O ajuste fiscal em cima dos ganhos financeiros poderia restabelecer padrões mínimos de redistribuição de renda em nossa pirâmide social tão injusta.
Como era de se esperar, o governo Temer tem insistido cada vez mais no tema do ajuste fiscal. A ameaça catastrofista tem por base as informações relativas ao descompasso entre receitas e despesas no Orçamento da União para o ano em curso e as expectativas para o desempenho das contas públicas em 2017.
Ocorre que os porta-vozes governamentais nada mencionam a respeito das causas que têm contribuído para provocar a redução da capacidade arrecadatória ao longo dos últimos tempos. Em última instância, o diagnóstico equivocado a respeito da crise foi incorporado como avaliação oficial e a sugestão da terapia do austericídio continuou a ser implementada no dia-a-dia da política econômica.
Consumado o impeachment de Dilma, a equipe de Temer pressiona o Congresso Nacional e o conjunto da sociedade para que seja aprovado um conjunto de medidas “impopulares” – mas necessárias, segundo o jargão do financismo. Permanece a mesma abordagem viesada do fenômeno econômico. Ao sugerir a manutenção de juros oficiais elevados, Meirelles obtém do COPOM a garantia de que a SELIC não será reduzida assim tão cedo. E assim ela permanece no patamar de 14,25% ao ano desde julho de 2015, com o Brasil mantendo-se recordista olímpico isolado no quesito vergonhoso.
Austericídio e crise fiscal.
Ao mesmo tempo em que dá continuidade à política monetária arrochada, o governo implementa uma intenção declarada de redução dos gastos públicos não financeiros. Essa combinação perversa de juros altos e redução das despesas sociais mata na raiz qualquer possibilidade de reativação da atividade econômica. Pelo contrário, só faz aprofundar a recessão, ampliando os efeitos negativos das falências e do desemprego.
A queda no ritmo da economia provoca ainda mais dificuldades na administração da crise, uma vez que nossa estrutura de arrecadação depende essencialmente de tributos que incidem sobre a produção e o consumo. Com isso, observa-se uma redução expressiva na receita auferida pelo governo e um aumento potencial perfeitamente previsível das despesas de natureza social, em momento de agudização da crise.
E então começam a pipocar as já bem conhecidas propostas de “solução inadiável da crise estrutural”. Quase todas, diga-se de passagem, da lavra de economistas vinculados aos interesses do financismo. De acordo com tal interpretação conservadora, o único caminho possível para a retomada do crescimento seria retornar à dinâmica de geração tresloucada de superávits primários no Orçamento da União. Isso significa reduzir as despesas “reais” (leia-se, sociais e investimentos) do Estado brasileiro, para que as receitas sejam superiores aos gastos e se consiga obter um excedente nas contas públicas, destinado a realizar as despesas de natureza financeira. Leia-se, pagamento de juros e serviços da dívida.
Despesa social e despesa financeira.
O roteiro que se segue é a própria novela que se acompanha diariamente pelos jornais e pelas TVs. O discurso oficial martela que o Estado gasta mais do que arrecada e que não podemos continuar assim. E ponto final! Utilizando-se da desonesta comparação com a solução para o equilíbrio no âmbito da economia familiar ou empresarial, os meios de comunicação só falam na necessidade de cortar, cortar e cortar. Daí para a reforma da previdência é um pulo. E de lá para o congelamento constitucional dos gastos sociais é apenas um salto.
O tragicômico em tudo isso é que o mesmo governo que enche o peito para exigir austeridade e acusa Dilma de ter sido irresponsável na administração das finanças públicas, apresenta proposta de lei orçamentária incorporando um monumental déficit primário em suas próprias contas. Para o presente ano são R$ 170 bilhões aprovados pelo Congresso Nacional e para 2017 a previsão é de R$ 140 bi. E não dá mesmo para ser diferente, pois a crise exige justamente um protagonismo do gasto público como a única saída viável. A grande diferença está no tratamento. Com Dilma, tudo não passava de um escândalo patrocinado por irresponsáveis populistas. Com Temer, bem aí é outro contexto, trata-se de uma necessidade inescapável sugerida por uma equipe competente e blá-blá-blá.
Ocorre que ninguém menciona o fator que mais tem contribuído para o aumento do referido descompasso nas finanças públicas. A imprensa fala no “rombo” da previdência, nos “escândalos” do seguro desemprego, no crescimento dos gastos com saúde e por aí vai. Mas a despesa da União que maior impacto provoca em suas contas é o pagamento de juros da dívida pública. Entre agosto de 2015 e julho de 2016 esse total já superou os R$ 427 bilhões. Os valores variam a cada mês, mas recentemente já se chegou a um acumulado de 12 meses superior a R$ 540 bi. Trata-se do maior rombo individual do orçamento federal. Mas isso não ganha manchetes indignadas e nem exaltações raivosas dos comentaristas da cena econômica.
Cadê a indignação com o rombo de R$ 427 bi?
Ao invés de amealhar cortes de bilhões aqui e acolá em áreas tão sensíveis para a maioria da população, bastaria o governo estabelecer um teto para os gastos com matéria financeira. Simples assim. Esse é o tipo de ajuste fiscal que o Brasil precisa. Diminuição substantiva nas rubricas parasitas com pagamento de juros da dívida pública e concentradoras de renda, que tão pouco contribuem inclusive para a arrecadação de impostos.
Por que não encontramos nos grandes meios de comunicação matérias de jornalismo investigativo evidenciando que, entre 2003 e os dias de hoje, por exemplo, as contas públicas transferiram para as instituições do setor financeiro o equivalente à astronômica soma de R$ 3,3 trilhões a título de pagamento de juros e serviços da dívida pública?
Durante todos os dias nos deparamos com análises manipuladoras e levianas, dando conta da suposta emergência de uma reforma previdenciária redutora de direitos para evitar o caos fiscal e financeiro. Porém, essa mesma imprensa se cala perante o escândalo cotidiano que é praticado pela administração pública brasileira em prol dos interesses da banca.
O ajuste fiscal em cima dos ganhos financeiros seria muito mais eficiente em termos econômicos. Ele poderia restabelecer padrões mínimos de redistribuição de renda e de patrimônio em nossa pirâmide social tão carregada de injustiça, desigualdade e concentração. Ele permitiria obter valores expressivos nas contas orçamentárias em busca de equilíbrio, atingindo um número bem reduzido de indivíduos. Ele ofereceria a manutenção do nível de despesa social voltada para a absoluta maioria de nosso povo necessitado e ainda tão mais carente de serviços públicos nesse momento difícil da crise.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Carta Maior
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