sábado, 15 de dezembro de 2018

'Roma' é uma ficção que fala muito sobre a realidade


Não há o que lamentar e, sim, festejar que, em época de tanta superficialidade, um filme grandioso como este

Luiz Zanin Oricchio, O Estado de S.Paulo

Há duas sequências bastante impressionantes em Roma, de Alfonso Cuarón. Numa, vê-se a terrível repressão aos estudantes na Praça de Tlatelolco, que redundou em centenas de mortos. Na segunda, uma cena de quase afogamento de uma pessoa num mar revolto que, pelo realismo e pela ameaça, torna-a muito angustiante. Isso para dizer que o filme, embora produção da Netflix, é explicitamente pensado para a tela grande, na qual essas sequências encontram sua potência máxima, inevitavelmente reduzida numa tela menor. A discussão sobre a primazia do cinema sobre o streaming é infindável e vai sendo vencida pela força dos fatos. Ou seja, da grana.



Não há o que lamentar e, sim, festejar que, em época de tanta superficialidade, um filme grandioso como Roma ainda seja produzido, mesmo que por uma plataforma de streaming. Roma parte das memórias de infância do diretor e as transforma em ficção. Mas daquelas ficções que falam muito da realidade. O título já foi objeto de especulação. Seria uma referência à capital romana? Ou ao fato de Roma formar a palavra “amor” quando lida ao contrário? Pode ser isso, como não? Mas o fato é que se trata de um bairro bastante conhecido da Cidade do México, onde o diretor se criou. É a fonte de suas lembranças.


A começar pela casa grande, em que a família de classe média alta é servida por duas domésticas de origem indígena. O pai é um médico que vai se ausentar a pretexto de uma viagem ao Canadá. Veremos que essa “viagem”, na verdade, tem outra motivação e conotação para a família.



Uma das empregadas, Cléo, engravida do namorado, que não assume a paternidade e a moça vê-se só. Mas não desamparada. Há uma proximidade maior entre ela e a patroa, Sofia, quando esta também é abandonada pelo marido. Um mundo feminino se constitui à parte, pela absoluta falta de sensibilidade e responsabilidade do universo masculino.



Há as crianças, que observam esse mundo precário. E há as mulheres que, sem queixas, tentam refazê-lo e levar a vida adiante. Roma, nesse sentido, é um filme feminista. Nem por isso, e nem por aludir à crescente solidariedade entre patroa e empregada, deixa de assinalar a contradição do grande desnível de classes sociais entre elas. Tema já explorado no ótimo Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert, e que encontra em Roma uma ressonância e talvez um diálogo.



Mesmo porque México e Brasil são países muito próximos. Culturalmente ricos, sofrem com uma “elite” predatória e mantêm intacto um abismo de classes que impede qualquer progresso mais significativo. Esse comentário social está nas entrelinhas deste filme brilhante, fotografado em um branco e preto intemporal.


Estadão


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