A arte de disfarçar linguiças
Em longa entrevista para o Otto Lara Resende, Nélson Rodrigues observou que, se pudesse dar um conselho aos jovens, diria apenas: “Envelheçam!”. Quando li isso pela primeira vez, torci o nariz. Com o tempo, sábio guru, entendi melhor a convocação rodrigueana. Que tal substituir envelhecer por amadurecer?
Jacques Gruman
A arte de viver/É simplesmente a arte de conviver... /Simplesmente, disse eu?/ Mas como é difícil! (Mario Quintana)
Essa me contou um amigo. Funcionário do antigo BNDE, foi convidado para uma palestra que seria proferida no auditório do banco pelo economista argentino Raul Prebisch. Figura destacada na CEPAL – Comisión Economica para América Latina y Caribe, suas palavras eram aguardadas com certa ansiedade. Afinal de contas, estávamos nos anos de chumbo da ditadura Médici e eram muito raras as oportunidades de se ter contato com técnicos estrangeiros que não seguiam a cartilha de Delfim Netto e seus Blue Caps. Casa cheia, Prebisch, já avançado em anos, surpreende. Diz que a idade havia soltado as amarras, não dava mais bola para censura ou obrigações protocolares. Isto posto, começou a analisar vida e obra de um ilustre conterrâneo seu: o Che Guevara. Deitou falação, elogiou o Che e saiu ovacionado pela maioria. Que terão pensado, entretanto, os tecnocratas aturdidos que esperavam por gráficos e estatísticas ? No céu nublado daquele Brasil, controvérsia era anátema.
Dou um salto para o reacionário e polemista genial que foi Nélson Rodrigues (que abismo entre ele e a direita histérica, ultrassectária e rancorosa que habita hoje os meios de comunicação!). Em longa entrevista para o Otto Lara Resende, observou que, se pudesse dar um conselho aos jovens, diria apenas: “Envelheçam !”. Quando li isso pela primeira vez, torci o nariz. Como assim ? Acelerar a fase das grandes explosões hormonais, das descobertas, da força plena, dos cabelos negros, da crença na imortalidade, seria mesmo um bom negócio ? Com o tempo, sábio guru, entendi melhor a convocação rodrigueana. Que tal substituir envelhecer por amadurecer ? Não se trata de um jogo de palavras. A fatalidade biológica, que nos levará inevitavelmente para o buraco e o Nada, é uma percepção dura e poderosa, porém limitada, do envelhecimento. Antes de encontrar a Magrinha e seu carro fantasma podemos criar tons diferentes para a Vida, dar oportunidade para recontar – e transformar – o que parecia imóvel no passado, exercitar o diálogo sem medo de desmoronar. Isso propôs Prebisch e, à sua maneira, o Nélson.
Há dois dias, terminaram para os judeus os chamados Dias Terríveis. É o período que vai do Rosh Hashaná, o Ano Novo, ao Iom Quipur, dia de jejum total para os praticantes e que determina, de acordo com a tradição, se o Juiz Inacessível vai dar mais um ano de vida para os que fizeram um balanço sincero de seu comportamento no ano anterior. O Menino teve sua fase religiosa. Com treze anos, experimentou o jejum integral. Ficou orgulhoso, mas a história daquele dia remoto não terminou bem. Sem qualquer orientação, quebrou o jejum com ... uma pizza ! Péssima ideia. O organismo, debilitado pela fome, reagiu à altura, transformando a modesta obra do pizzaiollo da praça Saens Peña em vomito. Gula: primeiro pecado a expiar no ano seguinte ?
Passada a etapa de obediência ancestral, veio, alguma surpresa ?, a negação absoluta. Queria distância daquilo tudo. Não podia haver beleza naqueles rituais, naquelas obrigações sem sentido, naquelas crenças petrificadas. Surgia o Ateu Arrogante, debochado, inacessível às sutilezas, impenetrável ao diálogo. Por artes de berliques e berloques, abriu-se uma brecha na muralha. O pequeno raio de luz foi suficiente para iniciar uma dança que ainda está em curso. O Menino percebeu que podia permanecer ateu, mas olhar para algumas tradições como quem lê um livro de poesia. Há tantos significados que se pode garimpar pedras preciosas. Continua desconfiando dos fanáticos e dos que se apegam a dogmas como botes salva-vidas. Esses viverão a ilusão da linha reta. Neste ponto, retornou ao Iom Quipur.
A abertura do jejum é tão potente que se faz pela música. Chama-se Kol Nidrei, ou todos os votos/promessas. Diz-se que nasceu durante a conversão forçada dos judeus ao cristianismo, tão lamentavelmente ligada à expulsão da Península Ibérica, ordenada pelos reis católicos espanhóis e portugueses no final do século XV. Daí nasceram os cristãos-novos, que usavam artifícios engenhosos para manter sua crença original. Um bom exemplo disso são as alheiras, petisco popular em Portugal. Como os judeus observantes não consomem carne de porco, aqueles que fossem vistos em público comendo uma linguiça passariam como insuspeitos de uma “recaída”. Sabendo disso, judeus recheavam a pele da linguiça com uma pasta à base de alho, sem pedaços de porco. Mantinham a aparência e não quebravam a regra alimentar. A letra do Kol Nidrei fala exatamente dos atos que praticamos contra a nossa vontade e da afirmação de que, naquele momento, eles seriam esquecidos e todos seriam considerados iguais. Além disso, e num trecho surpreendente, declara-se que o julgamento comunitário é tão importante quanto o divino. Escrito para ser falado numa sinagoga, dá o que pensar. Quanto sentimento de culpa, flagelo da Modernidade, poderia ser evitado usando a lógica multissecular do Kol Nidrei ! A música inspirou um não-judeu, Max Bruch, a compor uma das melodias mais pungentes que conheço. Se tiverem a curiosidade de conhecê-la, visitem http://www.youtube.com/watch?v=5DPV35r49wI e ouçam a magistral interpretação do violoncelista Mischa Maisky.
Penso nas imagens de Livro da Vida e período de avaliação pessoal. Não acredito em predestinação. O futuro não existe, é uma construção mutante, sujeita a solavancos e imprevistos, sem xamãs, bolas de cristal, búzios, cartas. No entanto, quantas vezes somos atropelados por “falta de tempo”, pela incapacidade de reservar alguns minutos por dia para refletir e planejar o que queremos ? Acabamos engolidos por forças externas incontroláveis, por ambições de terceiros, por enigmas que não são os nossos. A tradição do Quipur convida a mudar o parâmetro. Não jejuo, nem frequento a sinagoga. Mesmo assim, aprendi a não me sentir ameaçado ou ofendido lendo e pensando sobre este universo simbólico. Pelo contrário: seguindo Prebisch, não tenho mais o menor problema em dizer que me enriqueço com ele.
As religiões, admito, têm grande poder de sedução num mundo fragmentado, ansiogênico, violento, egoísta. Propõem um toque de reunir, acolhem rebanhos, consolam solitários, oferecem um cafuné, adotam, criam sentidos, dão (suas) respostas. Não sigo este caminho, mas reconheço seu peso. Elas são absolutamente incapazes de explicar ou encontrar soluções para as gigantescas desigualdades que dividem as Criaturas em privilegiados e condenados desde o berço. Somos capazes de mandar uma nave para além do sistema solar, depois de viajar por mais de 36 anos e se distanciar quase 20 bilhões de quilômetros do Sol. Ao mesmo tempo, assistimos indiferentes e resignados a morte, por diarreia, de quase 1,5 milhão de crianças por ano em todo o planeta. Diarreia ! Descartando os “pecados” como explicação inaceitável, é fora dos templos que os homens buscarão saídas para o que é injusto e criminoso. Como não somos ciborgues, umas pitadinhas de sabedoria simbólica podem nos fortalecer nesta luta duríssima.
Carta Maior
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