terça-feira, 2 de setembro de 2014

A sensatez da administração Haddad


Diante do flagelo que significa a dependência química, o programa "De Braços abertos" é um exemplo de abordagem humana do problema.

Wadih Damous*

A questão das drogas é um dos desafios da nossa época. Uma quantidade expressiva de pessoas tornou-se dependente não só das drogas ilícitas, mas também das legalizadas, como o tabaco e o álcool, o que afeta decisivamente suas vidas.


É evidente que não há razão para criminalizar o uso das drogas, que deve ser tratado como questão de saúde pública, e não como um evento de natureza policial. Essa percepção já é quase um consenso na sociedade, e a compreensão disso significou um respeitável avanço em relação à forma como o problema era tratado há alguns anos.

A política de guerra aberta às drogas ilícitas, dominante, tem demonstrado a sua fragilidade. É inegável que não conseguiu diminuir o consumo e acabou contribuindo para o aumento da violência na sociedade e da corrupção policial.

O reconhecimento desse problema não deve, porém, levar, automaticamente, ao extremo oposto: a defesa da legalização de toda e qualquer droga. Antes de se abraçar uma posição como esta seria preciso demonstrar que ela causaria menos danos à sociedade.

Assim, uma pergunta deve ser respondida: do ponto de vista da sociedade será vantajosa a legalização ampla, geral e irrestrita, que, presumivelmente, traria um aumento do consumo?

Mesmo que, do ponto de vista filosófico, se reconheça o direito de cada um dar o destino que queira à sua vida, desde que não interfira na dos demais, a pergunta sobre a conveniência da legalização para a sociedade, como uma política pública, não pode ser ignorada.

Aliás, é bom lembrar também que país algum, em todo o mundo, a adotou.

No Uruguai e em certos estados dos EUA há experiências interessantes com a legalização de drogas de menor potencial agressivo, como a maconha, até então ilícitas. Apesar de serem experiências recentes, já se pode afirmar que os resultados têm sido positivos.

Em debate na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa no Senado, no dia 2 de agosto deste ano, o secretário nacional de drogas do Uruguai, Julio Heriberto Calzada, informou que o país tinha conseguido reduzir a zero as mortes ligadas ao uso e ao comércio da maconha, desde que adotou regras para regulamentar o cultivo e a venda da droga. Ainda que não tenha sido informado qual era o número de mortes antes da legalização, para uma comparação mais precisa ser feita, não deixa de ser uma boa notícia.

Calzada admitiu que a legalização da maconha talvez leve a um aumento do número de usuários. Segundo ele, porém, a combinação da legalização com outras políticas públicas poderá modificar padrões de consumo e levar à redução do número de usuários. De qualquer forma, deve ser lembrado o potencial relativamente menor de dano causado pela maconha, em comparação com drogas como crack e heroína.

Há, ainda, outro fator a considerar. No caso do Uruguai, a legalização da maconha esteve explicitamente vinculada ao objetivo de restringir o contato de seus usuários, em particular os mais jovens, com as bocas-de-fumo, que, além da maconha, oferecem também crack e outras drogas mais pesadas. Foi, claramente, uma política de redução de danos. Caso isso tenha acontecido, efetivamente, e se tenha impedido a entrada de um contingente de jovens no mundo do crack, isso, por si só, já terá sido um grande ganho.

É, ainda, o secretário uruguaio que nos dá uma pista interessante - a nosso ver, óbvia, mas nem sempre aceita por todos. Segundo ele, deve-se ter em conta que álcool, tabaco, maconha, heroína, cocaína e crack não são iguais. Por isso, as drogas devem ser analisadas caso a caso, em suas particularidades.

Este parece ser um bom ponto de partida.

Entre nós há, também, experiências a serem acompanhadas com interesse. Um exemplo é o trabalho que vem sendo desenvolvido na capital paulista pelo prefeito Fernando Haddad com dependentes de crack.

Com base em programas semelhantes levados a cabo na Holanda e no Canadá, a prefeitura de São Paulo criou o projeto “De Braços Abertos”. É de se registrar que, na sua formulação e antes mesmo que ele fosse posto em prática, houve debate com os usuários da droga da região da Cracolândia, no Centro de São Paulo, o público-alvo do programa, do qual foram incorporadas sugestões para seu modelo definitivo.

O projeto oferece moradia em hotéis e emprego em frentes de trabalho promovidas pela prefeitura, com remuneração de R$ 15 por dia, para a limpeza de praças e logradouros públicos. Além disso, fornece três refeições diárias e curso de capacitação para os dependentes químicos.

Nos primeiros dois meses e meio, agentes de saúde da prefeitura realizaram, sem a participação da polícia, mais de dez mil abordagens aos dependentes químicos, que aceitaram desmontar um acampamento em que se amontoavam, diante da perspectiva de passarem a viver em hotéis. Dos moradores de cerca dos 200 barracos existentes nesse acampamento, numa região central de São Paulo, apenas dois se recusaram a colaborar.

Nesse mesmo período, já haviam sido realizados 887 atendimentos médicos, 465 atendimentos pela equipe de saúde, 505 encaminhamentos para serviços de saúde, 3.902 abordagens dos dependentes realizadas nos hotéis e outras 2.760 abordagens na tenda da Prefeitura. Também foram realizadas 1.710 abordagens no local de uso de drogas, 36 tratamentos odontológicos e outras 50 ações coletivas de odontologia, além de 240 encaminhamentos para serviços de saúde por agentes comunitários. Um total de 122 dependentes está em tratamento voluntário nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) da região.

Em maio, 400 pessoas alvo do programa começaram a ser selecionadas para sair das frentes de trabalho e conseguir, com a ajuda da prefeitura, um emprego formal.
Diante do flagelo que significa a dependência química, o programa “De Braços abertos” é um exemplo de abordagem humana do problema.
É, sem dúvida, uma iniciativa a ser acompanhada, aperfeiçoada e implementada em outras cidades.



*Presidente licenciado da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB e da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro


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