segunda-feira, 22 de setembro de 2014
Drummond e a explicação da Vida: por Carpeaux
O texto abaixo foi publicado em 2 de novembro de 1952 no antigo Diário Carioca. É assinado pelo maior erudito da cultura brasileira de sua época e busca decifrar o enigma que a poesia de Drummond já propunha então. Nunca mais reeditado, em periódico ou livro, o artigo de Otto Maria Carpeaux é um dos muito itens levantados no processo de edição de Poesia 1930-62, no qual acabou por não ser incluído.
Otto Maria Carpeaux
Carlos Drummond de Andrade é dos homens mais sérios que conheci em minha vida, e justamente em relação a ele cometi, há um ano, gafe tremenda. Fiando-me em magnífico erro de impressão, anunciei no dia 31 de outubro de 1951, triunfal e publicamente, o qüinquagésimo aniversário do amigo… O poeta não me perdoou. Pouco depois, mandou-me seu novo volume, Claro enigma, com a seguinte dedicatória:
O enigma é claro: o claro, obscuro.
Se decifrares meus arcanos,
caro Carpeaux, prometo e juro
que farei logo cinquenta anos.
O dia chegou. Faz 50 anos o poeta. Mas eu, confesso, ainda não consegui decifrar-lhe os arcanos. Carlos Drummond de Andrade, cuja poesia é das mais profundas experiências espirituais da minha vida, continua para mim um claro enigma.
Certa vez o poeta falou-me da necessidade de construir algo como uma nova arte poética. É admirável esse desejo do individualista de limitar sua liberdade. Mas não acredito que tal coisa, espécie de código da poesia moderna, possa existir. E se existisse, só seria para ser infrigido pelo poetas autênticos. A poesia, moderna ou antiga, não pode ser regulamentada. Quando muito, pode ser definida.
O poeta Carlos Drummond de Andrade sempre fala, em sua poesia, de si mesmo sem trair jamais seu segredo; seu claro enigma
Não me julgo, evidentemente, autorizado para fazê-lo. Mas posso citar outro autor, mais abalizado. Na revista filosófica italiana Aut-aut, editada por Enzo Paci, li há pouco a tradução de uma conferência do poeta Gottfried Benn, cuja poesia apresenta, aliás, certas semelhanças com a de Drummond. Há quatro elementos ou antes sintomas, diz Benn, que caracterizam a poesia moderna: cuja presença, respectivamente ausência, permite diagnosticar se uma poesia, escrita em 1952, é realmente de 1952. O primeiro sintoma é a falta de relação direta entre os objetos no poema, por exemplo a paisagem, e o eu do poeta que fala. O segundo sintoma é a intensificação da tensão verbal pela supressão da partícula “como”, que anunciava, antigamente, as comparações e metáforas. O terceiro sintoma de modernidade seria a ausência de cores, que, sendo essenciais na pintura, são meros clichês quando transpostas para a expressão verbal. Enfim, a poesia moderna não tolera nem as menores veleidades de sentimentalismo.
A supressão das relações diretas entre a paisagem e o état d’âme [estado de alma] é evidente no poeta que escreveu os versos seguintes:
No Brasil não há outono
mas as folhas caem.
Só é uma essa sugestão; mais não permite o retraimento característico do poeta Carlos Drummond de Andrade que sempre fala, em sua poesia, de si mesmo sem trair jamais seu segredo; seu claro enigma.
Quanto à introdução imediata das metáforas, sem aquilo que se chama “preparação das dissonâncias” na música, permito-me citar o famoso termo técnico de T.S. Eliot: tão profundamente sente o poeta a “dissociação da sensibilidade” no mundo real que ela já não parece na sua poesia. Eis seu lado mais forte. O que, por outro lado, lhe falta em música, em colorido, é justamente sintoma da ausência completa de clichês em sua poesia, sejam cores, sejam atitudes sentimentais. A essas últimas prefere o sarcasmo, maneira sua de reagir à necessidade: à qual dedicou seu “Poema da necessidade”. Drummond é moderno.
Drummond é moderno, de 1952, conforme todas as exigências de Benn. Mas já foi igualmente moderno em 1930, apesar da evolução formidável que se verifica entre Alguma poesia e a poesia muita de Claro enigma. No meio do caminho, em Sentimento do mundo, estão os versos do poeta que li entre os primeiros para nunca mais esquecê-los:
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade
Chama-se “Mãos dadas” o poema. Em “A máquina do mundo”, no volume Claro enigma, encontramos o poeta continuando seu caminho, “de mãos pensas”. A atitude mudou. Mas Drummond fica o mesmo.
Aquele verso sobre o “tempo presente” é capaz de sugerir – e já me sugeriu – interpretações erradas que a própria evolução do poeta desmentiu. Hoje já penso de maneira diferente. A coerência ferrenha do poeta, “oitenta por cento de ferro na alma”, antes sugere outras considerações, sobre a ligação indissolúvel entre a arte e o caráter, em toda poesia autêntica. O caráter, ao sentido humano da palavra: talvez resida ali o claro enigma de Carlos Drummond de Andrade? Não posso continuar o raciocínio, porque – depois dos muitos “é preciso” que o poeta enumerou no “Poema da necessidade” – também é preciso respeitar o retraimento insular de sua personalidade poética. Ao claro enigma do poeta oponho o meu, uma fórmula matemática: “Presente – modernidade – I – permanência”. Drummond é poeta moderno: mas, disse Hofmannsthal, “para a vida do Espírito, tudo está sempre presente”. O sentimento de permanência, inclusive no tempo presente, talvez lhe tenha sugerido a escolha, para epígrafe de Claro enigma, da frase de Valéry: “Les évenements m’ennuient”. Porque não contam, em face da permanência da qual a poesia de Carlos Drummond de Andrade dá testemunho. Quem deseja saber mais, consulte o volume Claro enigma onde encontrará os versos seguintes:
[...] essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida.
Eis a definição da poesia de Carlos Drummond de Andrade.
Otto Maria Carpeaux
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Blog da Cosac Nayfe
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