domingo, 21 de setembro de 2014

Participação social e reforma da justiça

Fabio de Sá e Silva (*)

Desde que foi incluída na Constituição de 1988 como um princípio fundamental da República Federativa do Brasil, a participação social vem impulsionando transformações importantes na condução dos negócios públicos.


A vasta e rica literatura sobre o tema produzida desde então não apenas documenta esse processo, mas também aponta as transformações pelas quais a própria ideia de participação passou, na medida em que adquiriu força normativa.


Inicialmente, e não sem algum encantamento, os estudos exploraram e destacaram o caráter inovador das práticas participativas e sua contribuição para diminuir o fosso entre Estado e sociedade civil que, embora tivesse longínquas raízes na história brasileira, havia sido agravado pelo autoritarismo e a tecnocracia dos “anos de chumbo”.


A seguir, com a disseminação e a definitiva institucionalização de práticas participativas, notadamente na forma de Conselhos e Conferências, estudos empíricos passaram a indicar alguns limites e descompassos da participação em relação à promessa de democratização do Estado que, anteriormente, ela tão incisivamente representou. O excessivo poder de agenda dos governos em relação à sociedade civil, a linguagem excessivamente técnica (e por isso mesmo excludente) nas reuniões, e a colonização dos ambientes deliberativos por “participantes de ofício” foram alguns dos temas que mais permearam as análises e que ensejaram atitude mais crítica e cautelosa sobre a participação.


O momento atual, construído a partir do estoque de reflexão até então acumulado, destina-se exatamente a entender em que condições a participação pode ser mais efetiva, ou seja, em que condições as práticas participativas transformam a realidade, seja quando ajudam a gerar políticas melhores, seja quando empoderam e qualificam atores, processos e interesses sociais de outra forma excluídos ou marginalizados.


Chega a ser surpreendente, portanto, que o Decreto n. 8.243/2014, que instituiu uma política e um sistema nacional de participação social, tenha sido objeto de reações e ataques (quase sempre lastreados em preconceitos e insinuações) no Parlamento e nos grandes veículos de comunicação.


Afinal, as medidas contidas no Decreto corroboravam para o enfrentamento de muitos dos problemas identificados anteriormente; seja quando previam características e requisitos mínimos para que as instituições participativas pudessem operar no âmbito do governo federal, acolhendo críticas levantadas contra práticas de colonização desses espaços; seja quando atribuíam à Secretaria-Geral da Presidência a tarefa de acompanhamento e avaliação do que viesse a ocorrer em tais espaços, visando assegurar que eles operem sempre, e cada vez mais, no sentido da efetividade.


Para além de obsoletas, ademais, tais reações e ataques fizeram retroceder os termos do debate sobre participação: ao invés de prosseguirem na avaliação de como a participação poderia se tornar um traço qualificador dos processos de governo, acadêmicos, gestores e ativistas tiveram de regressar no tempo e retomar as razões (normativas, teóricas e empíricas) que fundamentaram o seu surgimento e adensamento como princípio da administração pública.


Mas esse tipo de polêmica, como disse na ocasião o Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, pode ser sempre “bendito”. Afinal, embora tenham avançado muito por todo o Brasil, em especial a partir do Governo Lula, as práticas e instituições participativas ainda têm estado muito restritas ao Poder Executivo. Sendo, reitere-se, fundamental a toda a República, e não apenas do Executivo, a participação social permanece como um princípio pouco explorado na organização dos demais poderes.


O Judiciário oferece um dos mais eloquentes e ilustrativos exemplos.


Embora tenha evoluído um pouco, em especial na jurisdição constitucional, com a utilização de procedimentos como audiências públicas e institutos como o “amicus curiae”, o Judiciário ainda figura como um terreno extremamente hermético às manifestações e demandas daqueles que lhe emprestam a condição de Poder: os cidadãos.


A gestão dos Tribunais segue sendo feita sem nenhum procedimento de consulta ou legitimação popular – como Conferências ou audiências públicas, hoje ao alcance de qualquer prefeitura –; e o Conselho Nacional de Justiça, órgão que tem como um de suas principais atribuições a indução de políticas judiciárias de caráter nacional se constituiu, afinal (e na contramão de tudo o que se observava no Executivo), como um conselho “de cúpula”, sendo formado por Presidentes de Tribunais Superiores e representantes da elite das carreiras jurídicas (Ministério Público e advocacia). A representação “dos cidadãos”, se é que se pode chamar assim, é feita de maneira indireta, com a indicação de representantes da Câmara e do Senado, sobre a qual, por sua vez, inexiste qualquer forma de controle social.


Qualquer que seja o destino do Decreto n. 8.243/2014, que até a publicação deste livro permanece sob ataque, é certo que as práticas e instituições participativas não desaparecerão, mesmo porque muitas delas estão hoje legitimadas por atos legislativos. Mas a defesa da participação como princípio e instrumento para o exercício do poder político pode e deve iluminar a resistência de espaços que como o Judiciário, permanecem infensos a qualquer perspectiva de democratização.


Como, porém, ocorreu com a própria participação em sentido mais amplo, esse avanço não se dará sem pressões do maior interessado na democratização desse Poder: o povo. Felizmente, eventos recentes dão evidência de que está em curso nova mobilização nesse sentido. Após a escolha, pela presidenta Dilma Rousseff, do Ministro Teori Zavascki para o Supremo Tribunal Federal, a Articulação Justiça e Direitos Humanos, formada por várias organizações não governamentais das áreas de justiça e direitos humanos, lançou nota (“Novo ministro, velhas escolhas”) e deu entrada em pedidos por acesso a informação acerca dos procedimentos e critérios que vêm sendo utilizados para este fim. O Congresso também vem sendo cobrado para que utilize melhor, e de maneira mais aberta, o expediente da sabatina dos candidatos.


Tais pleitos, como é óbvio, afetam interesses bastante nucleares no Estado e nas profissões jurídicas, o que sugere dificuldade para a realização de mudanças rápidas e radicais. Mas essa possibilidade não deve sair da agenda e nem de nossas ambições.


(*) Graduado (USP ’02) e Mestre (UnB ’07) em Direito e PhD em Direito, Política e Sociedade (Northeastern University, EUA ‘13). É Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), onde foi Coordenador de Estudos e Políticas sobre Estado e Democracia (2009–10) e Chefe de Gabinete da Presidência (2011-12)


Carta Maior

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