Os pobres são os novos índios? Uma humanidade singular que dispara fantasias de autenticidade, exotismo, ameaças, produz engajamento e piedade, as favelas produzem fabulações muito diversas e podem ser vistas como uma espécie de museu do capitalismo fordista e laboratório do capitalismo cognitivo, onde o que se negocia são imagens, afetos, relações.
O discurso midiático em curso, do medo difuso e demanda de repressão em relação aos territórios da pobreza (a instalação de um Estado de Exceção pré e pós UPPs), se mistura e se embaralha com as diferentes formas de consumir a pobreza, ligadas ao circuito do turismo e das trocas culturais.
Uma cena comum em Copacabana e pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, ainda causa certo estranhamento. Um imenso jipe verde-oliva, apinhado de turistas vestidos como se partissem para um safári africano, cruza a Avenida Atlântica saindo do Copacabana Palace ou de algum hotel da cidade. O Jeep Tour leva gente de todas as nacionalidades para ver de perto ou do alto do jipe esse “habitat natural” de uma pobreza ironicamente incorporada à imagem turística e folclórica do Rio de Janeiro. [1] Um outro serviço, o Favela Tour, faz o mesmo trajeto, em visita a Rocinha, e ensina que as favelas têm história e memória, reinserindo as favelas na história da própria cidade, da qual não têm como ser separadas.
Ao longo das últimas décadas, muitos outros serviços de turismo nas favelas apareceram (não apenas os passeios de Jeep e vans, mas pousadas, festas de Reveillon, bares), dentro e fora do Brasil. O documentário, Em Busca de Um Lugar Comum, de Felippe Schultz Mussel, se atém aos “favela tours”, os passeios oferecidos pelas agências de turismo aos visitantes estrangeiros pelas favelas do Rio. Mas mais do que isso, o filme vai desvendar toda uma complexa trama de discursos e fabulações em torno das favelas e seus personagens.
Favelas, no Brasil; Colonias Populares, no México; Chawls na India; Iskwaters, nas Filipinas; Baladis, no Cairo, os Ghettos; nos Estados Unidos, etc. A palavra “favela” vai sendo generalizada para significar as periferias nacionais e internacionais. No Brasil, a palavra “favela” ainda causa controvérsia principalmente entre seus moradores que preferem muitas vezes o termo “comunidade” (ou seu nome urbanístico, bairro, integradas a toda a cidade). Mas o nome favela tem história, uma história de lutas, que muitos preferem afirmar e potencializar.
As favelas, fixadas e congeladas em tantos mitos e fabulações se abrem para a dinâmica das periferias “glocais” (globais e locais) em transformação. A favela genérica, a favela em mutação, a favela global, que nos interessa aqui, carregada de discursos antagônicos que concorrem entre si. A favela turística, inserida em um discurso de biopoder (o controle do território dos pobres a partir de um Estado de Exceção com a ocupação das UPPs pelo Estado) mas também as favelas “commons” , que produzem sociabilidade, linguagem, expressões culturais, afetividade, solidariedade, trabalho colaborativo e bens comuns.
“Favela Chic” é o nome de um bar brasileiro da moda em Paris, uma imagem paradoxal dessa sociedade periférica global em que a pobreza e os confrontos sociais, dentro e fora do cinema, podem ser encarados ao mesmo tempo como intolerável, mas também como “charme” e “grife”, como dinâmica cultural de sentidos dificilmente cristalizáveis: Favela Caviar, Favela Ostentação, Pobre Star, são outras expressões que apontam para as constantes mutações e deslizamento de sentidos.
A favela “moderna” se diferencia da favela global, pois ainda é o cartão-postal às avessas, uma espécie de museu da miséria, etapa histórica não-superada do capitalismo, e os pobres, que deveriam, dada toda produção de riquezas do mundo, estar entrando em extinção, são parte dessa estranha “reserva”, “preservada” e que a qualquer momento sai do controle do Estado e explode, “ameaçando” a cidade. Em contraposição, podemos pensar a favela global como fluxo e troca, em que as assimetrias e hierarquias não desaparecem como mágica, mas entram em colisão com outros signos e sentidos e onde fundamentalmente a favela pode ser vista como território integrado e produtivo.
É nesse contexto, de uma cultura capaz de relacionar as favelas com fascínio e terror, percebendo seu “arcaísmo”, mas também sua produtividade e suas potencialidades, que podemos analisar os filmes brasileiros contemporâneos que se voltam para esses temas. Filmes que quase nunca se pretendem “explicativos” de qualquer contexto, que não se arriscam a julgar – narrativas perplexas, que se apresentam como sintomas, mas que diagnósticos de um estado de coisas e só muito recentemente ousam afirmar algo.
A vertente urbanística de turistificação das cidades (ligadas inclusive aos mega-eventos globais que produzem uma reordenação urbana radical e problemática, violenta, autoritária e negociada duramente com seus moradores) inclui a museificação das favelas. Um processo controverso, que se por um lado as preservam e impedem sua remoção (como o belo projeto de tombamento da Favela da Providência, no Rio de Janeiro), faz pensar na pobreza e miséria como uma espécie de “museu da humanidade”, em que as favelas “tombadas” são pontos turísticos de conexão entre olhares distintos: o primitivismo-exótico, o turismo multicultural, o impulso de preservação de modos de vida em “extinção” – e o que poderia ser um outro reconhecimento das favelas e suas dinâmicas como potência disruptiva e decisiva para se pensar o futuro das cidades: a Favela como “commons”.
A forma “museu” é controversa e surge como uma ideia complementar a projetos como o Favela-Bairro no Rio de Janeiro – de integração das favelas à cidade de forma a fugir do discurso redutor da “cidade partida”. O tombamento do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, com um Museu a Céu Aberto, pontos históricos recuperados e a ideia da favela como patrimônio é um caso exemplar dessa disputa. Para além do Estado, os próprios moradores hoje se pensam como “história”, como explicita as propostas e ações do Museu da Maré do Complexo da Maré, uma iniciativa comunitária, ou o MUF (Museu de Favela), fundado por lideranças comunitárias das favelas Pavão, Pavãozinho e Cantagalo.
Mas o imaginário em torno da experiência da pobreza extrapola qualquer ideia de “museu” tradicional e torna-se constituinte da fabulação do urbano e das cidades. As favelas passam hoje pelo mesmo processo que marca as cidades globais, de turistificação que combina elementos da “urbanização turística” e a “urbanização para o turismo”, políticas urbanas de intervenções territoriais em locais potencialmente turísticos. Um ordenamento e nova partição do sensível que, no caso do Rio de Janeiro, passa por um processo traumático e problemático: as obras de infraestrutura e de acesso são precedidas por uma intervenção policial ou militar, um dispositivo policial-turístico de ordenamento extremamente violento.
O que chama atenção no filme Em Busca de um Lugar Comum são os diferentes discursos em torno das favelas e da pobreza. Há uma sinergia mais do que um confronto entre as falas dos agentes e donos de diferentes serviços de passeios (city tours) pelas favelas e os discursos dos turistas. Os agentes de certa forma respondem aos desejos dos turistas criando narrativas cujos elementos colocam em cena e explicitam valores como o exotismo, a autenticidade, o risco, a solidariedade funcionando como mediadores entre mundos, seja reforçando ou desconstruindo clichês.
É que a questão da pobreza e sua experiência consumível diz respeito a um campo bem mais amplo de tensionamento. O momento em que as subjetividades e seus modos de ser e estar se tornam “commodities”: da favela à aldeia indígena o fascínio pelo outro produz uma bipolaridade esquizofrênica. Só te reconheço enquanto provedor do meu desejo de consumo, mas não necessariamente como sujeito político e de direitos.
No filme, as diferentes estéticas e linguagens dos serviços de passeio pelas favelas já indicam as modulações discursivas, de Favela Tour a Forest Tour, cada agência se vale de um campo de repertórios: as questões sociais, o tráfico e a violência; os “nativos” em estado de museu; a paisagem e o meio ambiente.
O filme e a narrativa literalmente fazem o tour e não se colocam “de fora”, ao escolherem o lugar de passageiros embarcados nas vans, misturados com os turistas, experimentam o deslocamento suplementar de ver sua própria cidade com olhos outros e de outros. Uma câmera e narrativa de “turista aprendiz” cujo lugar – estar lá e estar junto, observar e participar – produz a percepção e expressão de uma subjetividade turística genérica, um modelo paradigmático da produção da subjetiva contemporânea.
Podemos perceber que as críticas ao modelo clássico do turismo nas favelas, que poderia ser o motor de um documentário que partisse de pressupostos hoje comuns de constatação e reconhecimento desse modo subjetivo turístico de consumo e descarte, já foram incorporadas pelos próprios agentes turísticos e guias.
Nesse sentido o filme monta um dispositivo de captura desses deslocamentos: um olhar que escuta e um olhar que fala, a relação entre o visível e o enunciável, como propunha Michel Foucault em O Nascimento da Clínica ao falar de um olhar “clínico”: “a experiência clínica representa um momento de equilíbrio entre a palavra e o espetáculo. Equilíbrio precário, pois se baseia em um postulado: “todo visível é enunciável e é inteiramente visível porque é inteiramente enunciável”. [2]
E o que se diz do que se vê? E o que vemos enquanto ouvimos os enunciados? Os enunciados das diferentes companhias turísticas vão se embaralhando e formando ao final uma só trama que utiliza as imagens dos próprios turistas, os lugares escolhidos pelos guias para fazer as fotos, as poses, os códigos em torno do que é possível fotografar (“não fotografem pessoas com aparelhos de walkie-talkie ou com armas”) e o momento em que as câmeras tem que ser baixadas e neutralizadas para não afrontarem os poderes locais (o tráfico ou a polícia).
Essa economia das imagens é o que caracteriza o próprio turismo, uma experiência mediada pela posse das imagens, uma experiência que não poderíamos descolar de uma produção proliferante de imagens do outro e da nossa inserção na paisagem e na cena, uma imersão ou vivência, um consumo subjetivo, através e pelas imagens.
O filme explora os clichês turísticos tomando essas imagens, lugares e pontos de vista, como parte de uma narrativa partilhada, que forma o tecido do filme. Mas desnaturaliza as evidências que estão nas falas e nos enunciados dos guias, que explicitam, mesmo quando denegam as questões mais incômodas e difíceis em torno de uma disciplinarização do olhar. Um ordenamento visual, afetivo, produzido pelo biopoder que conecta a subjetividade turística com projetos de ordenação urbana do Estado, e cujos serviços de passeios nas favelas são apenas uma das modulações.
Cena do filme 'Em busca de um lugar comum', de Felippe Schultz Mussel
Tudo que vemos está mediado ou cindido pelo discurso dos guias que modulam, domesticam ou explicitam conflitos e interesses desse biopoder que atravessa e ordena a cidade.
É interessante notarmos as diferentes modulações dos discursos e enunciados. Numa das falas o guia turístico critica os clichês em torno das favelas, o discurso midiático das favelas como lugares da violência da miséria, do gueto. “Fazemos isso há 18 anos, somos pioneiros, consultamos a comunidade antes, vocês não vão ser roubados”. Ou “aqui não é Israel”, “não tem perigo” mas, ao mesmo tempo, “fiquem espertos”. “E se alguém quiser ir sozinho?”, perguntam. “Boa sorte”, é a resposta que denega, mas alimenta a narrativa do risco e dissuade o turista a buscar um percurso autônomo.
A tensão entre o passeio sob controle e disciplinado pelos guias e as transformações e mudanças trazidas depois da implantação das UPPs surge no filme de forma embrionária, como questionamento por parte de alguns turistas que perguntam sobre a eficácia da Polícia Pacificadora e se a ocupação vai continuar depois da Copa do Mundo, uma percepção da criação de uma “seguridade” frágil e transitória, cuja violência (o Estado de Exceção imposto as comunidades e justificado em nome da segurança dos moradores e turistas) não chega a ser explicitado no discurso dos guias. Mas podemos imaginar que a narrativa em torno das UPPs, a percepção de seu “êxito” e/ou “fracasso”, será inevitavelmente incorporada ao discurso dos guias, vocalizando os diferentes enunciados vindos da mídia, policia, moradores, e dos próprios agentes turísticos.
A questão nos parece decisiva, e aparece no documentário Em Busca de Um Lugar Comum (que comum seria esse?) de uma forma reveladora no “tour de inspeção” realizado por uma das agências turísticas, a Forest Tour. O agente parte para a favela Cidade de Deus, acompanhado pela câmera, para prospectar um novo serviço no segmento favela tour. Um novo “nicho de mercado” fora do cinturão turístico tradicional: as favelas da orla carioca e/ou “favelas vitrines” (como Rocinha, Vidigal, Mangueira, Santa Marta, etc.). O impulso para esse novo negócio e “narrativa” é a ocupação da favela pela polícia militar com a chegada das UPPs. .
O dono da agência, Álvaro, vestido de camiseta e uma calça militar camuflada, explicita, de forma impressionante e precisa, como a experiência turística se configura como uma das formas do biopoder (no sentido foucaultiano de ordenamento e modulação da vida). O olhar que prospecta a favela como um novo segmento do negócio do turismo pós-UPPs aposta na militarização como experiência desejável. Uma espécie de turismo de experiência do conflito entre o Estado e o tráfico, entre o tráfico e os moradores, uma turistificação da “guerra particular” nos territórios da pobreza.
Esse olhar socialmente organizado de forma “clínica” como diria Foucault, se mostra absolutamente inserido em uma estratégia de biopoder que ordena a cidade, que cria Estado de Exceção, que modula modos de vida e de circulação. A gestão turística nos territórios da pobreza como parte de um mecanismo de controle soft e que dispara a construção de narrativas que “dramatizam” e transformam em “cena” consumível as forças em disputa nos territórios.
Trata-se de um momento privilegiado de enunciação e visibilidade no filme, uma tentativa de turistificar a guerra e os conflitos que matam milhares (jovens negros sobretudo) nos territórios controlados pelo tráfico e pela polícia pacificadora. O dono da agência fala no conflito entre Israel e Palestina e na faixa de Gaza como inspiração e demanda. Criar uma cena turística em que se pudesse visualizar as marcas da guerra aos pobres com bala na parede, manequim com soldados ou fotos e placas sobre a ocupação das UPPs. “Imagina o que ia atrair de turista!” antecipa.
O “tour de inspeção” é feito em parte na companhia de um policial da UPP local que fala da existência de um “projeto social e não fardado” de treinos de futebol feitos pela polícia em que os turistas “podem contribuir com chuteiras, bola, camisetas”. O agente turístico e o policial fabulam uma nova narrativa para Cidade Deus pós-UPPs, a história de “como um lugar que era inferno virou céu” e como os turistas podem ser agentes dessa boa nova, disseminando pelo mundo essas histórias.
O agente do Forest Tour na sua prospecção vai construindo a narrativa: “Tivemos o Papa no Vidigal, Michael Jackson no Santa Marta, Obama na Cidade de Deus. Fala com os moradores: imagina uma placa ou estátua por onde Obama passou, ou onde as crianças se apresentaram ao presidente dos EUA, podemos contar as histórias da comunidade. Afinal Obama deixou de ir a Copacabana para vir a Cidade de Deus.”
O turismo como voz de comando disciplinadora do imaginário se explicita na fala do policial que acompanha o “tour de inspeção” e prospecção do novo negócio: “É isso, tem que criar ordem, disciplina, não conheço nada no mundo que vai pra frente sem disciplina”. O filme informa nos créditos finais que até a finalização do documentário a Forest Tour “não vendeu nenhum passeio a Cidade de Deus”. Pouco importa, diríamos, o que interessa é que o mecanismo revela de forma exemplar na prospecção esse olhar agenciador e produtor de processos de subjetivação.
Essa turistificação e disciplinarização/modulação do olhar do turista , sob o apelo do “turismo de experiência” pré-definido e pré-configurado pelos agentes dessa urbanização veloz e autoritária, feita de cima para baixo e com efeitos colaterais, sociais, subjetivos, não se restringem ao turista, mobilizam e envolvem os moradores e diferentes agentes de um projeto de urbanização para o turismo e onde a subjetividade turística (consumo descartável, produção de imagens e enunciados consumíveis, controle dos riscos) é o modelo da própria urbanização cosmética.
TURISMO REVERSO: DON’T BE A GRINGO
Quando comecei perguntando se os pobres seriam os novos índios nesse devir turístico do mundo e nos processos de “urbanização para o turismo”, trazia à cena, de um lado, o consumo multicultural, o consumo das diferenças, e, do outro, como commodities em uma bolsa de valores simbólicos em alta em um capitalismo cognitivo, que vende experiências e processos, não apenas produtos. Aqui se comercializa também autenticidade, legitimidade, pureza: “Don’t be a gringo, be a local” é a frase que o guia Marcio Balthazar estampa na sua camiseta e que alimenta as vendas e a narrativa de sua agência de turismo.
“Sou da comunidade, 100%”, é o que também diz Toninho, guia e morador da comunidade, afirmando sua diferença em relação às agências de fora da favela: “aqui a gente conversa, toma cerveja, somos guias independentes”. Numa das cenas finais do documentário, vemos os turistas mais velhos sambando desajeitados na orla da praia ao som de uma batucada e bebendo água de côco com os “nativos” num processo que a antropologia chama de identidade trocada, emprestada ou mesmo roubada e que descreve o desejo de “tornar-se nativo” e adquirir prestígio naquele ou em seu próprio grupo social por “imitação” ou troca com o outro com resultados cômicos ou desajeitados, em grande parte.
A questão se complexifica quando sabemos que o desejo de tornar-se nativo por parte dos “gringos” tem como correlato uma “etnicidade-para-turismo” no qual as culturas se exotizam para atender aos turistas e suas demandas, “fazer-se-nativo-para-turistas”. [3]
A fala de Toninho no filme aponta para uma possível reversão da turistificação das favelas em valores e melhorias para os próprios moradores, se pudessem tomar para si o próprio “copyright” de sua miséria. Teríamos então como horizonte uma Favela “commons” cujas experiências, processos de sociabilidade e subjetivação não sejam simplesmente expropriados pelo capital, pelo Estado, pelas forças policiais ou pelo tráfico, pelas corporações e agentes de mídia, mas que se constituíssem como um lugar de resistência biopolítica diante das novas formas de expropriação no capitalismo cognitivo.
O que nos mostra Em Busca de um Lugar Comum ainda está muito distante dessa favela commons, colaborativa, que se autogestiona e decide que comunidade e que cidade queremos. Os discursos dos guias e dos turistas tem como horizonte uma “humanização” despotencializada da pobreza, com discursos de uma pretensa profissionalização em relação aos pobres e sua produção cultural. Um dos turistas se surpreende ao saber que o Carnaval vem das favelas e comunidades. A produção cultural urbana que vem das favelas ainda não tem narrativa. Os turistas são direcionados para a favela “modernista”, a pobreza “narrativa clássica”: para consumirem o “artesanato”, quadros e telas pintadas com a exuberante paisagem, camisetas e souvenirs. E são alertados: “Não dêem dinheiro, estamos educando [os pobres] para venderem seus produtos” ou “ter alguma coisa para vender é melhor do que apenas pedir”. Ou seja, trata-se de uma pedagogia disciplinadora em que todos se tornam parte de uma “cadeia produtiva” azeitada por narrativas piedosas e/ou paternais.
As imagens são o outro grande negócio da subjetividade turística. Fotografar é tomar posse do outro e entrar literalmente na cena: “Atenção, olhem meus amigos!” Grita entusiasmado o guia diante da paisagem deslumbrante da Rocinha. Vejam os contrates. Tudo é fotografável: os guias fazem a tradicional parada para as fotos em lugares estratégicos – fotografa-se as pessoas, o lixão, os fios emaranhados da fiação elétrica caótica, a estética do precário e da pobreza. “Posso tirar uma foto de vocês duas com a favela no fundo”, oferece o guia construtor de cenas.
Os enunciados, o visível e o dizível, vão se emaranhando em uma trama que simula o ‘caoscontrução’ das favelas. O documentário atinge o seu ápice como linguagem ao produzir essa trama vertiginosa, superpondo as falas em diferentes línguas, as poses recorrentes e repetitivas dos turistas, os números e estatísticas sobre as favelas, explicações sobre o tráfico de drogas, as fotos dos próprios turistas. Uma polifonia e ruidocracia que pode tanto nos fazer ver como enuncia o desafio de, diante de uma proliferação infinita de imagens e clichês, fender, rachar, quebrar a evidência de tudo o que aí se mostra.
O devir índio dos pobres tem como contrapartida não apenas a sua entrada nas narrativas do exotismo e do turismo de experiência, em todas as suas formas de perversão. Na África do Sul, ‘hotel de Luxo simula favela para turistas experimentarem a pobreza” [4], a antropologia reversa nos ensina que quando o outro passa a nos olhar como objetos do discurso, rompe a assimetria. É o que temos visto no Brasil com a emergência dos ex-pobres que, ao fazerem “turismo de experiência” nos rolezinhos nos shoppings, universidades, aeroportos, clubes, nos espaços de distinção de outros grupos sociais, explicitam e encenam uma outra partilha do sensível, um desordenamento urbano e subjetivo e a construção de novas narrativas.
[1] A descrição da experiência do turismo na favela com o Jeep Tour foi tema de um dos primeiros ensaios sobre “a cultura da favela” publicado por mim no Jornal do Brasil: BENTES, Ivana. “Da Lepra da Estérica à Favela Pop, chic ou aérea”. Jornal do Brasil/ Caderno B, Rio de Janeiro, p. 4 – 5, 02/11/2001.
[2] FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 2001
[3] ver ensaio de Rodrigo de Azeredo Grünewald. Turismo e Etnicidade. Horizonte antropológico. vol.9 no.20 Porto Alegre Oct. 2003http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-71832003000200008&script=sci_arttext
[4] http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/11/hotel-de-luxo-simula-favela-para-turistas-experimentarem-pobreza.html
IVANA BENTES é professora e pesquisadora da linha de Tecnologias da Comunicação e Estéticas do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ. É Doutora em Comunicação pela UFRJ, ensaísta do campo da Comunicação, Cultura e Novas Mídias. Atualmente desenvolve as pesquisas: “Estéticas da Comunicação: Novos Modelos Teóricos no Capitalismo Cognitivo” (com apoio do CNPQ) e “Periferia Global” sobre o imaginário e as ações vindas das favelas e periferias na cultura brasileira e no cenário global e suas redes de articulação.
Revista Carbono
O discurso midiático em curso, do medo difuso e demanda de repressão em relação aos territórios da pobreza (a instalação de um Estado de Exceção pré e pós UPPs), se mistura e se embaralha com as diferentes formas de consumir a pobreza, ligadas ao circuito do turismo e das trocas culturais.
Uma cena comum em Copacabana e pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, ainda causa certo estranhamento. Um imenso jipe verde-oliva, apinhado de turistas vestidos como se partissem para um safári africano, cruza a Avenida Atlântica saindo do Copacabana Palace ou de algum hotel da cidade. O Jeep Tour leva gente de todas as nacionalidades para ver de perto ou do alto do jipe esse “habitat natural” de uma pobreza ironicamente incorporada à imagem turística e folclórica do Rio de Janeiro. [1] Um outro serviço, o Favela Tour, faz o mesmo trajeto, em visita a Rocinha, e ensina que as favelas têm história e memória, reinserindo as favelas na história da própria cidade, da qual não têm como ser separadas.
Ao longo das últimas décadas, muitos outros serviços de turismo nas favelas apareceram (não apenas os passeios de Jeep e vans, mas pousadas, festas de Reveillon, bares), dentro e fora do Brasil. O documentário, Em Busca de Um Lugar Comum, de Felippe Schultz Mussel, se atém aos “favela tours”, os passeios oferecidos pelas agências de turismo aos visitantes estrangeiros pelas favelas do Rio. Mas mais do que isso, o filme vai desvendar toda uma complexa trama de discursos e fabulações em torno das favelas e seus personagens.
Favelas, no Brasil; Colonias Populares, no México; Chawls na India; Iskwaters, nas Filipinas; Baladis, no Cairo, os Ghettos; nos Estados Unidos, etc. A palavra “favela” vai sendo generalizada para significar as periferias nacionais e internacionais. No Brasil, a palavra “favela” ainda causa controvérsia principalmente entre seus moradores que preferem muitas vezes o termo “comunidade” (ou seu nome urbanístico, bairro, integradas a toda a cidade). Mas o nome favela tem história, uma história de lutas, que muitos preferem afirmar e potencializar.
As favelas, fixadas e congeladas em tantos mitos e fabulações se abrem para a dinâmica das periferias “glocais” (globais e locais) em transformação. A favela genérica, a favela em mutação, a favela global, que nos interessa aqui, carregada de discursos antagônicos que concorrem entre si. A favela turística, inserida em um discurso de biopoder (o controle do território dos pobres a partir de um Estado de Exceção com a ocupação das UPPs pelo Estado) mas também as favelas “commons” , que produzem sociabilidade, linguagem, expressões culturais, afetividade, solidariedade, trabalho colaborativo e bens comuns.
“Favela Chic” é o nome de um bar brasileiro da moda em Paris, uma imagem paradoxal dessa sociedade periférica global em que a pobreza e os confrontos sociais, dentro e fora do cinema, podem ser encarados ao mesmo tempo como intolerável, mas também como “charme” e “grife”, como dinâmica cultural de sentidos dificilmente cristalizáveis: Favela Caviar, Favela Ostentação, Pobre Star, são outras expressões que apontam para as constantes mutações e deslizamento de sentidos.
A favela “moderna” se diferencia da favela global, pois ainda é o cartão-postal às avessas, uma espécie de museu da miséria, etapa histórica não-superada do capitalismo, e os pobres, que deveriam, dada toda produção de riquezas do mundo, estar entrando em extinção, são parte dessa estranha “reserva”, “preservada” e que a qualquer momento sai do controle do Estado e explode, “ameaçando” a cidade. Em contraposição, podemos pensar a favela global como fluxo e troca, em que as assimetrias e hierarquias não desaparecem como mágica, mas entram em colisão com outros signos e sentidos e onde fundamentalmente a favela pode ser vista como território integrado e produtivo.
É nesse contexto, de uma cultura capaz de relacionar as favelas com fascínio e terror, percebendo seu “arcaísmo”, mas também sua produtividade e suas potencialidades, que podemos analisar os filmes brasileiros contemporâneos que se voltam para esses temas. Filmes que quase nunca se pretendem “explicativos” de qualquer contexto, que não se arriscam a julgar – narrativas perplexas, que se apresentam como sintomas, mas que diagnósticos de um estado de coisas e só muito recentemente ousam afirmar algo.
A vertente urbanística de turistificação das cidades (ligadas inclusive aos mega-eventos globais que produzem uma reordenação urbana radical e problemática, violenta, autoritária e negociada duramente com seus moradores) inclui a museificação das favelas. Um processo controverso, que se por um lado as preservam e impedem sua remoção (como o belo projeto de tombamento da Favela da Providência, no Rio de Janeiro), faz pensar na pobreza e miséria como uma espécie de “museu da humanidade”, em que as favelas “tombadas” são pontos turísticos de conexão entre olhares distintos: o primitivismo-exótico, o turismo multicultural, o impulso de preservação de modos de vida em “extinção” – e o que poderia ser um outro reconhecimento das favelas e suas dinâmicas como potência disruptiva e decisiva para se pensar o futuro das cidades: a Favela como “commons”.
A forma “museu” é controversa e surge como uma ideia complementar a projetos como o Favela-Bairro no Rio de Janeiro – de integração das favelas à cidade de forma a fugir do discurso redutor da “cidade partida”. O tombamento do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, com um Museu a Céu Aberto, pontos históricos recuperados e a ideia da favela como patrimônio é um caso exemplar dessa disputa. Para além do Estado, os próprios moradores hoje se pensam como “história”, como explicita as propostas e ações do Museu da Maré do Complexo da Maré, uma iniciativa comunitária, ou o MUF (Museu de Favela), fundado por lideranças comunitárias das favelas Pavão, Pavãozinho e Cantagalo.
Mas o imaginário em torno da experiência da pobreza extrapola qualquer ideia de “museu” tradicional e torna-se constituinte da fabulação do urbano e das cidades. As favelas passam hoje pelo mesmo processo que marca as cidades globais, de turistificação que combina elementos da “urbanização turística” e a “urbanização para o turismo”, políticas urbanas de intervenções territoriais em locais potencialmente turísticos. Um ordenamento e nova partição do sensível que, no caso do Rio de Janeiro, passa por um processo traumático e problemático: as obras de infraestrutura e de acesso são precedidas por uma intervenção policial ou militar, um dispositivo policial-turístico de ordenamento extremamente violento.
O que chama atenção no filme Em Busca de um Lugar Comum são os diferentes discursos em torno das favelas e da pobreza. Há uma sinergia mais do que um confronto entre as falas dos agentes e donos de diferentes serviços de passeios (city tours) pelas favelas e os discursos dos turistas. Os agentes de certa forma respondem aos desejos dos turistas criando narrativas cujos elementos colocam em cena e explicitam valores como o exotismo, a autenticidade, o risco, a solidariedade funcionando como mediadores entre mundos, seja reforçando ou desconstruindo clichês.
É que a questão da pobreza e sua experiência consumível diz respeito a um campo bem mais amplo de tensionamento. O momento em que as subjetividades e seus modos de ser e estar se tornam “commodities”: da favela à aldeia indígena o fascínio pelo outro produz uma bipolaridade esquizofrênica. Só te reconheço enquanto provedor do meu desejo de consumo, mas não necessariamente como sujeito político e de direitos.
No filme, as diferentes estéticas e linguagens dos serviços de passeio pelas favelas já indicam as modulações discursivas, de Favela Tour a Forest Tour, cada agência se vale de um campo de repertórios: as questões sociais, o tráfico e a violência; os “nativos” em estado de museu; a paisagem e o meio ambiente.
O filme e a narrativa literalmente fazem o tour e não se colocam “de fora”, ao escolherem o lugar de passageiros embarcados nas vans, misturados com os turistas, experimentam o deslocamento suplementar de ver sua própria cidade com olhos outros e de outros. Uma câmera e narrativa de “turista aprendiz” cujo lugar – estar lá e estar junto, observar e participar – produz a percepção e expressão de uma subjetividade turística genérica, um modelo paradigmático da produção da subjetiva contemporânea.
Podemos perceber que as críticas ao modelo clássico do turismo nas favelas, que poderia ser o motor de um documentário que partisse de pressupostos hoje comuns de constatação e reconhecimento desse modo subjetivo turístico de consumo e descarte, já foram incorporadas pelos próprios agentes turísticos e guias.
Nesse sentido o filme monta um dispositivo de captura desses deslocamentos: um olhar que escuta e um olhar que fala, a relação entre o visível e o enunciável, como propunha Michel Foucault em O Nascimento da Clínica ao falar de um olhar “clínico”: “a experiência clínica representa um momento de equilíbrio entre a palavra e o espetáculo. Equilíbrio precário, pois se baseia em um postulado: “todo visível é enunciável e é inteiramente visível porque é inteiramente enunciável”. [2]
E o que se diz do que se vê? E o que vemos enquanto ouvimos os enunciados? Os enunciados das diferentes companhias turísticas vão se embaralhando e formando ao final uma só trama que utiliza as imagens dos próprios turistas, os lugares escolhidos pelos guias para fazer as fotos, as poses, os códigos em torno do que é possível fotografar (“não fotografem pessoas com aparelhos de walkie-talkie ou com armas”) e o momento em que as câmeras tem que ser baixadas e neutralizadas para não afrontarem os poderes locais (o tráfico ou a polícia).
Essa economia das imagens é o que caracteriza o próprio turismo, uma experiência mediada pela posse das imagens, uma experiência que não poderíamos descolar de uma produção proliferante de imagens do outro e da nossa inserção na paisagem e na cena, uma imersão ou vivência, um consumo subjetivo, através e pelas imagens.
O filme explora os clichês turísticos tomando essas imagens, lugares e pontos de vista, como parte de uma narrativa partilhada, que forma o tecido do filme. Mas desnaturaliza as evidências que estão nas falas e nos enunciados dos guias, que explicitam, mesmo quando denegam as questões mais incômodas e difíceis em torno de uma disciplinarização do olhar. Um ordenamento visual, afetivo, produzido pelo biopoder que conecta a subjetividade turística com projetos de ordenação urbana do Estado, e cujos serviços de passeios nas favelas são apenas uma das modulações.
Cena do filme 'Em busca de um lugar comum', de Felippe Schultz Mussel
Tudo que vemos está mediado ou cindido pelo discurso dos guias que modulam, domesticam ou explicitam conflitos e interesses desse biopoder que atravessa e ordena a cidade.
É interessante notarmos as diferentes modulações dos discursos e enunciados. Numa das falas o guia turístico critica os clichês em torno das favelas, o discurso midiático das favelas como lugares da violência da miséria, do gueto. “Fazemos isso há 18 anos, somos pioneiros, consultamos a comunidade antes, vocês não vão ser roubados”. Ou “aqui não é Israel”, “não tem perigo” mas, ao mesmo tempo, “fiquem espertos”. “E se alguém quiser ir sozinho?”, perguntam. “Boa sorte”, é a resposta que denega, mas alimenta a narrativa do risco e dissuade o turista a buscar um percurso autônomo.
A tensão entre o passeio sob controle e disciplinado pelos guias e as transformações e mudanças trazidas depois da implantação das UPPs surge no filme de forma embrionária, como questionamento por parte de alguns turistas que perguntam sobre a eficácia da Polícia Pacificadora e se a ocupação vai continuar depois da Copa do Mundo, uma percepção da criação de uma “seguridade” frágil e transitória, cuja violência (o Estado de Exceção imposto as comunidades e justificado em nome da segurança dos moradores e turistas) não chega a ser explicitado no discurso dos guias. Mas podemos imaginar que a narrativa em torno das UPPs, a percepção de seu “êxito” e/ou “fracasso”, será inevitavelmente incorporada ao discurso dos guias, vocalizando os diferentes enunciados vindos da mídia, policia, moradores, e dos próprios agentes turísticos.
A questão nos parece decisiva, e aparece no documentário Em Busca de Um Lugar Comum (que comum seria esse?) de uma forma reveladora no “tour de inspeção” realizado por uma das agências turísticas, a Forest Tour. O agente parte para a favela Cidade de Deus, acompanhado pela câmera, para prospectar um novo serviço no segmento favela tour. Um novo “nicho de mercado” fora do cinturão turístico tradicional: as favelas da orla carioca e/ou “favelas vitrines” (como Rocinha, Vidigal, Mangueira, Santa Marta, etc.). O impulso para esse novo negócio e “narrativa” é a ocupação da favela pela polícia militar com a chegada das UPPs. .
O dono da agência, Álvaro, vestido de camiseta e uma calça militar camuflada, explicita, de forma impressionante e precisa, como a experiência turística se configura como uma das formas do biopoder (no sentido foucaultiano de ordenamento e modulação da vida). O olhar que prospecta a favela como um novo segmento do negócio do turismo pós-UPPs aposta na militarização como experiência desejável. Uma espécie de turismo de experiência do conflito entre o Estado e o tráfico, entre o tráfico e os moradores, uma turistificação da “guerra particular” nos territórios da pobreza.
Esse olhar socialmente organizado de forma “clínica” como diria Foucault, se mostra absolutamente inserido em uma estratégia de biopoder que ordena a cidade, que cria Estado de Exceção, que modula modos de vida e de circulação. A gestão turística nos territórios da pobreza como parte de um mecanismo de controle soft e que dispara a construção de narrativas que “dramatizam” e transformam em “cena” consumível as forças em disputa nos territórios.
Trata-se de um momento privilegiado de enunciação e visibilidade no filme, uma tentativa de turistificar a guerra e os conflitos que matam milhares (jovens negros sobretudo) nos territórios controlados pelo tráfico e pela polícia pacificadora. O dono da agência fala no conflito entre Israel e Palestina e na faixa de Gaza como inspiração e demanda. Criar uma cena turística em que se pudesse visualizar as marcas da guerra aos pobres com bala na parede, manequim com soldados ou fotos e placas sobre a ocupação das UPPs. “Imagina o que ia atrair de turista!” antecipa.
O “tour de inspeção” é feito em parte na companhia de um policial da UPP local que fala da existência de um “projeto social e não fardado” de treinos de futebol feitos pela polícia em que os turistas “podem contribuir com chuteiras, bola, camisetas”. O agente turístico e o policial fabulam uma nova narrativa para Cidade Deus pós-UPPs, a história de “como um lugar que era inferno virou céu” e como os turistas podem ser agentes dessa boa nova, disseminando pelo mundo essas histórias.
O agente do Forest Tour na sua prospecção vai construindo a narrativa: “Tivemos o Papa no Vidigal, Michael Jackson no Santa Marta, Obama na Cidade de Deus. Fala com os moradores: imagina uma placa ou estátua por onde Obama passou, ou onde as crianças se apresentaram ao presidente dos EUA, podemos contar as histórias da comunidade. Afinal Obama deixou de ir a Copacabana para vir a Cidade de Deus.”
O turismo como voz de comando disciplinadora do imaginário se explicita na fala do policial que acompanha o “tour de inspeção” e prospecção do novo negócio: “É isso, tem que criar ordem, disciplina, não conheço nada no mundo que vai pra frente sem disciplina”. O filme informa nos créditos finais que até a finalização do documentário a Forest Tour “não vendeu nenhum passeio a Cidade de Deus”. Pouco importa, diríamos, o que interessa é que o mecanismo revela de forma exemplar na prospecção esse olhar agenciador e produtor de processos de subjetivação.
Essa turistificação e disciplinarização/modulação do olhar do turista , sob o apelo do “turismo de experiência” pré-definido e pré-configurado pelos agentes dessa urbanização veloz e autoritária, feita de cima para baixo e com efeitos colaterais, sociais, subjetivos, não se restringem ao turista, mobilizam e envolvem os moradores e diferentes agentes de um projeto de urbanização para o turismo e onde a subjetividade turística (consumo descartável, produção de imagens e enunciados consumíveis, controle dos riscos) é o modelo da própria urbanização cosmética.
TURISMO REVERSO: DON’T BE A GRINGO
Quando comecei perguntando se os pobres seriam os novos índios nesse devir turístico do mundo e nos processos de “urbanização para o turismo”, trazia à cena, de um lado, o consumo multicultural, o consumo das diferenças, e, do outro, como commodities em uma bolsa de valores simbólicos em alta em um capitalismo cognitivo, que vende experiências e processos, não apenas produtos. Aqui se comercializa também autenticidade, legitimidade, pureza: “Don’t be a gringo, be a local” é a frase que o guia Marcio Balthazar estampa na sua camiseta e que alimenta as vendas e a narrativa de sua agência de turismo.
“Sou da comunidade, 100%”, é o que também diz Toninho, guia e morador da comunidade, afirmando sua diferença em relação às agências de fora da favela: “aqui a gente conversa, toma cerveja, somos guias independentes”. Numa das cenas finais do documentário, vemos os turistas mais velhos sambando desajeitados na orla da praia ao som de uma batucada e bebendo água de côco com os “nativos” num processo que a antropologia chama de identidade trocada, emprestada ou mesmo roubada e que descreve o desejo de “tornar-se nativo” e adquirir prestígio naquele ou em seu próprio grupo social por “imitação” ou troca com o outro com resultados cômicos ou desajeitados, em grande parte.
A questão se complexifica quando sabemos que o desejo de tornar-se nativo por parte dos “gringos” tem como correlato uma “etnicidade-para-turismo” no qual as culturas se exotizam para atender aos turistas e suas demandas, “fazer-se-nativo-para-turistas”. [3]
A fala de Toninho no filme aponta para uma possível reversão da turistificação das favelas em valores e melhorias para os próprios moradores, se pudessem tomar para si o próprio “copyright” de sua miséria. Teríamos então como horizonte uma Favela “commons” cujas experiências, processos de sociabilidade e subjetivação não sejam simplesmente expropriados pelo capital, pelo Estado, pelas forças policiais ou pelo tráfico, pelas corporações e agentes de mídia, mas que se constituíssem como um lugar de resistência biopolítica diante das novas formas de expropriação no capitalismo cognitivo.
O que nos mostra Em Busca de um Lugar Comum ainda está muito distante dessa favela commons, colaborativa, que se autogestiona e decide que comunidade e que cidade queremos. Os discursos dos guias e dos turistas tem como horizonte uma “humanização” despotencializada da pobreza, com discursos de uma pretensa profissionalização em relação aos pobres e sua produção cultural. Um dos turistas se surpreende ao saber que o Carnaval vem das favelas e comunidades. A produção cultural urbana que vem das favelas ainda não tem narrativa. Os turistas são direcionados para a favela “modernista”, a pobreza “narrativa clássica”: para consumirem o “artesanato”, quadros e telas pintadas com a exuberante paisagem, camisetas e souvenirs. E são alertados: “Não dêem dinheiro, estamos educando [os pobres] para venderem seus produtos” ou “ter alguma coisa para vender é melhor do que apenas pedir”. Ou seja, trata-se de uma pedagogia disciplinadora em que todos se tornam parte de uma “cadeia produtiva” azeitada por narrativas piedosas e/ou paternais.
As imagens são o outro grande negócio da subjetividade turística. Fotografar é tomar posse do outro e entrar literalmente na cena: “Atenção, olhem meus amigos!” Grita entusiasmado o guia diante da paisagem deslumbrante da Rocinha. Vejam os contrates. Tudo é fotografável: os guias fazem a tradicional parada para as fotos em lugares estratégicos – fotografa-se as pessoas, o lixão, os fios emaranhados da fiação elétrica caótica, a estética do precário e da pobreza. “Posso tirar uma foto de vocês duas com a favela no fundo”, oferece o guia construtor de cenas.
Os enunciados, o visível e o dizível, vão se emaranhando em uma trama que simula o ‘caoscontrução’ das favelas. O documentário atinge o seu ápice como linguagem ao produzir essa trama vertiginosa, superpondo as falas em diferentes línguas, as poses recorrentes e repetitivas dos turistas, os números e estatísticas sobre as favelas, explicações sobre o tráfico de drogas, as fotos dos próprios turistas. Uma polifonia e ruidocracia que pode tanto nos fazer ver como enuncia o desafio de, diante de uma proliferação infinita de imagens e clichês, fender, rachar, quebrar a evidência de tudo o que aí se mostra.
O devir índio dos pobres tem como contrapartida não apenas a sua entrada nas narrativas do exotismo e do turismo de experiência, em todas as suas formas de perversão. Na África do Sul, ‘hotel de Luxo simula favela para turistas experimentarem a pobreza” [4], a antropologia reversa nos ensina que quando o outro passa a nos olhar como objetos do discurso, rompe a assimetria. É o que temos visto no Brasil com a emergência dos ex-pobres que, ao fazerem “turismo de experiência” nos rolezinhos nos shoppings, universidades, aeroportos, clubes, nos espaços de distinção de outros grupos sociais, explicitam e encenam uma outra partilha do sensível, um desordenamento urbano e subjetivo e a construção de novas narrativas.
[1] A descrição da experiência do turismo na favela com o Jeep Tour foi tema de um dos primeiros ensaios sobre “a cultura da favela” publicado por mim no Jornal do Brasil: BENTES, Ivana. “Da Lepra da Estérica à Favela Pop, chic ou aérea”. Jornal do Brasil/ Caderno B, Rio de Janeiro, p. 4 – 5, 02/11/2001.
[2] FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 2001
[3] ver ensaio de Rodrigo de Azeredo Grünewald. Turismo e Etnicidade. Horizonte antropológico. vol.9 no.20 Porto Alegre Oct. 2003http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-71832003000200008&script=sci_arttext
[4] http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/11/hotel-de-luxo-simula-favela-para-turistas-experimentarem-pobreza.html
IVANA BENTES é professora e pesquisadora da linha de Tecnologias da Comunicação e Estéticas do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ. É Doutora em Comunicação pela UFRJ, ensaísta do campo da Comunicação, Cultura e Novas Mídias. Atualmente desenvolve as pesquisas: “Estéticas da Comunicação: Novos Modelos Teóricos no Capitalismo Cognitivo” (com apoio do CNPQ) e “Periferia Global” sobre o imaginário e as ações vindas das favelas e periferias na cultura brasileira e no cenário global e suas redes de articulação.
Revista Carbono
Nenhum comentário:
Postar um comentário