sábado, 20 de setembro de 2014

Um goleiro, uma torcida e o nosso racismo…




Parece que a polêmica entre o goleiro Aranha, do Santos, e a torcida do Grêmio ainda está longe de acabar. Depois do episódio lamentável em que o atleta foi chamado de “macaco” por torcedores – uma delas inclusive foi identificada e responsabilizada -, o jogador foi insistentemente vaiado durante o mais recente jogo entre os dois times. Na minha opinião, este ódio se deve ao fato do goleiro santista ter se comportado de maneira exemplar e pouco comum no Brasil. Não, ele não deixou “para lá” as ofensas racistas, nem quis se encontrar com a acusada, que agora se diz arrependida e não para de chorar em frente ás câmeras.



A torcida do Grêmio não perdoou altivez do atleta negro. Muita gente falou que ele queria “aparecer”. Pelé disse que não era motivo para tanto escândalo já que ele mesmo já ouvira coisas piores em campo, no passado. Acho que a história é um triste retrato do racismo brasileiro. Aquele racismo que não se diz racista: é só brincadeira, modo de falar, bobagem…mas, quando o ofendido reage, se mostra indignado, reclama, as coisas mudam de figura. O ódio transparece e o agressor se torna vítima. (Os atos de violência contra a moça foram totalmente condenáveis, é bom destacar).


O racismo no Brasil tem origem na colonização portuguesa, idealizada com base em um modelo de sociedade a ser implantada nas terras da América: patriarcal, baseada na posse da terra, na religião católica, no conceito de cor e de pureza de sangue. Transplantava-se assim, um ideal de sociedade europeia, que obviamente passou por uma série de adaptações para se consolidar na Colônia.


Ser ”branco” era mais que uma questão de cor. Era ter sangue puro. Apresentar uma árvore genealógica sem “mácula” era fundamental: os “homens bons” não poderiam ter parentesco com judeus ou cristãos novos, homens “mecânicos” (trabalhadores manuais), negros ou mouros. O status do indígena foi vacilante: ora era valorizado, como aliado na missão colonizadora; ora era classificado como “negro da terra”, ou seja, de “raça inferior” – esta última visão acabou se tornando dominante.


No Brasil de então, era extremamente raro encontrar alguém que preenchesse tais requisitos. Mesmo porque a escassez de mulheres brancas limitava muito a formação de famílias socialmente desejáveis. Desta forma, a sociedade foi se formando com base nas aparências: se a pessoa não tinha árvore genealógica “pura”, era possível fabricá-la. Esconder parentescos, comprar honrarias, adulterar documentos – esses eram os expedientes usados para driblar as regras existentes. Negros e mulatos ricos podiam ser aceitos, desde que apagassem suas origens raciais.


Essa carga negativa das raças “inferiores” – que acabou se voltando mais para os africanos e também para os indígenas – foi um dos elementos formadores da sociedade brasileira. A escravidão, amplamente aceita e até justificada pela Igreja, cristalizou o racismo entre nós. Necessária para viabilizar a economia da época, baseada no monopólio e voltada para o mercado europeu, a escravidão reservou aos africanos e seus descendentes o trabalho mais árduo e inferior que existia – mesmo sendo fundamental para a manutenção do sistema colonial.


Em vista deste quadro, não é de se estranhar que, após a Abolição (1888), a solução mais cotada para a questão racial tenha sido a do “branqueamento” da população, ou seja, um processo com objetivo de “apagar” da História do Brasil o africano. Ao invés disso, o Brasil se tornou um país miscigenado, com uma população resultante da mistura de diversos povos, mas que – paradoxalmente – recusa-se a encarar as heranças do escravismo. A “democracia racial” defendida por Gilberto Freyre, e por muitos depois dele, nada mais é que um intrincado e sutil jogo de aparências, em que fingimos estar em uma sociedade cheia de harmonia e igualdade. E então, aparecem episódios como este, em um jogo de futebol, para mostrar a nossa verdadeira cara…


- Márcia Pinna Raspanti

Historia  Hoje

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