Sociólogo, diretor do Ibase
Estamos mergulhados no clima de disputa pré-eleitoral como nunca. Cada dia amanhece com notícias novas. A registrar alguns picos sinalizadores de extrema incerteza sobre o que será o amanhã. Já tivemos aquele momento amorfo de nenhuma expectativa de mudança. Veio aquele outro, de morte trágica de um candidato até viável, que alternou a disputa de ponta cabeça. Depois, a ascensão vertiginosa de uma mulher, Marina Silva, que galvanizou o mal-estar difuso com a política que está no impregnado ambiente público desde as surpreendentes manifestações de junho de 2013. Num curto espaço de tempo, todas as expectativas se desfizeram e refizeram em outras bases. Aécio não evaporou, mas naufragou na planície. As rochas sólidas de um PT bem implantado nacionalmente e as inegáveis conquistas sociais nos últimos 12 anos não só seguraram a Dilma como a deixam numa posição vantajosa. Que quadro eleitoral! Só uma viva democracia é capaz de produzir isto.
Estamos a menos de um mês das eleições. Vendo o contexto, celebro o que a democracia nos propicia. Por mais angustiante e estranha que seja a incerteza reinante, isto é muito melhor que a certeza aplastadora de ditaduras ou o beco sem saída de democracias ritualizadas e de baixa intensidade. Absolutamente claro que a propaganda eleitoral gratuita em nada contribui, com aquelas mulheres e homens se “vendendo” para a cidadania em troca do voto – parecendo santinhos, mas que nos passam uma sensação inversa. Celebro no momento a possibilidade de debater o país, fora do alcance da grande mídia, cujos sensores são incapazes de reverberar o que se passa nas ruas, nos bares, na intimidade das famílias, no trabalho, nas praias e parques. Aliás, a grande mídia toma partido e tenta fazer nossas cabeças a todo custo para uma volta atrás, ao desenfreado neoliberalismo, com ranço de volta ao saudoso passado de uma classe dominante não acostumada a ser derrotada.
Chamo atenção para um fato surpreendente. Não me lembro de tanto debate político no cotidiano como agora. Em toda parte, basta se formar um pequeno grupo que o assunto do momento é política. Política com p maiúsculo, pois predomina um esforço de se informar e entender sobre a melhor alternativa eleitoral para avançar em democratização e em direitos de cidadania entre nós. Trata-se de um de debate de opiniões sobre os rumos necessários para o país, debate essencialmente cidadão, pois promovido por quem, pelo voto, decide em última análise a parada. Fazia tempo que um fenômeno assim não acontecia entre nós. A propaganda gratuita em nada contribui para nos fazer debater e buscar opções. Ela é maçante e ridícula, ponto! Todas e todos estamos diante de um dilema criador: como exercer nosso poder instituinte e constituinte de cidadãs e cidadãos para apontar uma direção ao país. O momento é tão confuso e de mal-estar e incertezas que até é difícil ver com clareza a possível hegemonia que vai ser constituída com o primeiro e, hoje quase certo, segundo turno das eleições. Como hegemonia se constrói com emoções + convicções, segundo o mestre Gramsci, começa a ficar claro que isto favorece a candidata à reeleição, Dilma. Para o lado de Dilma até sobram convicções sobre as possibilidades de rever e avançar, inaugurando um novo ciclo de aprofundamento das mudanças apenas iniciadas.
Mas falta um bocado daquela emoção envolvente. Pela novidade, emoções em torno a Marina transbordam, mas as convicções rareiam a cada dia após o pique inicial. Pior, ela passa mais a sensação de um barco entregue a timoneiro que não sabe o rumo a seguir, com idas e vindas que não conseguem dissimular a subordinação difusa a uma agenda basicamente conservadora. O candidato Aécio, além de nada emocionante naquele seu jeito de distanciamento da galera, assumiu descaradamente a agenda nada convincente, hoje, do neoliberalismo que produziu a maior crise dos últimos tempos no mundo. O que também merece reflexão nesta eleição é o aprofundamento do fosso entre eleição majoritária para presidente e tudo mais. É como se só a eleição de presidente efetivamente contasse em termos da grande política, de disputa de projetos e rumos para o país. A eleição de senadores e de deputados federais, de governadores e de deputados estaduais aparece como o espaço reservado para a política de sempre, do não compromisso com sonhos, ideias e projetos, meramente um mercado político de favores, que denigre a representação política. Como a conquista pelo voto de uma hegemonia no plano do executivo federal, através da Presidência da República – própria do nosso sistema constitucional e cultura política– vai cimentar coalizões partidárias para governar?
Finalmente, um ponto muito essencial na conjuntura eleitoral. Apesar de estar na agenda pública, o debate sobre reforma política da própria Política, enquanto criação da vida em comum e o sentido de pertencimento como sujeito de direitos iguais, é muito marginal nos debates da cidadania. O incrível é que a contestação da representação política foi uma questão central nas surpreendentes manifestações de junho de 2013. De qualquer modo, registo aqui o que me parece mais destacável deste momento que estamos vivendo. Por vias que me parecem surpreendentes, cresce no Brasil uma consciência autônoma de cidadania, que não se deixa levar. Voltamos a sentir a saudável vontade de trocar com nossos amigos e amigas sonhos e ideias sobre a conjuntura política e sobre as possibilidades de incidir nela para mudar. Se os programas eleitorais pela televisão nos passam imagens e discursos desmobilizadores, nada como transformar o azedo limão que engasga em um suco que revitaliza.
A incerteza é inerente à democracia. Por nada estar definido ou ganho de antemão, nos animamos a participar da disputa eleitoral. Por mais retumbante que possa ser a vitória em uma eleição, o resultado obtido será uma nova incerteza sobre como vai funcionar a correlação de forças assim definida. A democracia é, definitivamente, um pacto de incertezas sobre o futuro, que nos faz viver em busca permanente no presente.
Ibase
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