terça-feira, 16 de setembro de 2014

E eram todos pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas

Marcia Amantino.

A preocupação com o corpo do índio e com seu controle será item importante do processo de cristianização e, consequentemente, das formas encontradas para a colonização do Novo Mundo. As imagens idílicas a respeito dos nativos também podem ser verificadas nos primeiros relatos dos jesuítas que vieram, de acordo com sua afirmação, realizar a salvação daquelas almas. As cartas dos anos iniciais deixam transparecer a crença de que seria fácil acabar com os “maus costumes” indígenas. Dentre eles, os mais preocupantes eram a antropofagia, o seminomadismo, as condutas sexuais vistas como depravadas, a presença dos pajés e a mancebia generalizada. Outro empecilho à conversão total do gentio era seu costume de pautar sua vida e cotidiano pelo que havia sido revelado pelos sonhos, pelas adivinhações ou transmitido por divindades ao ingerirem suas bebidas (cauim) e alucinógenos. O padre Anchieta sabia que não seria tarefa simples, pois eles utilizavam as bebidas de forma contínua e, em sua opinião, de maneira desregrada.


Com exceção da presença ameaçadora do pajé, todos os demais problemas identificados como perturbadores da boa conduta eram decorrentes, direta ou indiretamente, dos usos que os indígenas faziam de seus corpos e dos alheios. O corpo indígena, nu e praticante de atos considerados pelos religiosos como ofensivos a Deus, precisava ser domado.


O padre Nóbrega rapidamente identificou que impedir a nudez indígena era um ponto crucial para o avanço da catequese. Assim, em 1549, lamentava a falta de algumas ceroulas, o que levava uma alma a deixar de ser cristã e de conhecer seu criador. Os índios até aceitavam as roupas dadas como presentes, mas as usavam quando e como queriam. Para desespero do padre Anchieta, em um dia saíam com alguma peça na cabeça e mais nada; em outro, apenas de sapatos. A nudez continuava sendo um grande obstáculo ao avanço da civilização, mas não só.


A sexualidade indígena, vista como desregrada, colocava em perigo o processo de colonização, na medida em que os prazeres sexuais estavam diretamente ligados às concepções culturais dos povos autóctones e não aos padrões tidos como corretos dos europeus cristãos. Na percepção dos religiosos, além dos índios praticarem o sexo quando, como, com quem e onde queriam, não possuíam nenhum interdito. Tentando conhecer melhor suas ovelhas, nada cordatas, os religiosos trocaram entre si informações a respeito da sexualidade indígena e do homossexualismo, símbolo do poder dos demônios sobre o grupo em questão, o que apareceu em algumas correspondências.


Em 1551, o padre Pero Correia, em carta para os religiosos que estavam na África, sugeria que era importante a troca de informações sobre os povos das duas regiões, porque o comportamento dos índios se assemelhava muito ao dos mouros. Citava como exemplo o fato de ambos terem o hábito de possuir muitas mulheres, pregar suas crenças de madrugada e gostar do “pecado contra a natureza”, ou seja, a sodomia. Concluía a carta afirmando que havia entre as índias algumas que não só pegavam em armas, mas também realizavam outras funções de homens e eram casadas com outras mulheres. Chamá-las de mulheres era, segundo ele, a maior injúria que se lhes poderia fazer.


O padre Gandavo, na segunda metade do século XVI, citou o caso de algumas índias que decidiram não ter relações sexuais com homens. Isso até seria, na visão do religioso, uma boa decisão, pois estaria de acordo com a ideia cristã de castidade. O grande problema era que essas índias apenas não aceitavam ter relações com homens, ainda que fossem mortas. A escolha e o interesse delas eram por mulheres. Elas se dedicavam às tarefas masculinas, “como se não fossem fêmeas”. Continuava o padre afirmando que elas cortavam os cabelos da mesma maneira que os machos, iam às guerras com seus arcos e flechas e caçavam sempre na companhia deles. Para completar, cada uma tinha uma mulher que a servia e com quem dizia ser casada. Concluía o padre que “assim se comunicam e conversam como marido e mulher”.


Gabriel Soares de Souza também tratou dos “pecados sexuais” indígenas. Ao comentar sobre o que ele considerava a luxúria dos tupinambás, afirmou que, dentre outros tantos, cometiam o “pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta; e o que serve de macho se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza.”


A sexualidade indígena também tem sido objeto de análise dos antropólogos e estes têm encontrado alguns exemplos de arranjos homossexuais entre grupos indígenas. Pierre Clastres, analisando a sociedade guaiaqui, explica que ela é claramente dividida entre posições masculinas e femininas, cisão que orienta todos os valores do grupo. Às mulheres, cabe o cesto, símbolo de sua feminilidade e fertilidade; aos homens, o arco, elemento de distinção do caçador. Um não pode tocar o símbolo do outro, sob pena de provocar o desequilíbrio e trazer desgraças. Todavia, o autor narra a existência em uma determinada aldeia de dois homens que não se encaixavam nessa divisão. Um, por suas poucas habilidades com o arco, foi proibido de portá-lo. Assim, passou a conviver com as mulheres e não possuía espaço e papel social claramente definidos. O outro caso é de um homossexual assumido, o qual convivia com as mulheres, tecia e tinha seu próprio cesto. Tinha relações sexuais esporádicas com homens da tribo e, diferentemente do primeiro, não ficava isolado nem era menosprezado.


Um problema comportamental e cultural do indígena que poderia atingir os corpos dos jesuítas e dos colonos era a prática da antropofagia. Era, na opinião dos religiosos, o pior dos pecados contra o corpo humano, feito por Deus a sua imagem e semelhança. O pânico de ser “devorado” por selvagens estava presente em praticamente todos os relatos do século XVI e parte do XVII. Para o padre Anchieta, alguns índios eram gente indômita e bestial e toda sua felicidade consistia em matar e comer carne humana.


Inicialmente, os jesuítas acreditaram que bastaria um trabalho eficiente de catequese e ensinamento da palavra de Deus e os indígenas abandonariam suas práticas bárbaras e encontrariam o caminho da salvação, pois eram seres bons por natureza. Todavia, as coisas não se passaram dessa forma. Depois de muitos problemas, os religiosos perceberam que os índios não eram capazes de abrir mão de sua cultura de maneira tão fácil. Aparentemente aceitavam os ensinamentos, mas bastava uma dificuldade qualquer para rapidamente voltarem às suas práticas. Foram, então, identificados como indiferentes, inconstantes e incapazes de manter o que havia sido ensinado e acordado. Essas ideias passaram a representar a alma indígena, traço definidor de seu caráter.


Trecho extraído do capítulo 1 “E eram todos pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas ”, de Marcia Amantino, em “História do Corpo no Brasil”, organização Mary del Priore e Marcia Amantino. (Editora Unesp, 2011).


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