quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O sentimento de (in)justiça

Contardo Calligaris

As campanhas eleitorais são momentos de vale-tudo, ou quase. Mentir sobre o adversário (seu programa, seu caráter etc.) é de praxe.

Afinal, o que importa é ganhar, não é? Então, vamos lá: Sicrano vai acabar com o Bolsa Família, Fulano vai proteger só os interesses dos grandes bancos, o outro destruirá o agronegócio e o outro ainda abolirá a propriedade privada.

Alguns, sábios, temem que essa avalanche de mentiras e calúnias comprometa o amanhã. Afinal, o vencedor terá que governar com alguns entre os derrotados. Depois de tamanho derramamento de "sangue", como é que eles conseguirão cooperar no interesse do país? Como construirão alianças viáveis?


De fato, é difícil imaginar que alguém possa se tornar amigo de quem, na campanha, falsificou suas ideias e mentiu sobre suas intenções. Também parece difícil que alguém coopere com quem não inventou nada, mas denunciou seus propósitos escusos e desonestos.


Tudo isso pode parecer óbvio para você e para mim, mas não vale para a classe política. Aparentemente, os políticos, na hora de fazer alianças "necessárias" (para ganhar ou para governar), são amnésicos das porradas que se deram mutuamente e das razões (às vezes, excelentes) pelas quais se enfrentaram.


É como se a oposição entre eles fosse um espetáculo montado pelos marqueteiros, pouco relevante à vista do que eles compartilham: a simpatia pelo poder. Quer verificar? Dê um Google Imagens em "Lula Collor Maluf Sarney"...


Agora, é provável que as porradas deixem cicatrizes, que ficam escondidas atrás dos sorrisos da hora das alianças. Talvez seja por isso que essas alianças estapafúrdias dificilmente permitem promover projetos relevantes para a gente. Elas apenas celebram o projeto de poder dos políticos que se aliam —até a próxima ocasião de eles se matarem a pau. Em suma, são alianças que não têm como servir ao interesse comum do país.


Muito a propósito, a revista "Science" acaba de publicar (on-line) uma pesquisa de S. Brosnan e F. De Waal, sobre a "resposta à injustiça" (http://migre.me/lPiSe). Os autores tentam entender as origens do sentimento de justiça/injustiça.


Eles constatam que, sobretudo na última década, foi descoberta e confirmada (em humanos e chimpanzés) uma reação pela qual um indivíduo protesta não só se ele for injustiçado, mas também se um outro for injustiçado na sua frente —e isso, mesmo no caso em que o dito indivíduo seja favorecido pela injustiça.


Ou seja, como recompensa pelo mesmo trabalho, eu recebo uma banana e meu vizinho, uma fatia de pepino. Pois é, chimpanzés e humanos conseguem protestar contra essa injustiça e chegam a dividir sua recompensa com o injustiçado.


Numa visão simplificada da evolução das espécies, quem ganhou uma recompensa melhor ficaria feliz, e o outro que se dane. Mas Brosnan e De Waal são evolucionistas mais sofisticados; eles entendem assim:


1) Há poucas espécies cujos indivíduos cooperem mesmo quando não são unidos por vínculos familiares. Essa capacidade de cooperar (caçar, proteger a prole e o território, defender-se contra predadores etc.) entre indivíduos que não constituem um casal e nem pertencem ao mesmo clã ou bando é um fator positivo na seleção natural. Ou seja, a capacidade de cooperar torna uma espécie mais forte. Humanos e chimpanzés, justamente, são capazes de cooperação entre indivíduos sem vínculo familiar.


2) Humanos e chimpanzés conseguem protestar contra a injustiça que desfavorece um outro indivíduo da espécie. Isso acontece porque eles temem que o injustiçado, ressentido, deixe de cooperar: se isso acontecer, algumas tarefas cruciais à sobrevivência de todos se tornariam complicadas. Ou seja, receber mais do que os outros pela mesma tarefa pode colocar em perigo a cooperação futura num propósito comum.


Concluindo, o sentimento de justiça/injustiça derivaria da necessidade de a espécie se beneficiar da cooperação de todos.


Voltando ao começo, a classe política e seus marqueteiros, em campanha, são capazes de qualquer injustiça e inverdade. Em nome da vontade de ganhar uma eleição ou de manter o poder, a classe sacrifica a possibilidade futura de cooperar em vista de um interesse comum. Nisso, ela se situaria, na escala evolutiva, um pouco abaixo dos chimpanzés.


Folha SP

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