Diante do flagelo que significa a dependência química, o
programa "De Braços abertos" é um exemplo de abordagem humana do
problema.
Wadih Damous*
A questão das drogas é um dos desafios da nossa época. Uma
quantidade expressiva de pessoas tornou-se dependente não só das drogas
ilícitas, mas também das legalizadas, como o tabaco e o álcool, o que afeta
decisivamente suas vidas.
É evidente que não há razão para criminalizar o uso das
drogas, que deve ser tratado como questão de saúde pública, e não como um
evento de natureza policial. Essa percepção já é quase um consenso na
sociedade, e a compreensão disso significou um respeitável avanço em relação à
forma como o problema era tratado há alguns anos.
A política de guerra aberta às drogas ilícitas, dominante,
tem demonstrado a sua fragilidade. É inegável que não conseguiu diminuir o
consumo e acabou contribuindo para o aumento da violência na sociedade e da
corrupção policial.
O reconhecimento desse problema não deve, porém, levar,
automaticamente, ao extremo oposto: a defesa da legalização de toda e qualquer
droga. Antes de se abraçar uma posição como esta seria preciso demonstrar que
ela causaria menos danos à sociedade.
Assim, uma pergunta deve ser respondida: do ponto de vista da
sociedade será vantajosa a legalização ampla, geral e irrestrita, que,
presumivelmente, traria um aumento do consumo?
Mesmo que, do ponto de vista filosófico, se reconheça o
direito de cada um dar o destino que queira à sua vida, desde que não interfira
na dos demais, a pergunta sobre a conveniência da legalização para a sociedade,
como uma política pública, não pode ser ignorada.
Aliás, é bom lembrar também que país algum, em todo o mundo,
a adotou.
No Uruguai e em certos estados dos EUA há experiências
interessantes com a legalização de drogas de menor potencial agressivo, como a
maconha, até então ilícitas. Apesar de serem experiências recentes, já se pode
afirmar que os resultados têm sido positivos.
Em debate na Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa no Senado, no dia 2 de agosto deste ano, o secretário nacional de
drogas do Uruguai, Julio Heriberto Calzada, informou que o país tinha
conseguido reduzir a zero as mortes ligadas ao uso e ao comércio da maconha,
desde que adotou regras para regulamentar o cultivo e a venda da droga. Ainda
que não tenha sido informado qual era o número de mortes antes da legalização,
para uma comparação mais precisa ser feita, não deixa de ser uma boa notícia.
Calzada admitiu que a legalização da maconha talvez leve a um
aumento do número de usuários. Segundo ele, porém, a combinação da legalização
com outras políticas públicas poderá modificar padrões de consumo e levar à
redução do número de usuários. De qualquer forma, deve ser lembrado o potencial
relativamente menor de dano causado pela maconha, em comparação com drogas como
crack e heroína.
Há, ainda, outro fator a considerar. No caso do Uruguai, a
legalização da maconha esteve explicitamente vinculada ao objetivo de
restringir o contato de seus usuários, em particular os mais jovens, com as
bocas-de-fumo, que, além da maconha, oferecem também crack e outras drogas mais
pesadas. Foi, claramente, uma política de redução de danos. Caso isso tenha
acontecido, efetivamente, e se tenha impedido a entrada de um contingente de
jovens no mundo do crack, isso, por si só, já terá sido um grande ganho.
É, ainda, o secretário uruguaio que nos dá uma pista
interessante - a nosso ver, óbvia, mas nem sempre aceita por todos. Segundo
ele, deve-se ter em conta que álcool, tabaco, maconha, heroína, cocaína e crack
não são iguais. Por isso, as drogas devem ser analisadas caso a caso, em suas
particularidades.
Este parece ser um bom ponto de partida.
Entre nós há, também, experiências a serem acompanhadas com
interesse. Um exemplo é o trabalho que vem sendo desenvolvido na capital
paulista pelo prefeito Fernando Haddad com dependentes de crack.
Com base em programas semelhantes levados a cabo na Holanda e
no Canadá, a prefeitura de São Paulo criou o projeto “De Braços Abertos”. É de
se registrar que, na sua formulação e antes mesmo que ele fosse posto em
prática, houve debate com os usuários da droga da região da Cracolândia, no
Centro de São Paulo, o público-alvo do programa, do qual foram incorporadas
sugestões para seu modelo definitivo.
O projeto oferece moradia em hotéis e emprego em frentes de
trabalho promovidas pela prefeitura, com remuneração de R$ 15 por dia, para a
limpeza de praças e logradouros públicos. Além disso, fornece três refeições
diárias e curso de capacitação para os dependentes químicos.
Nos primeiros dois meses e meio, agentes de saúde da
prefeitura realizaram, sem a participação da polícia, mais de dez mil
abordagens aos dependentes químicos, que aceitaram desmontar um acampamento em
que se amontoavam, diante da perspectiva de passarem a viver em hotéis. Dos
moradores de cerca dos 200 barracos existentes nesse acampamento, numa região
central de São Paulo, apenas dois se recusaram a colaborar.
Nesse mesmo período, já haviam sido realizados 887
atendimentos médicos, 465 atendimentos pela equipe de saúde, 505
encaminhamentos para serviços de saúde, 3.902 abordagens dos dependentes
realizadas nos hotéis e outras 2.760 abordagens na tenda da Prefeitura. Também
foram realizadas 1.710 abordagens no local de uso de drogas, 36 tratamentos
odontológicos e outras 50 ações coletivas de odontologia, além de 240
encaminhamentos para serviços de saúde por agentes comunitários. Um total de
122 dependentes está em tratamento voluntário nos Centros de Atenção
Psicossocial (CAPs) da região.
Em maio, 400 pessoas alvo do programa começaram a ser
selecionadas para sair das frentes de trabalho e conseguir, com a ajuda da
prefeitura, um emprego formal.
Diante do flagelo que significa a dependência química, o
programa “De Braços abertos” é um exemplo de abordagem humana do problema.
É, sem dúvida, uma iniciativa a ser acompanhada, aperfeiçoada
e implementada em outras cidades.
*Presidente licenciado da Comissão Nacional de Direitos
Humanos da OAB e da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro
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