Marcia
São Paulo, uma cidade pacata de cerca de 7 mil habitantes, com características rurais e urbanas ao mesmo tempo, era diferente do Rio de Janeiro. Cortada por 38 ruas, possuía então dez travessas, sete pátios e seis becos. Bem abastecida, sobretudo no início do século XIX, via crescer à sua volta víveres baratos de primeira necessidade: cará, repolho, nabo, batata-doce, milho, feijão, arroz e sofisticados aspargos e alcachofras. Baratíssimos eram porcos e frangos criados em sítios nas vizinhanças. Jacus, mutuns e macucos eram engordados como galinhas.
Casas governadas por pessoas solitárias, celibatários e viúvos, homens e mulheres, expunham a instabilidade dos laços matrimoniais. Quase 40% da população paulista residia só e havia forte predominância feminina. Nas ruas Direita, do Comércio (atual rua Álvares Penteado), Boa Vista, ladeira do Carmo (que é hoje o primeiro trecho da avenida Rangel Pestana), São Bento e arredores, onde havia uma diversificação maior de atividades urbanas, proliferavam os domicílios de solteiras com filhos ilegítimos.
Muitas tinham vida familiar independente, por conta da inconstância da população masculina da cidade, que, por motivos econômicos, se deslocava com frequência para outras regiões. Por outro lado, a dificuldade do casamento, fosse por falta de papéis
ou em função dos altos custos, e a proliferação das uniões esporádicas, principalmente entre as camadas mais pobres da população, reforçavam esse quadro.
Havia mulheres chefes de família, que, sozinhas, tocavam a própria vida e a de seus dependentes. Elas perfaziam, nas primeiras décadas do século XIX, entre 40% e 60% da população paulistana. Entre elas, havia muitas brancas empobrecidas. Ao sul da Sé, à sombra dos amplos sobrados ricos de comerciantes, fazendeiros ou funcionários públicos como seu pai, multiplicavam-se aquelas que vendiam serviços: costurar em domicílio, ensinar meninas, fazer doces ou quitutes vendidos em pequenos tabuleiros forrados com toalhas brancas ou fazer rendas.
Muitas viviam da venda de suas quitandas, ou seja, produtos cultivados em pequenas roças fora da cidade ou do comércio de excedentes: velas, farinha, fumo, sabão.
Outras alugavam cômodos aos homens celibatários que viviam de seu trabalho. Às negras e mulatas cabiam os serviços mais aviltantes: carregar água ou lixo, lavar roupa, ser vendedora ambulante, fiar ou cuidar da roça. Diferentemente da corte, onde
eram maioria, os escravos perfaziam 28% da população.
Na cidade de São Paulo, a autoridade feminina era um fato e, com sua liderança econômica e moral, ela consolidava uma posição de poder entre a parentela e a vizinhança. Mulheres recorriam às autoridades para fazer prevalecer suas vontades no âmbito de querelas familiares. A luta para sobreviver no improviso do dia a dia fez das paulistas figuras fortes, capazes de ilustrar versinhos satíricos: “Paulista de Taubaté, cavalo pangaré, e mulher que mija de pé, libera nos Dominé…” Ou respeitosos: “Nóis agora vamos embora/ com muita satisfação/ Na frente vai a dona/ de nosso belo
mutirão.”
Multiplicavam-se as imagens de jovens lutadoras, cheias de vida, capazes de vencer intempéries. Os contos de serão, aqueles glosados ao pé do fogo à noite, relatavam estórias de mulheres com qualidades práticas, capazes de artimanhas, de improvisar ardis, arrastadas para adversidades que eliminavam graças às habilidades de donzelas guerreiras.
A bastardia era tolerada e havia uma atitude de complacência em relação aos filhos tidos fora do casamento. Havia mesmo um bairro na cidade, o do Pari, às margens do Tietê, sobre o qual se registrou: “Quase todo de gente bastarda.” Na Espanha, Portugal e Brasil, tais filhos participavam na herança dos pais, concorrendo inclusive com os herdeiros legítimos. Elas, inclusive, acobertavam nas suas casas os filhos ilegítimos dos maridos, que continuavam como enteados mesmo após a morte do cônjuge.
Como eram vistas paulistas como por viajantes estrangeiros que por ali passavam? Consideradas as mulheres mais belas do Brasil, a ocupação delas era “coser, rendar e bordar”, diria o mineralogista inglês John Mawe. Elas iam às igrejas vestidas de seda negra, cobertas até a cabeça. Já nos bailes, iam de branco e gostavam de dançar. “Abandonavam-se a banhos quentes” e, segundo Mawe, eram sérias. “Atribuo o costume que se diz reinar entre elas, de atirar flores das sacadas sobre os transeuntes, de acordo com seu capricho, ou presentear com uma flor ou ramalhete seus favoritos, a uma prova de deferência.”
Mary del Priore.
Historia Hoje
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