1. Peço licença, inicialmente, para um breve relato pessoal. Nos anos 1980 contribuí mensalmente com parte do meu salário para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os depósitos duraram de dois a três anos, quando a campanha foi encerrada, por falta de adesão. Com sacrifício, cheguei a oferecer até 10% do meu ganho e ainda guardo os recibos. Por que fiz isso? Naqueles anos, saindo do ciclo militar e ansioso pela democracia, ingenuamente entendi ser o MST uma força que renovaria a oligárquica política rural. Como os seus militantes passaram a ameaçar as famílias em assentamentos, o sonho desmoronou e retornei à vida universitária.
Na época, quase todos nós apoiávamos o PT, mesmo não sendo filiados. Imaginávamos que o partido também forçaria transformações em alguma direção positiva. Ou a reforma social ou, ao menos, a democratização da sociedade. Vivíamos então um período febril de debates plurais e de experiências práticas. Lembram-se do “modo petista de governar”? Era simbolizado pelo orçamento participativo, que prometia a livre participação dos cidadãos em decisões públicas sobre os orçamentos municipais. Na campanha de 2002, contudo, o candidato petista mal falou do assunto e, no poder, o tema se esfumaçou.
O assombroso escândalo da Petrobrás, que nos deixa estupefatos, é apenas o efeito inevitável da história do Partido dos Trabalhadores. A causa original é um mecanismo que o diferencia das demais agremiações partidárias. Trata-se de um processo de mobilidade social ascendente, inédito em sua magnitude. Movimento que poderia ser virtuoso, se aberto a todos, pois seria a consequência do desenvolvimento social. Mas, na prática, vem sendo uma odiosa discriminação, pois é processo atado à filiação partidária.
O núcleo pioneiro do PT recrutou segmentos das classes baixas e mais pobres, mobilizados pelo campo sindical, pelos setores radicalizados das classes médias, incluindo parte da intelectualidade, e pela esquerda católica, ampliando nacionalmente o grupo petista inicial. À medida que o partido, já nos anos 90, foi conquistando nacos do aparato estatal, vieram os cargos para os militantes e, assim, a chance arrebatadora de ascender às vias do dinheiro, do poder, das influências e do mando pessoal. Esse foi o degenerativo fogo fundador que deu origem a tudo o que aconteceu posteriormente.
Inebriados, cada vez mais, pelo irresistível prazer do novo mundo aberto a essas camadas, até mesmo impensáveis formas de consumo, todos os sonhos fundacionais de mudança foram sendo estilhaçados ao longo do caminho, incluídos a razoabilidade e os limites éticos. O PT gerou dentro de si uma incontrolável ânsia de mobilidade, uma voragem autodestruidora inspirada na monstruosa desigualdade que sempre nos caracterizou. Conquistado o Planalto, não houve nem revolução nem reforma e o fato serviu, particularmente, para saciar a fome histórica dos que vieram de baixo.
Instalou-se, em consequência, o arrivismo e a selva do vale-tudo: foi morrendo o padrão Suplicy e entrou o modelo Delúbio-Erenice. Logo a seguir, ante a inépcia da ação governamental, também foi necessário impor a mentira como forma de governo. Por fim, o PT mudou de cabeça para baixo o seu próprio financiamento. Abandonou o apoio miúdo e generoso dos milhões que o sustentaram na primeira metade de sua história, pois se tornara mais cômodo usar o atacado para ancorar-se no poder. Primeiro, o mensalão e, agora, os cofres da Petrobrás.
Nessa espiral doentia de mudanças, a partir de meados dos anos 1990 o partido enterrou o seu passado. Sua capacidade de reflexão, por exemplo, deixou de existir e o imediatismo passou a prevalecer. Assim, um projeto de nação ou uma estratégia de futuro não interessavam mais. O pragmatismo tornou-se a máxima dessa nova elite e sob esse caminho o subgrupo sindical e seus militantes vêm pilhando o que for possível dentro do Estado. Examinados tantos escândalos, invariavelmente a maioria veio do campo sindical. E foi assim porque da tríade original dos anos 80, a classe média radicalizada e os religiosos abandonaram o partido.
Deixaram de reconhecê-lo como o vetor que faria a reforma, sobretudo moral, da política brasileira.
Entrando neste século, o PT não tinha nada mais para oferecer de distintivo em relação aos demais partidos. A aliança com o PMDB ou Lula abraçando Maluf foram decorrências naturais. Também por tudo isso, o campo petista reivindicar o monopólio da virtude é o mesmo que fazer de idiotas todos os cidadãos. No primeiro turno, a fúria das urnas demonstrou a reação indignada dos eleitores à falsidade.
O que vemos atualmente é a soma dessa descrição com as nossas incapacidades políticas de construção democrática em favor do bem comum. O PT é hoje uma neo-Arena que promove, sobretudo, o clientelismo nos grotões. Não aqueles definidos geograficamente, mas os existentes nos interstícios sociais, confundindo as pessoas por meio da mentira, do bolsismo e das mistificações de toda ordem. É uma trajetória vergonhosa para um partido que prometeu a lisura republicana, o aprofundamento democrático, a reforma de nossas muitas iniquidades e, especialmente, prometeu corrigir a principal deformação de nossa História, que é um padrão de desigualdade que nos infelicita desde sempre. É ação que igualmente vem abastardando o Estado, atualmente tornado disfuncional e semiparalisado em inúmeros setores.
Por todas essas razões, incluindo o benéfico aperfeiçoamento que, fora do poder, sofrerá o próprio PT, é preciso mudar. E com urgência, pois o Brasil se esfarinhará sob outros quatro anos dessa gigantesca manipulação política, o desprezo pela democracia, o primado da lealdade partidária sobre a meritocracia e a fulgurante incompetência técnico-administrativa do campo petista no poder.
2. Nesta página esbocei uma interpretação sociológica acerca do desenvolvimento do campo petista (A tragédia petista, 26/10) e agora cabe determinar uma equação que possa revelar as principais variáveis de sua sustentação. Quem sabe, assim, entenderemos os ingredientes que explicam o continuado êxito eleitoral do PT.
Na analogia com a matemática, seriam muitas as variáveis a desvendar, entre as principais e as secundárias. Algumas surpreendem, como a espantosa passividade de nosso povo, sujeitando-se às corriqueiras manipulações do sistema partidário, comportamento que inclui até cientistas sociais com elevada formação científica.
Mas outras variáveis não são inesperadas, como o uso do Estado com fins primordialmente partidários ou a ocorrência dos absurdos gastos com propaganda. São fatos que tornam remotos os ideais republicanos que nos deveriam orientar.
Neste comentário sugiro que duas constantes e uma incógnita também compõem a equação, todas demonstrativas do crescimento do campo petista, especialmente nos anos pós-Constituinte e no curso da democratização do País. Contudo não são as variáveis que seriam logicamente antecipadas e a incógnita, provavelmente, não tem nenhuma chance de ser desvendada. Já as duas constantes constituem o eixo central do edifício petista.
A primeira delas diz respeito à capacidade de elevar ininterruptamente o caudal de votos destinados ao partido. Numa democracia eleitoral, o acesso ao poder e ao Estado requer maiorias em eleições regulares. Aqui, o mecanismo decorreu da sorte circunstancial do campo petista, que foi a explosão contemporânea da expressão participação social. Esta surgira pelas mãos da clássica teoria democrática pluralista, definida, em especial, por autores norte-americanos, como Robert Dahl e outros, nos anos 1970. Mas foi expressão tornada obrigatória apenas na década de 1990, em quase todo o mundo. Ideólogos petistas, entretanto, dela se apropriaram, tornando-a (falsamente) uma prerrogativa da tradição da esquerda.
Participação social tornou-se o fulcro da propaganda do partido, prometendo que os cidadãos teriam poder decisório sobre as coisas públicas, um sonho de teorias democráticas que a esquerda petista, espertamente, vendeu como criação sua. Foi assim com o Orçamento Participativo, a grande bandeira do partido naqueles anos, e tem sido da mesma forma com a multiplicação de conselhos, iniciando-se pelo setor da saúde e seus coletivos municipais. Posteriormente, o ideal participativo irradiou-se para as demais áreas, unindo uma narrativa que é irresistível, pois abriria o Estado à voz dos cidadãos, porém combinada a uma camuflada ação partidária capaz de capturar, cada vez mais, currais eleitorais e, ao fim, mais votos. Em poucas palavras: um discurso em si mesmo democrático, mas distorcido pela desonestidade petista, escondendo seu principal objetivo, que é a manipulação dos participantes, vistos apenas como portadores de votos necessários à conquista dos governos.
A presidente reeleita conhece bem esse mecanismo: seu antigo abrigo, o PDT, era o principal partido em Porto Alegre, mas foi varrido do mapa pelo Orçamento Participativo, o qual cooptou as lideranças dos bairros, recrutando-as para o guarda-chuva petista. Conselhos e conferências nacionais, somados à oferta de todos os tipos de bolsas: nada disso tem alguma coisa que ver com a venezuelização e menos ainda com a democratização do Brasil. Relaciona-se, exclusivamente, à conquista do Estado por meio de um processo de clientelismo partidário sem precedentes em nossa História.
A segunda constante da equação se chama corrupção. Nenhum partido sobrevive sem dinheiro, é preciso financiar seu funcionamento, com custos cada vez mais altos. Aqui serei breve, pois os fatos atuais, divulgados em escala crescente, emudecem a cidadania, perplexa com a ousadia de um partido que antes pregava a correção ética, à exaustão. O assalto à Petrobrás torna tal escândalo o maior já registrado e, simultaneamente, marca o PT como o partido mais corrupto da História brasileira. Os petistas serão capazes de lidar serenamente com os fatos iluminados pelo avanço das investigações?
Como responder à colossal transferência de recursos públicos para garantir o sucesso de um partido?
E lembremos, pois é gigantesca a crueldade política: o escândalo incide sobre uma sociedade desigual como a nossa, na qual prevalece uma estrutura regressiva de tributos, prejudicando os mais pobres. Como um partido autointitulado de esquerda se pode envolver nesse inominável crime?
E assim chegamos ao terceiro elemento que pretendo apontar nestas notas e que diz respeito à incógnita da equação. Ou pelo menos assim aparece, pois ainda não foi decifrada. Trata-se da pergunta: qual o objetivo finalístico de tudo isto? Há no horizonte de longo prazo um projeto para o Brasil ou um plano para reconfigurar a Nação que igualmente descreva a estratégia do jogo?
A resposta a essas indagações realça a maior de todas as vilanias, pois esses objetivos são inexistentes. Deixo o desafio: que alguém aponte algum documento de alguma significação mais substantiva, com a assinatura do Partido dos Trabalhadores, no qual esteja delineado um cenário de transformações para o Brasil. Como insistido no artigo anterior, o partido deixou de pensar desde os anos 90 e, em tempos recentes, tem sido incapaz de sequer refletir sobre o País, apontando os desafios e as mudanças que nos fariam uma Nação próspera e justa. Conformou-se com as delícias do poder, do consumo e do dinheiro produzidos pela ascensão social de seus operadores.
Esse é o coração da tragédia petista e nos deixa, os cidadãos, prostrados e à espera. Seria o anúncio da mudança que os atuais detentores do poder nem ao menos sabem enunciar, mesmo que retoricamente.
Zander Navarro é sociólogo, é professor aposentado da UFRGS
Fonte: O Estado de S. Paulo, 26 out. e 30 nov. 2014
Gramsci Brasil
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