segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A Conspiração dos Injustos


O voto de todos os cidadãos tem peso igual na urna; nela, nenhum eleitor é superior ao outro. Por que alguns candidatos agridem quem não votou neles?

Walquiria Domingues Leão Rego

O título deste artigo foi emprestado do quadro do pintor argentino Antonio Berni, em exposição no Malba, o Museu de Arte Latino Americana de Buenos Aires. 
A força dessa pintura inspira pensar o Brasil dos dias que correm. 

Em qualquer país considerado democrático, em que as instituições de controle do Estado de Direito Democrático funcionam, o respeito às regras eleitorais é um fator constitutivo e rotineiro da vida política e social.

Por suposto, resultados eleitorais assim escrutinados são democraticamente entendidos como manifestação da soberania popular.

As expectativas consensuais em torno desse axioma alicerçam um dos pilares fundamentais da democracia. À negação desse princípio dá-se o nome de fraude, prática típica de toda a sorte de regime arbitrário, autocrático.

Se a diferença numérica dos votos entre eleitos e derrotados for grande ou pequena servirá apenas à reflexão da sociedade na tentativa --sempre necessária-- de compreender seus sentimentos mais profundos, que interessam a todos os protagonistas de um certame político.


Não consta na prática de nenhuma democracia conferir aos vencidos, porque foram vencidos, o direito de insultar e agredir a cidadania que neles não votou, ou insistir, de forma recorrente, na desqualificação da escolha majoritária da sociedade.


Por que razão isto se impõe em uma democracia?


Por uma razão muito forte.


Porque a forma democrática e republicana sustenta a sua configuração fundamental em uma exigência mínima que pode ser assim resumida: o voto de todos os cidadãos tem peso igual na urna; nela, nenhum eleitor é superior ao outro.


A igualdade política básica, que afronta a desigualdade muitas vezes extremada na esfera econômica, sempre incomodou aos privilegiados. Os injustos, para recorrer a Berni, aqueles acostumados a não ter limites na presunção arrogante de sua superioridade, os mais informados, os mais dinâmicos, avocam-se os donos naturais da nação.


Essa suposta supremacia sente-se agredida diante da urna isonômica e, não raro, adversa.


O que temos assistido nos dias subsequentes às eleições presidenciais de outubro é a reiteração dessa anomalia. Repete-se o velho hábito em que as elites e a sua poderosa aliada, a mídia, repetem mais uma vez o velho hábito de agredir o voto que não lhes foi conferido.


São os “votos dos marmiteiros” , disse, sem peias, certa vez, um candidato a presidente da república.


Na urna presidencial de 2014, a parte majoritária do eleitorado, aquela formada por 54,5 milhões de brasileiros e brasileiras (51,64% do eleitorado) reelegeu Dilma Rousseff, contra os 48,36% que optaram por Aécio Neves. A escolha majoritária tem sido alvo da desqualificação ressentida dos derrotados e de seus fiéis emissários em tela e papel.


O conjunto dispensa ao voto da maioria a desconcertante sentença de um sub voto, o voto dos desinformados, dos menos ‘dinâmicos e, para que não haja dúvida de sua má procedência, o voto dos corruptos!


Uma presidenta recém eleita por esse colégio carece de legitimidade, insinua-se ardilosamente.


Esse é o ponto a que chegamos. Ele convoca a sociedade a discernir o que é, final, a legitimidade em uma democracia, sob risco de se consumar a regressão da gramática política à algaravia esgrimida ad nauseam pelos golpistas grotescos e sombrios de 1948, por exemplo. A exemplo do que se insinua hoje, eles conseguiram cassar o direito de pertencer ao sistema democrático ao então muito popular partido comunista brasileiro, bem como ao partido socialista. ‘Ilegítimos.’


Florestan Fernandes em um dos textos mais agudos da sociologia política brasileira, de 1954, demonstrou o resultado dramático da operação levada a efeito então.


As forças conservadoras irmanadas no seu tradicional consórcio de privilégios, sendo o econômico o mais evidente, magnificado porém pelo controle de todos os recursos de poder, em especial o comando da mídia e de parcelas do judiciário, usurparam à soberania popular a prerrogativa de modelar o acesso à vida política, reduzindo-o a mais um de seus privilégios.


O texto de Florestan Fernandes ressoa angustiante atualidade: foram cevados nesta operação, alerta, e vicejaram por anos a fio na vida brasileira, o descrédito na política e nos partidos e seu correspondente corrosivo, a indiferença e a apatia cívica.


O que quer a engrenagem em curso nos dias que correm? Mais uma vez retirar da cena pública partidos e eleitores inconvenientes? Desvertebrar a sociedade democrática em nome da democracia?


Constitutiva e emblemática dessa atmosfera carregada, a acusação recente do candidato derrotado, em entrevista à não menos funcional TV Globo, explicita aquilo que até então vinha dissimulado.


A linguagem, mais uma vez, é a do insulto, debocha-se dos eleitores. O sotaque é o descompromisso com as regras da política democrática. Sem nenhum pejo, o candidato assegura que não perdeu a eleição para um partido, ou um projeto, mas, sim, para uma associação criminosa! Portanto, não houve derrota legítima. E se não houve, a vitória foi usurpada!


Onde estamos? Na fronteira do vale tudo.


Com que base de Direito um homem público se pronuncia nestes termos a respeito de um partido político que possui milhões de eleitores, tendo sido por quatro vezes sucessivas alçado democraticamente ao comanda da Nação?


Na linguagem virulenta, preconcebida para o espaço reservado à manchete garrafal, está a resposta. O jogral afinado reflete uma concepção autocrática da política, a certeza do poder agir sem limites, do fazer e falar o que bem entende, protegido por fortes poderes que modulam e credenciam esse lançar mão impunemente do idioma do golpismo cínico e vulgar.


Criminaliza-se sem nenhum pudor. Sem a observância mínima da prudência e da cautela que qualquer homem público deve ter diante de processos em estágio de apuração, como o da Petrobrás.


O atropelo de uma cautela básica do pacto fundador de Estado de Direito emite uma advertência à sociedade.


Norberto Bobbio alertava que os violadores da justiça e da democracia gostam de falar em nome delas. São suas deusas preferidas, sua principal referência retórica. Assim o fazem, dizia o filosofo italiano, para melhor golpeá-las. A presunção é a mesma que motiva a escalada em curso no país. Os derrotados arvoram-se em detentores de uma delegação transcendente que os autorizaria a expropriar a prerrogativa da urna, monopolizando a atividade política para torna-la mais uma exclusividade da elite.


A roleta russa contra o coração do Estado de Direito precisa ser desarmada. Nunca o será pela última vez. Recordemos a potente lucidez de Raymundo Faoro, que vaticinou ser o Brasil um país, cujo processo histórico estaria destinado a repetir uma sucessão de tempos e formas que não passam de recondicionamentos de outros tempos. Ontem como hoje a interdição da vida democrática sempre foi o repto do conservadorismo derrotado nas urnas. Ontem como hoje é preciso desautoriza-lo. Essa é uma tarefa intransferível dos partidos políticos comprometidos com a justiça social e a democracia. Cabe-lhes ampliar e reforçar a barragem contra a maleita golpista, avivando o discernimento histórica e a organização política indispensáveis a uma sociedade que reconhece no escrutínio democrático a bússola do seu destino.


Carta Maior

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