terça-feira, 30 de setembro de 2014

O enigma Canudos.

Eduardo Hoornaert.


1. Cheguei a me interessar pelo tema Canudos por ocasião de diversos simpósios organizados no Brasil e no exterior (na Colônia, Alemanha, por exemplo) em 1997, por ocasião do centenário de Canudos. Foi aí que percebi o quase consenso em torno da interpretação de Canudos apresentada por Euclides da Cunha. Naquelas comemorações, o autor dos ‘Sertões’ era considerado por muitos uma autoridade ‘inconteste’ e isso me estimulou a estudar o assunto. Hoje estou convencido de que o celebrado autor continua colocando um biombo entre nós e Canudos.


Em nenhum momento, ele considera Antônio Conselheiro uma pessoa normal. Não poupa qualificativos para desprestigiá-lo: o Conselheiro é um ‘heresiarca’, ‘desequilibrado mental’, ‘terribilíssimo antagonista’, estranho anacoreta de olhar sombrio, fulgurante e monstruoso, um montanista (do século II) perdido em nosso mundo moderno, um extravagante. Estranhei o consenso em torno desse autor: Maria Isaura de Queiroz chama o Conselheiro de ‘messias’ e nisso é seguido pelo autor americano Ralph Della Cava. O mesmo acontece com o romancista peruano Mário Vargas Losa (‘A guerra no fim do mundo’) e o historiador americano Robert Levine (‘O sertão prometido’). Ambos seguem Euclides da Cunha e Maria Isaura de Queiroz. Todos esses escritores parecem esquecer que, na época em que se preparavam freneticamente as expedições contra Canudos na cidade de Rio de Janeiro, soou uma importante voz destoante, a do escritor Machado de Assis. Cansado de ouvir vitupérios contra Antônio Conselheiro, ele escreveu no Jornal do Commércio, do Rio de Janeiro, as seguintes palavras: ‘Conselheiro, que Conselheiro? Não me ponham nome algum. Um que desafia a ordem e a lei e só com uma palavra de fé congrega três mil pessoas é alguém’. Para Machado, o Conselheiro é ‘alguém’, uma pessoa humana com quem se deve antes de tudo dialogar, que merece ser conhecido pelo que realmente é. O famoso escritor carioca aconselha então que se forme uma comissão para ir falar com o Conselheiro em Canudos. Machado de Assis vai ao âmago da questão, mas ninguém quer saber de sua proposta. Os ânimos estão muito excitados e sua recomendação cai no vazio. Não combina com o postulado fundamental da guerra de Canudos: o Conselheiro é um desequilibrado perigoso seguido por fanáticos ignorantes. Sem esse pressuposto, não há como fazer guerra. Decepcionado, Machado de Assis deixa de tocar no assunto em suas crônicas. Nesse episódio aparece uma síndrome que acompanha a história humana desde suas origens e que René Girard chama de ‘síndrome do bode expiatório’. O Conselheiro tem de ser sacrificado no altar da ordem e do progresso, senão a república tem de mostrar sua verdadeira face que é a de um golpe militar. Trata-se de destruir Canudos em nome da república, ou seja da ‘ordem’ e do ‘progresso’, a ordem burguesa e o progresso dos negócios. Em nome dessa ideia, é permitido pisar em cima das vítimas de Canudos. Para os militares que executam a vergonhosa e covarde campanha de Canudos e principalmente para os políticos do Rio de Janeiro, o repórter-escritor Euclides da Cunha cai do céu, pois ele consegue construir uma epopeia em cima dos fatos. O reino de Euclides já dura mais de cem anos e nada prediz que esteja chegando ao fim. Eis o que me levou a me interessar pela história de Canudos.


2. Uma coisa me parece clara: se Antônio Conselheiro chegou a agrupar tanta gente, é que seu modo de pensar e se comportar correspondia à cosmovisão do povo sertanejo. As pessoas reconhecem no Conselheiro uma figura ancestral, cuja imagem passa de geração em geração, basicamente fora do universo das letras, e remonta até os tempos bíblicos, atravessando a Modernidade, a Idade Média e os séculos da igreja grega (bizantina). Isso quer dizer que perdura no povo sertanejo um cristianismo relativamente imune à helenização que atingiu de cheio as classes cristãs letradas desde o século III (os autores alexandrinos) e que até hoje marca nossa maneira de entender o evangelho, pelo menos entre pessoas letradas. A chamada ‘religiosidade popular’, vivida predominantemente por iletrados, está mais perto da cosmovisão bíblica, que a religião praticada por pessoas escolarizadas. Essa religiosidade foca diretamente a contradição entre Deus e Satanás. Eis uma maneira de entender a vida e o mundo que hoje nos parece estranha e uma explicação. Um véu de incompreensão nos impede entender corretamente palavras como ‘apocalíptica’, ‘messianismo’, Satanás, anjo, demônio, céu, inferno, condenação, salvação. O livro ‘O messianismo no Brasil e no mundo’, da autoria de Maria Isaura de Queiroz, teve um grande sucesso, mas é baseado numa visão do messianismo que não corresponde ao que os autores bíblicos pretenderam dizer. Conto um episódio pessoal a esse respeito. Quando resolvi dar ao meu ensaio o título ‘Os Anjos de Canudos’ (editora Vozes, 1997) e sugerir aos editores uma capa em que eram representados dois anjinhos, alguns de meus leitores pensavam logo nos anjinhos pintados nas igrejas. Não perceberam que, no desenho da capa de meu livro, os anjinhos só eram aparentemente inocentes, pois estavam sentadas em cima do enorme cano do famoso canhão da quarta expedição contra Canudos e estavam colocando uma flor na boca do cano. Eram, na realidade, os anjos guerreiros de Deus contra Satanás da literatura apocalíptica, os príncipes angélicos Miguel, Gabriel, Uriel e Rafael, combatentes contra os demônios que governam a terra, disfarçados em anjinhos de aparência inocente. Pois por trás das imagens apocalípticas, que nos causam estranheza, existe uma análise consistente da sociedade. A linguagem bíblica de teor apocalíptico interpreta a sociedade de forma lúcida. Pensando bem, será que o mundo não é dominado por Satanás? Será que Deus não toma partido pelas vítimas de sistemas injustos? Será que os ‘anjos’ não lutam a favor dos desvalidos?



Os sermões do Conselheiro estão recheados de imagens bíblicas. Eles precisam ser lidos de forma contextualizada, pois o linguajar do beato é uma sedimentação literária de acontecimentos desde muito varridos pelos ventos da história. Os canudenses entendem o que o beato prega, eles interpretam sua guerra como uma guerra de Deus contra Satanás. As tropas que enfrentam são ‘do diabo’. As poucas palavras que o cineasta Antônio Olavo ainda conseguiu resgatar, nos anos 1990, da boca de parentes e conhecidos de sobreviventes, em seu filme documentário sobre Canudos (baseado em 3 anos de pesquisa, viagens por 7 mil quilômetros e visitas a 180 cidades do Nordeste), são de caráter bíblico: besta fera, anticristo, lei do cão, Deus, Satanás, anjos, demônios, céu, inferno, condenação, salvação, blasfêmia etc. Penso que é nesse sentido que, em sua pergunta, você fala em ‘ponto de vista teológico’. Realmente, tem muito a ver. Mas eu prefiro falar em ‘linguagem’, modo de se expressar. O que aconteceu (e continua acontecendo) é que as classes letradas do Brasil não entendem a linguagem dos sertanejos iletrados e acabam pensando que eles não pensam adequadamente. Alguns exageram e dizem que os sertanejos não pensam de forma nenhuma, são simplesmente fanáticos e ignorantes que pertencem ao passado, intelectualmente inferiores. Nesse rol de qualificativos entram termos como ‘messiânico’, ‘apocalíptico’ etc., sem a devida averiguação literária. Imbuídas de ideologias modernas de ‘ordem e progresso’, ‘desenvolvimento’, ‘crescimento’ e ‘avanço’, as classes letradas não deixam espaço para vastos setores deste país que não são tão ‘progressistas’ assim. Elas pensam que suas categorias são universais e qualificam de ‘religiosidade popular’ qualquer outra maneira de pensar. O tema é vastíssimo e aqui não é o caso de aprofundá-lo. Na mesma linha, Antônio Conselheiro permanece enigmático, como mostra a sua iconografia, mesmo aquela que pretende apresentá-lo de forma positiva. Ele nos vem apresentado como uma pessoa que vive fora da realidade e com quem não se pode conversar. Não aparece como uma pessoa normal.


3. Como escrevi acima, o tema do messianismo tem sido aplicado pela maioria dos autores aos movimentos oriundos no universo rural do Brasil. Em seu celebrado livro ‘O Messianismo no Brasil e no Mundo’, Maria Isaura de Queiroz acentua a ‘irregularidade’ e ‘atemporalidade’ desses movimentos. Em que tipo de pesquisa a autora baseia essas afirmações? A mesma pergunta pode ser feita a autores que procuram entender Canudos por meio de categorias marxistas e descrevem essa cidade como sendo uma sociedade sem classes, sem patrões nem empregados, onde se pratica o uso coletivo das terras. Na realidade, Canudos era um conglomerado humano normal, igual a qualquer cidade do interior do Nordeste: uma espinha dorsal formada pela rua principal com casas de alvenaria, habitada por comerciantes prósperos, que até faziam comércio (de couros) com o exterior, uma igreja exorbitante em suas dimensões grandiosas (há muitos casos no interior do Nordeste) e em torno os casebres dos pobres, de palma e adobe. Pobres e ricos, como em todos os lugares. Mas é verdade que ali a fome não existia, e isso explica o forte poder de atração exercido por Canudos. Os pobres vieram de todo canto habitar ali e fizeram de Canudos, em poucos anos (entre 1889 e 1897), a segunda cidade da Bahia, com aproximadamente 25 mil habitantes. Então Canudos tem nada de messiânico, mas é um lugar onde as pessoas não passam fome.


4. É preconceituoso pensar que Canudos incomodou as elites locais (os fazendeiros), pois é sabido que Canudos organizava de vez em quando ‘mutirões itinerantes’. Um grupo de pessoas ia a uma determinada fazenda da região para executar trabalhos de grande porte, que exigiam muita mão se obra, como construir uma barragem, cavar um canal ou um açude. Esses grupos ficavam por vezes longos meses nas ditas fazendas, comendo a boa carne e tomando leite à vontade. O clima não era de tensão, mas de colaboração. No início, a igreja tampouco se incomodou com Canudos. Inclusive, os vigários do interior costumavam convidar Antônio Conselheiro para pregar nas novenas do(a) padroeiro(a), o que rendia um bom dinheiro para as paróquias, pois o povo corria de longe para ouvir o beato. O arcebispo da Bahia começou a se incomodar quando um padre influente lhe disse que o Conselheiro era um ‘herege’. Ele mandou a Canudos dois frades italianos, novatos no Brasil, que não entendiam nada do país e se comportaram de forma arrogante, desafiavam e humilhavam os canudenses. De volta a Salvador, eles entregaram ao arcebispo um relatório péssimo da viagem. Um detalhe vergonhoso: o arcebispo mandou um recado ao ministro do interior, solicitando uma vaga num hospício de alienados para o Conselheiro. Sabemos como era a vida (ou melhor: a morte) nos hospícios desse tipo, no final do século XIX.

Quem se incomodou de verdade com Canudos foram as lideranças militares do Rio de Janeiro, as forças organizadoras da recém-criada república brasileira. No famoso sermão do Conselheiro contra a república, ele disse que a república não vinha de Deus, mas do demônio. Eis o que incomodou de verdade. Nos gabinetes do Rio de Janeiro, essa maneira de falar só podia ser expressão de uma mente louca, perigosa e enganadora.


5. Na década de 1990 aparecem diversas tentativas no sentido de elucidar o enigma Canudos. Só comento aqui brevemente o livro do historiador Marcos Antônio Villa, intitulado ‘Canudos, o povo da terra’ (Ática, 1995) e o comparo com o filme documentário de Antônio Olavo, já citado acima. Villa abandona logo a tentativa de se trabalhar com fontes orais e alega que, após 1950, não há mais como encontrar pessoas que vivenciaram os acontecimentos. Ele então descarta a ‘história oral’ e se dedica exclusivamente à análise de documentos escritos, com competência. Mas, nos mesmos anos 1990, o cineasta Antônio Olavo viaja longamente pelo sertão para resgatar palavras diretas da boca de pessoas que têm alguma lembrança da guerra, falam o linguajar do sertão e usam categorias linguísticas próprias do povo sertanejo. Eis onde reside a diferença. Enquanto o historiador Villa não enxerga nenhuma possibilidade de trabalhar em cima de um material oral, o cineasta Olavo consegue nos apresentar uma imagem de Canudos baseada no contato direto com a realidade sertaneja. Temos razões para desconfiar, num conflito como esse, das fontes escritas. Até que ponto essas fontes representam o modo de pensar dos canudenses? Ou não o representam de forma nenhuma? Não repetem sempre o mesmo ponto de vista? O resultado dessa indefinição metodológica é que, mesmo após os esforços dos anos 1990, o enigma Canudos persiste, o que não deixa de ser assustador, pois de um dia para outro pode eclodir um episódio parecido, que provavelmente teria o mesmo desfecho, caso a nação brasileira não consiga decifrar esse enigma.


6. Canudos está sendo apresentado como uma epopeia, e isso também dificulta sua compreensão. A epopeia produz um prazer estético, é capaz de atrair, apaixonar e emocionar, mas não é um gênero literário apto a provocar um diálogo entre escritor e leitor, ao contrário do romance e da novela, por exemplo. Paulo Freire acentua o valor pedagógico de textos dialogais, textos que provocam as pessoas a pensar e assumir algum tipo de compromisso em relação à tragédia relatada no texto. Ora, Euclides da Cunha é um autor épico, ele conta uma grande história mas não questiona o leitor. É nesse sentido que sou grato ao professor José Calasans, na época professor da Universidade Federal da Bahia, pelo fato de me ter apontado o livro de Manuel Benício, intitulado ‘O rei dos jagunços’, editado em 1899 pela Tipografia do Jornal do Commércio no Rio de Janeiro. Eis um texto que desafia e mexe com a gente, exatamente por ser escrito por alguém que teve de abandonar o campo de batalha em Canudos por escrever textos que incomodaram os militares. Como Euclides, Benício foi repórter no cenário da guerra, desta vez a serviço do ‘Jornal do Commércio’ (do Rio de Janeiro), mas suas reportagens não agradaram ao Clube Militar do Rio de Janeiro e no dia 29 de julho de 1897, elas de repente desapareceram das colunas do jornal. Os militares as achavam ‘inconvenientes’. No momento em que se abre espaço para discussão, a voz autoritária intervém e suspende o diálogo por considerá-lo inconveniente. Benício ficou decepcionado e amigos lhe aconselharam escrever um livro sobre sua experiência. As informações históricas contidas em meu ensaio ‘Os Anjos de Canudos’ provêm em parte do quarto capítulo do livro de Benício, uma espécie de romance com base documental. Ali ele escreve como as famílias sertanejas fecharam as casas quando viram o exército se aproximar. Eram tropas estrangeiras a invadir seu mundo. Não são unicamente os canudenses que sentiam as expedições militares como invasões violentas em seu mundo, mas os sertanejos em geral. Ao revelar casos como esse, Benício desnuda as mentiras divulgadas pela imprensa da época e desmascara a tese da ‘anormalidade sertaneja’. As reações dos habitantes diante das tropas eram perfeitamente normais. Enfim, o texto de Benício me parece apropriado para abrir espaço a uma discussão em profundidade sobre Canudos e foi por isso que nele me aprofundei para escrever meu ensaio ‘Os anjos de Canudos’ (Vozes, 1997).


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