quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Aborto, questão de Saúde Pública

Wadih Damous

As fotos de Jandira Madalena dos Santos, estampada nos principais jornais do país, não deixam dúvidas: a jovem, de 27 anos, é uma moça bonita. Jandira está desaparecida desde o dia 27 de agosto, quando saiu de casa para fazer um aborto clandestino. A própria família já não sabe se ainda está viva.

A polícia procura três suspeitos de envolvimento no caso. Eles integrariam uma quadrilha que mantém centros clandestinos para a prática de abortos. Dois são policiais, um dos quais, suspeito de fazer parte de uma milícia.

Infelizmente, casos como este não são incomuns. A cada dia morrem outras Jandiras de Norte a Sul do país, vítimas das condições precárias em que fazem aborto.

Devido à criminalização do aborto, não existem dados oficiais sobre seu número. Mas, com base na quantidade de procedimentos de curetagem pós-aborto realizados por ano no SUS, podem ser feitas estimativas. O ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, representante do Grupo de Estudos do Aborto (GEA), que há mais de dez anos coordena um serviço de abortamento legal no país, afirma: “Acontecem cerca de um milhão de abortos provocados e em torno de 250 mil internações para tratamento de complicações pós-aborto por ano. É o segundo procedimento mais comum da ginecologia em internações.” (http://noticias.terra.com.br/brasil/com-1-milhao-de-abortos-por-ano-mulheres-pobres-ficam-a-margem-da-lei,0401571f0cd21410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html)

Se as mulheres de classe média que querem interromper uma gravidez indesejada podem fazer aborto com toda a segurança, em clínicas caras e seguras, o mesmo não ocorre com as pobres, obrigadas a realizá-los em condições precárias e com graves riscos para a saúde.

Assim, não se trata de defender ou não o aborto, mas de reconhecê-lo como uma realidade em nosso país e de buscar formas de limitar ao máximo seus danos.

Vale ver como a questão é tratada em outros países.

Nos Estados Unidos, o aborto é livre no primeiro trimestre de gestação, por decisão da gestante, aconselhada por seu médico. No segundo semestre, o aborto continua permitido, mas o Estado pode regulamentar o exercício do direito se houver risco para a saúde da gestante.

Na França o aborto também é legal. Em 2001 foi promulgada uma lei que ampliou o prazo de possibilidade de interrupção da gravidez, de dez para 12 semanas, além de tornar facultativa para as mulheres adultas a consulta prévia em instituições de aconselhamento e informação, antes obrigatória.

Ele também é legal na Itália. Lá, porém, as autoridades sanitárias e sociais discutem com a gestante, e, se esta consentir, com o pai do feto, soluções que evitem a interrupção da gravidez. Mas a última palavra é da mulher. Afora casos de urgência, há um intervalo mínimo de sete dias entre a data da solicitação do aborto e sua efetiva realização, para assegurar o tempo necessário para a reflexão da gestante.

Na Alemanha, lei promulgada em 1992 permite o aborto nos primeiros três meses de gravidez. A gestante, no entanto, deve submeter-se a um serviço de aconselhamento, que tenta demovê-la da ideia, e aguardar um período de três dias.

Aqui perto de nós, o Uruguai nos traz uma experiência interessante. Lá, o aborto foi descriminalizado em outubro de 2012. Com isso houve não só uma queda vertiginosa no número de mortes maternas, quanto – pasmem! – no número de abortos realizados. Segundo números apresentados pelo governo, entre dezembro de 2012 e maio de 2013 não foram registradas mortes maternas como consequência de aborto, e o número de interrupções de gravidez passou de 33 mil por ano para quatro mil. Esse último dado se explica porque, junto com a descriminalização, o governo implementou políticas públicas de educação sexual e reprodutiva, planejamento familiar e uso de métodos anticoncepcionais, assim como serviços de atendimento integral de saúde sexual e reprodutiva.

Aqui entre nós, caso seja descriminalizado o aborto, as pessoas que, por convicção religiosa, não desejarem fazê-lo terão todo o direito. Ninguém as obrigará a tal. Mas não é razoável que queiram estender essa decisão às demais.

Um Estado laico, como o brasileiro, não pode pautar suas decisões por preceitos religiosos.

Já passou da hora de tratar o aborto como problema de saúde pública, e não como questão policial.

Não queremos novas Jandiras.
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Wadih Damous é presidente licenciado da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB e da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro

Diário do Poder

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