quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Somos todos transtornados?



Em novo passo para medicalizar comportamentos (e engordar lucros da indústria farmacêutica), EUA preparam-se para classificar até mesmo luto, birra infantil e gulodice como distúrbios psiquiátricos


Gabriela Leite

As correntes psiquiátricas que procuram definir padrões rígidos de comportamento “normal”, e tratar qualquer “desvio” como doença ou distúrbio, parecem prestes a aprontar mais uma. A Associação Americana de Psiquiatria (APA, em inglês) prepara-se para lançar a quinta versão de seu Manual de Diagnósticos — o DSM-5 (Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders). O documento, cuja influência em outras partes do mundo é relevante, torna ainda mais vasta a relação de atitudes consideradas anormais e, portanto, passíveis de tratamento psiquiátrico. O pior retrocesso, analisa Allen Frances, professor emérito da Universidade de Duke e psiquiatra há 45 anos, é associar o luto a uma patologia. Ao contrário de sua versão anterior (o DSM-4, publicado em 1994), o novo manual não exclui da rotulação de depressivos os pacientes que estão sofrendo a perda de um ente querido.


Mas não é só. Frances listou, em seu blog, as 10 piores mudanças no DSM-5 — que, em sua opinião, devem ser simplesmente ignoradas. O manual cria novos termos para problemas comuns nas crianças, como a birra, agora considerada como distúrbio mental e chamada de “transtorno da oscilação disruptiva do humor” (DMDD, em inglês). “Comer exageradamente doze vezes, ao longo de três meses”, converteu-se numa doença psiquiátrica denominada “desordem da ingestão compulsiva”.


“Distúrbios neurocognitivos pequenos”, é o diagnóstico que rotula simples esquecimentos diários, de pessoas com mais idade que estão longe de ter demência. Há também exageros, como a introdução do termo “comportamentos viciantes”, que pode enquadrar coisas que pessoas gostam muito de fazer como um vício.


Este ânsia por rotular atitudes humanas não é apenas fruto de uma visão dogmática de “normalidade”. Frances prossegue. “Tornar o luto uma desordem mental será um desastre para os enlutados, mas uma bonança para as empresas farmacêuticas”. As crianças classificadas como portadoras do “transtorno da oscilação disruptiva de humor” serão provavelmente vítimas do “uso maciço e ainda mais inapropriado de medicamentos”.

A história dos manuais de diagnósticos é bastante controversa, em todo o mundo. Na primeira e segunda edições da versão norte-americana, respectivamente de 1952 e 1968, ainda considerava-se a homossexualidade como um distúrbio mental. Ela só foi desclassificada após muitos protestos de ativistas da causa gay, durante os anos 70.

Quem também tem críticas a esse tipo de rotulação de comportamentos é Lawrence J. Davis, autor de um artigo que compara o DSM a uma “Enciclipédia da insanidade”. Ele lembra que, desde sua terceira edição, o manual trata como doentes (portadoras do “transtorno negativista desafiante”, ou oppositional defiant disorder — ODD) as crianças e adolescentes que se opõem às ordens de seus pais. E compara esta classificação com um exemplo histórico. Em 1850, o doutor Samuel Cartwright, um médico de Louisiania também tratou de doentes mentais os escravos que fugiam do cativeiro. Para Cartwright, eles buscavam a liberdade por sofrerem de drapetomania. Um dos fatores para desenvolvimento da doença era o comportamento de senhores, que “se tornavam muito familiares em relação aos escravos, tratando-os como iguais” e contrariando, assim, a Bíblia.

Embora isso pareça absurdo hoje, Davis pensa que classificar tipos de rebeldias infantis como distúrbio também seja uma tentativa de controle.


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