Analogia, sim, pois analogia não é igualdade. É apenas semelhança.


Além das questões sociais e seus dilemas, que compõem o atual período histórico no país, com alguma semelhança com Weimar, e ainda o incômodo dos ricos com a emergência dos pobres – “sujos e malvados” – na cena pública, mais além dos temas da corrupção pública privada (que só aparece de maneira luminosa como elemento central da política nos regimes democráticos e com imprensa livre), a politização radical da vida cotidiana parece ser o elemento analógico mais expressivo que nos faz lembrar o período de Weimar, na atual conjuntura do Brasil.


Em certo sentido conjugam-se, nestes momentos difíceis, de um lado, o “despedaçamento da esperança”, assimilado pela esquerda revolucionária, cujo sentido era emancipação com liberdade e socialismo (mesmo que uma parte dela pensasse que isso poderia ser conseguido com períodos sem liberdade) e, de outro, a impotência de avançar de forma ascendente dentro da própria ordem (mesmo que lentamente, mas com segurança). Outra analogia é o debate de Sartre com Camus. O primeiro com seu realismo dialético, na época, evocando o socialismo soviético como o único possível, apesar da liquidação das liberdades políticas; e o segundo com sua recusa ferrenha de adesão, mas não sendo capaz de identificar qualquer força motriz promotora de uma revolução com liberdade.


A reação da direita e da oposição “liberal” e neoliberal no Brasil aos modestos mas importantes avanços conseguidos pelos governos Lula e Dilma (que poderão ser aprofundados se a agenda política do governo for suficientemente politizada e clara sobre isso) não é idêntica à reação alemã da época de Weimar. Mas ela também se caracteriza por uma “terceirização” da política e por uma aparente indiferença em relação a seus resultados. Lá, a elite militar, a aristocracia latifundiária, banqueiros e burgueses falidos foram paulatinamente apoiando e estimulando os lumpens, os desempregados, os miseráveis, para que aderissem a todas as formas violentas de protesto, até que estes fossem plenamente conduzidos pelas “gangs” nazistas, que formulavam, com seus intelectuais “respeitáveis”, as teses do Estado total na Alemanha, preparando a barbárie que se avizinhava.


Aqui, os partidos de direita, os que migraram para essa posição, os consultores do capital financeiro guindados à condição de “especialistas” pelas “grandes mídias” – estas, uma orwelliana metástase neoliberal –, os intelectuais liberais da academia, os líderes políticos de referência, todos abandonaram suas agendas democráticas, mesmo as mais conservadoras, e transferiram a direção política e intelectual de sua rebeldia contra a esquerda em geral e contra o PT em particular para os editoriais das grandes empresas de mídia. Trata-se, assim, da expansão plena de um partido político “novo tipo” – um leninismo pós-moderno das elites – que centraliza a agenda dos partidos formais e os “enGloba” num mesmo roteiro estratégico. Impotentes para formular um projeto alternativo convincente para o país, os partidos conservadores e seus porta-vozes informais abandonaram qualquer programa partidário stricto sensu e transferiram a direção de sua oposição para a mídia monocórdia.


Isso se revela tanto pelo apoio comum que deram ao movimento pelo impedimento da presidenta, recentemente eleita e que ainda não assumiu o segundo mandato (ou seja, um impedimento prévio ao exercício do mandato a ser impedido), como pela necessidade de fazer um acordo informal (um pacto intradireitista, liberal e midiático) para que as principais lideranças da oposição e seus partidos não fossem também apontados como beneficiários de esquemas de corrupção na Petrobras, que datam de mais de vinte anos, apanhando em cheio os mandatos tucanos. Um habeas corpus preventivo, de natureza política, para preparar novas impunidades.


Apontei, em plena campanha eleitoral, que estava em curso um “golpe midiático” contra a reeleição da presidenta. Fui superficial e conservador em minha análise na ocasião. O que está em curso no Brasil é mais do que um golpismo eleitoral: é um complexo e pegajoso processo de destruição da Constituição democrática, pela liquidação do prestígio das instituições políticas do país. A diluição da esfera da política com sua identificação absoluta com a corrupção, pela propagação de uma visão pervertida dos partidos, inclusive os conservadores e de oposição – embora estes queiram majoritariamente terceirizar suas funções –, e o esforço pela comprovação da impotência da democracia como processo para abater privilégios e reduzir desigualdades sociais são os esforços centrais dessa estratégia. Quando alguém, aparentemente fora da política, monopoliza a capacidade de produzir a agenda política de um país, a democracia, neste país, está em perigo.


É importante advertir, porém, que essa agenda é verdadeira. A questão da corrupção no Brasil tem, sim, mais de quinhentos anos, mas o que existe hoje não é sua “descoberta”. É uma disputa sobre como reduzi-la a níveis minimamente decentes, como em países como a Costa Rica, a Noruega, a Suíça, a Holanda e alguns outros. O que predomina, pelo menos na conjuntura atual – como ocorreu fartamente na Ação Penal 470 –, é uma suja tentativa de estabelecer uma identidade partidária para a corrupção, e não uma identidade com as pessoas que cometeram crimes ou se aproveitaram de brechas legais (como as causadas pelo financiamento empresarial das campanhas) para obter recursos para seus partidos ou para proveito próprio.


Independentemente das manipulações promovidas pelas investigações procurando interferir nos resultados eleitorais, por meio de quadros da polícia ou do Judiciário, esse processo penal pode ter uma importância muito grande para o futuro do país, desde que ele regrida ao início real da organização do grupo interno à Petrobras e busque, um por um, quaisquer que sejam suas opções partidárias, os que se beneficiaram de forma criminosa – nos respectivos níveis de responsabilidade – com os delitos engendrados por esse grupo central.


Trata-se de grupo que pagava pedágios a políticos, a segmentos de partidos ou a grupos informais para poder continuar seu itinerário criminoso para proveito próprio. Para que isso ocorra, o ideal é não permitir que o processo se transforme numa luta de oposição e governo, como já ocorreu em outras oportunidades, pois já é claro que o início das ilicitudes não só envolve grupos criminosos alheios ao sistema político, mas também compromete pessoas da maioria dos partidos com influência no país, ou seja, é mais um episódio da corrupção sistêmica, inerente aos Estados em geral, que adquire maior intensidade nas democracias mais jovens.


É certo, como diz Norberto Bobbio, “que a política, seja monárquica, seja republicana, é luta pelo poder”, mas na República democrática está a possibilidade de que a luta pelo poder seja direcionada para um ideal de virtude, que pode vencer em circunstâncias emblemáticas. A vasta operação Mãos Limpas, na Itália, foi um feito democrático extraordinário, de uma justiça que funcionou predominantemente dentro da Constituição, mas a máfia italiana continuou forte, e aquela operação foi sucedida por nove anos de governos tão ou mais corruptos que os anteriores: os governos Berlusconi, instituídos por maioria após a destruição completa e indistinta dos partidos políticos – com exceção do sucessor do PCI –, incriminados pela “opinião pública” construída. Isso não quer dizer que aqueles processos das “mãos limpas” não tenham “valido a pena”, e sim que é preciso preparar o pós-crise, ainda dentro da crise, para que a saída seja uma acumulação democrática, não uma nova distorção da República.


“Líder do PT, Humberto Costa teria recebido R$ 1 milhão, diz jornal”, publicou a Folha de S.Paulo (12 nov. 2014). Essa manchete é o exemplo da cobertura incriminatória que, com uma sucessão de notícias, alusões, menções a depoimentos, boatos, “vazamentos” manipulados, “ouvir dizer”, coloca novamente no centro da corrupção o PT, o maior partido progressista e democrático do Brasil, partido de esquerda no espectro nacional e que se elege pela quarta vez à Presidência da República. Quem conhece Humberto Costa sabe que isso é mentira e que se algum recurso ilegal bateu em sua campanha foi por meios que o próprio Humberto não detectou e ninguém detectaria. Mas Humberto é o líder do PT no Senado e a mídia tradicional não vacila em queimar quem quer que seja, jogando para dentro do escândalo, para fortalecê-lo, qualquer nome, independentemente da verificação da seriedade da fonte. E a fonte é “diz jornal”. E pronto.


Devemos exigir, todos os partidos que se sentem ameaçados pelo processo manipulatório em curso – já permanente no Brasil –, não a redução do potencial investigativo do processo inquisitório, mas seu aumento, para que ele seja mais amplo e profundo, combatendo em todos os fronts seu direcionamento político-partidário, sob pena do enfraquecimento letal da esfera da política no país, que é a esfera pela qual, para o bem e para o mal, deve se constituir o poder dentro da República democrática.


“Nenhum Estado real se sustenta sobre a virtude dos cidadãos”, continua a lição do mestre Bobbio, “mas é regulado por uma Constituição, escrita ou não escrita, que estabelece regras sobre a conduta destes, a partir exatamente do pressuposto de que os cidadãos geralmente não são virtuosos.” O moralismo udenista, transformado em ação política hegemônica (neste caso pelo partido “novo tipo” concentrado na grande mídia), segundo a lição de Bobbio e as experiências recentes no Brasil (desde Getúlio, na Alemanha de Weimar e na Itália berlusconiana), só prepara mais corrupção ou mais barbárie. Às vezes, a síntese de ambas. No caso, substituindo a democracia fragilizada na corrupção pela morte da democracia combinada com a barbárie.



Tarso Genro é governador pelo estado do Rio Grande so Sul

Le Monde Diplomatique



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