sábado, 20 de setembro de 2014

Como a participação pode melhorar nossa Democracia


Tarso Genro (*)

(*) Esse artigo de Tarso Genro inaugura o novo seminário virtual promovido pela Carta Maior, "Participação Social e Democracia", que debate um dos temas centrais para o aprofundamento da democracia brasileira: a necessidade de qualificar o sistema de representação política com práticas de democracia participativa.

A democracia participativa é uma metodologia de governança política e, ao mesmo tempo, significa uma possibilidade de rejuvenescimento da democracia representativa, inclusive para valorizá-la junto a vastos setores da população, principalmente perante aqueles que não têm uma influência cotidiana sobre o poder político e suas decisões. Os marcos normativos da participação da cidadania na gestão e na produção de políticas públicas estão inscritos, tanto na Constituição Federal (Art. 1º §único ), como na Lei de Responsabilidade Fiscal (Art. 48 § único). Os conservadores mais renitentes, quando combatem as ideias e práticas de participação direta, não se dão nem o trabalho de ler a Constituição do país e a própria Lei de Responsabilidade Fiscal!


No Estado do Rio Grande do Sul temos, sem traumas e sistematizado num Decreto (Dec. Nº 49.765, 30/10/2012), um Sistema de Participação Popular Cidadã, que envolve um Gabinete Digital, um Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, Conselhos Regionais de Desenvolvimento, Consultas por votação de prioridades e Plenárias do Orçamento Participativo. Estas instâncias produzem políticas públicas e decisões orçamentárias, que são acordadas ou servem de orientação ao Governo, para que ele tome suas decisões.

Com a tutela que as agências de risco e o capital especulativo, em geral exercem sobre os Estados endividados, os mandatários da representação política (originários que são exclusivamente de votações periódicas) vem perdendo a legitimidade por não responder a demandas sociais, cada vez mais complexas e fragmentadas. E também vem perdendo a capacidade de explicar os limites do seu poder e as debilidades de uma máquina pública burocratizada e não raro subordinada à força das corporações.


Enquanto o poder econômico exerce diretamente a sua influência em decisões do Estado, não só através do financiamento das campanhas eleitorais, mas também através da pressão direta de “lobies” sobre os Parlamentos e sobre os Executivos (criando uma sistema de poder “por fora” da representação), os “de baixo” têm poucas oportunidades de exercer sua influência direta sobre as decisões públicas. Nem têm condições de conhecer plenamente os mecanismos de funcionamento do Estado e a escassez dos seus recursos, abalados pelo endividamento público.


A democracia direta exclusiva é impraticável e tende ao ritualismo autoritário. A democracia representativa “pura” está cada vez mais carente de legitimação, pois não é aceitável que aqueles que querem participar das agendas públicas de qualquer ente federativo só possam fazê-lo através da delegação periódica pelo voto. A distância entre representados e representantes também é cada vez mais evidente, pelo crescimento da população e pelos mecanismos autoritários de controle de formação da opinião exercido pela grande mídia.


Os canais de democracia direta, tanto virtuais, como conselhistas ou por assembleias públicas, com regras universais de funcionamento, devem ser estimulados por todos os que querem fortalecer a democracia política. A pressão exclusiva do poder econômico e o jogo dos partidos - que são fundamentais na democracia, mas não esgotam a expressão da vontade pública - está comprometendo cada vez mais o Estado de Direito e o regime democrático e está estimulando, em boa parte da sociedade, o desejo de que tudo seja resolvido de forma “rápida” e autoritária.


O pacto democrático moderno baseado na representação, que transitou do Estado de Direito para o Estado Social de Direito, foi historicamente influenciado pelos sucessivos movimentos, desde o cartismo inglês. Ele passou pelas lutas mais atuais dos democratas republicanos, sociais-democratas e comunistas do século passado e agora ele se expande com a presença dos novos movimentos sociais. Mas o “cansaço histórico” da democracia, hoje, está flagrante, pois o pacto democrático moderno baseado exclusivamente na representação não consegue mais estimular mudanças nem dar efetividade aos Direitos Fundamentais.


O Estado de Direito “cansado” e a democracia política sem povo é o ideal do golpismo conservador, que pretende monopolizar o direito à liberdade como pura liberdade de dominar as instituições e aparelhar o Estado através da força do dinheiro e da manipulação da informação.


Este “cansaço” pode ser superado. Desde que se abram canais de influência direta para o povo opinar e decidir, não só sobre os rumos do Estado e das suas políticas, mas também para quebrar as barreiras burocráticas que separam o Estado do cidadão comum. Ao trazer a parte mais ativa e consciente do povo para testemunhar e influir nas decisões públicas, os governos se relegitimam e levam à cidadania, de forma mais intensa, os valores da democracia e da República. À democracia em crise se responde com mais democracia e não com menos participação.


A interposição de mecanismos de democracia direta num regime de representação aberto, como é o nosso da Constituição de 88, ao invés de desestabilizar o pacto democrático, como pensam os conservadores mais arcaicos, reforça o regime de representação e pode lhe dar mais autenticidade. E, assim, fortalece aqueles mandatários que querem ouvir a cidadania para tomar decisões sobre as políticas, nas quais o próprio povo é o principal destinatário.


Há um déficit democrático visível em todas as sociedades hoje, sejam elas mais desenvolvidas ou menos desenvolvidas. No caso do Brasil, esse descontentamento ficou muito claro nos protestos de junho de 2013. Esse déficit democrático se caracteriza, em primeiro lugar, por uma separação mais profunda e mais radical entre representante e representado. Em segundo, o erguimento de barreiras cada vez mais burocráticas entre o Estado e o cidadão comum. E, em terceiro lugar, pela produção de políticas públicas orientadas pela força normativa do capital financeiro.


Então é necessário que nós tenhamos a capacidade de promover uma invasão da democracia formal, para criar novas instituições, capazes de dar efetividade aos direitos sociais e econômicos conquistados em 88. Dar cores e vida à revolução democrática em curso, que pode ficar paralisada pelo sequestro do Estado e da Democracia pela especulação financeira e pela dominação ideológica promovida pela grande mídia.


(*) Governador do Estado do Rio Grande do Sul


Carta Maior

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