sábado, 20 de setembro de 2014

Violência: 'quanto maior a coesão, menor a coerção'



Ana Cláudia Peres


A imagem do adolescente negro, nu, preso com uma trava de bicicleta a um poste em um bairro da Zona Sul carioca, custa a sair da memória. O episódio ocorreu em fevereiro e, por mais perturbador que pareça, não foi caso isolado. Nos meses seguintes, a cena se repetiu mudando apenas a região do país ou o requinte da crueldade. Pela tela do computador, em relatos nas redes sociais – por vezes, vídeos chocantes – ou matérias da grande imprensa, o Brasil vem assistindo a uma onda de intolerância e violações de direitos que desafiam a razão. Levantamento realizado pelo portal G1 computou mais de 50 casos noticiados apenas no primeiro semestre deste ano.

À moda dos justiceiros, uma parcela da população decidiu que o suspeito de um crime é alguém desprovido de direitos e merecedor de castigos severos: em maio, uma dona de casa morreu, vítima de linchamento no Guarujá (SP), depois de ter sido confundida com uma suposta sequestradora; em julho, um professor de História só escapou da morte por populares, em um bairro da periferia paulista, após dar uma aula sobre a Revolução Francesa para provar sua profissão. Muitas vezes, o delito é apenas ser diferente: no Rio, uma jovem foi espancada por estar acompanhada da namorada no Centro da cidade. A vida do outro sempre por um fio.


Para refletir sobre o assunto, Radis conversou com a socióloga e antropóloga Maria Cecília Minayo, coordenadora científica do Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), vinculado à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). Estudiosa da violência urbana, Maria Cecília diz que os autores dessas brutalidades ainda acreditam, em pleno século 21, que “bandido bom é bandido morto”. Mas para ela, há uma mudança mais profunda em curso. Nesta entrevista, Maria Cecília nos aponta uma sociedade que também se horroriza com os atos de barbárie e está mais consciente dos problemas sociais. “A violência não aumentou, ela apenas tem aparecido mais. E a internet tanto expõe esses extremos de violência quanto alimenta grandes correntes de solidariedade”, ela diz, como para mostrar que a humanidade ainda não se desumanizou de todo.


Que desencantamento é esse que tem levado as pessoas a praticar atos de selvageria com o próximo sob a alegativa de fazer justiça com as próprias mãos?


Cecília Minayo: Teoricamente, fazer justiça com as próprias mãos é regredir à Idade Média. Nas sociedades modernas, houve o desenvolvimento conceitual – que se transformou em práticas sociais – de que as pessoas não deveriam fazer justiça com as próprias mãos e de que o Estado seria a autoridade responsável pelo julgamento dos crimes. No Estado Moderno, existem dois fundamentos: o fundamento da coesão e o fundamento da coerção. O fundamento da coesão vem da religião, da educação, da informação familiar, onde a sociedade vai dizendo pra nós como quer que a gente seja. E aí surgem os inconformados, que não querem ser do jeito que a sociedade determina, e os criminosos, que dizem assim: “Tudo o que vocês estão falando, tudo o que está na lei, para mim, não vale nada”. Então, o Estado deve atuar buscando a coesão. Ou seja, quanto maior a coesão da sociedade menos necessidade ela tem de coerção.


Mas o que tem levado as pessoas a desacreditar no Estado ou a desautorizar aqueles que fazem e aplicam as leis?


Cecília Minayo: Uma observação que faço é que estamos passando por um período histórico de grandes mudanças. Mas grandes mesmo. Essa revolução, sobretudo da comunicação e da informação, trouxe mudanças profundíssimas para toda a sociedade. E é como se as autoridades tradicionais, ou seja, o Estado, não acompanhassem, não tivessem poder de coesão suficientemente grande, potente, frente a essas mudanças. Se fosse fazer uma metáfora freudiana, diria que é como se nós tivéssemos uma sociedade sem pai. Onde está a autoridade? Não falo de uma autoridade no sentido de autoritarismo, mas uma autoridade que é capaz de dizer, de apontar saídas.


E como chegamos a isso?


Cecília Minayo: Podemos dizer que o Estado Moderno é assentado sobre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, mas que a grande força relacionada ao tema de que estamos tratando é o Judiciário, e esse poder é quase intocável. Falamos muito da polícia, mas não acompanhamos o que acontece com os cidadãos depois que a polícia os prende. Então, a consciência da sociedade hoje está maior do que os poderes constituídos. Ao mesmo tempo, passamos a ver a exacerbação da violência, da discriminação, do preconceito, mas todo esse mal estar já existia, estava aí, só que não era verbalizado, comunicado. Hoje, se vemos pela internet um adolescente nu, amarrado a um poste, imediatamente isso se torna comoção nacional e outros casos aparecem. Mas se um lado diz para mim que a lei não adianta e por isso são cometidos outros crimes, há também um outro lado que me mostra como as pessoas ficaram horrorizadas com aquele ato de barbárie. É como uma convulsão cotidiana frente à uma situação de mudança com a qual a gente ainda não está acostumada.


Esse tipo de violência já deixou vítimas em praticamente todos os estados brasileiros. São muitos os casos ligados ao preconceito contra negros, homossexuais, minorias em geral. Isso seria sintoma de um aumento do conservadorismo no país? Estamos ficando mais reacionários?


Cecília Minayo: Não estamos mais conservadores, o conservadorismo está apenas aparecendo mais. Teoricamente, a compreensão da violência vem pari passu com o aumento da consciência social. Nos sites preconceituosos, por exemplo, existe uma alimentação de algo que estava recalcado e agora apenas começou a aparecer mais. Não acho que estejamos piores do que ontem. Do mesmo modo que aparece o preconceito e a violência, aparece também mais reflexão e isso permite que as pessoas se confrontem. Com mais consciência dos nossos problemas sociais, qualquer coisa que afete os direitos humanos vai repercutir muito. Isso começa a ficar mais claro, mais evidente. É doloroso, mas muito importante que fique mais evidente.


Com a informação em tempo real, tudo ganha audiência muito rapidamente, para o bem e para o mal. Até que ponto as redes sociais e o mundo virtual influenciam um comportamento intolerante?


Cecília Minayo: A internet tanto expõe extremos de violência quanto alimenta grandes correntes de solidariedade, de mudanças sociais. Acompanhamos pelas redes sociais, por exemplo, passageiros de um ônibus manifestando-se solidariamente em relação a um catador de latinhas e contra o motorista que queria expulsá-lo do veículo. Isso em Ipanema! [bairro da Zona Sul carioca]. Tudo está em movimento. Claro que esses comportamentos violentos e intolerantes não são casos isolados e que ainda há a mentalidade de que “bandido bom é bandido morto”. Mas o joio e o trigo andam juntos. Nós não vamos para o caos, de jeito nenhum. Aliás, nós estamos vivendo o caos, no sentido de que não há uma coisa somente boa ou somente ruim. Hoje a sociedade está à frente da política, dos políticos e das instituições.


As manifestações que tiveram início no Brasil, em junho do ano passado, poderiam ser consideradas um reflexo disso?


Cecília Minayo: Chamou a atenção que, nesses movimentos, o pessoal repudiava muito os partidos políticos e os políticos. Isso porque a forma como os partidos políticos atuam é a da mesma velha escola desse Estado fraco, que não é pai, é padrasto. Há algo maravilhoso acontecendo desde junho no Brasil. Não adianta falar que não tem pauta, porque tem e está clara. A pauta é a seguinte: nós queremos a sociedade do bem, com saúde, educação, transporte, que não sacrifique o ser humano; nós queremos saneamento, nós queremos moradia. Quer pautas mais primárias e mais fortes do que essas? Agora, sou absolutamente contra a violência, contra qualquer movimento violento, como depredar, tocar fogo no patrimônio público. Todos os estudos que temos feito apontam para o fato de que violência alimenta violência.


Reprimir os protestos da maneira como o Estado tem feito, criminalizando manifestantes, não seria uma violência ainda maior à nossa democracia?


Cecília Minayo: Temos estudado a polícia e eu diria que a maioria de seus integrantes é de bons policiais, que prestam um serviço fundamental à sociedade e têm pequeniníssimo reconhecimento. Há a polícia que não sabe lidar com o cidadão e trata-o como o inimigo, e, nesse caso, precisa responder por seus atos. Numa sociedade civilizada, temos que procurar meios não violentos sempre.


Quais seriam os caminhos para a transformação de uma sociedade violenta?


Cecília Minayo: Veja, trabalhei durante muito tempo na Baixada Fluminense [Rio de Janeiro], onde era comum haver grupos de justiceiros. A Baixada era governada pelos justiceiros – e justiceiros, a gente sabe o que fazem. Esse é um fenômeno forte, antigo, entranhado na sociedade brasileira. É o que fizeram no Guarujá [SP], em maio, com o linchamento de uma senhora espancada até a morte, confundida com uma sequestradora de crianças que praticava rituais de magia negra. Em São Paulo, ainda tem muita chacina. A transformação dessa sociedade violenta se dá pela educação e pela consciência de direitos. Por isso, o aumento desse grupo social que está saindo da pobreza é muitíssimo importante. Quanto mais incluirmos a sociedade nos seus direitos, mais vamos estar trabalhando para a paz. Conflito sempre vai existir. Mas conflito é bom. Conflito não é violência.


Há quem defenda que a exacerbação da violência tem a ver o com uma sensação de impunidade no país. Em que medida o endurecimento do estado penal traria resultado?


Cecília Minayo: Seria muito ruim. Um sistema penal ideal deveria fazer a socialização da pessoa para que ela saísse melhor, pudesse estudar, trabalhar, aprender um ofício. Mas isso não acontece. O sistema prisional brasileiro é uma catástrofe. Há experiências interessantes no nosso sistema judiciário, como as penas alternativas, que possibilitam à pessoa cumprir uma tarefa para a sociedade. Mas são experiências muito limitadas, em relação à encrenca que é o nosso sistema penal. Endurecer penas é um erro. Sob pena de cair num chavão, eu diria que ainda precisamos investir muito em educação. Apostar em uma educação realmente transformadora e na mobilização da sociedade são as saídas possíveis.


* Ana Cláudia Peres é jornalista da Revista Radis

Ensp Fiocruz

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