domingo, 7 de dezembro de 2014

País pacífico com um povo pacífico?

Luiz Eduardo Soares

“À direita, persiste a ideia de que é preciso armar mais, treinar melhor, reprimir com mais força. Para as esquerdas, tudo é culpa do capitalismo. Nós estamos paralisados por essa camisa de força.”

Nashla Dahás

País pacífico com um povo pacífico? Não é o que conta a história da relação violenta do Estado brasileiro com sua população. O ambiente descontraído de um bar em Copacabana não diminuiu a seriedade e a lucidez dos diagnósticos de Luiz Eduardo Soares nesta conversa com a RHBN.

Se “o maior líder popular da América Latina nunca falou sobre polícia”, este ex-secretário nacional de Segurança Pública de Lula articula uma análise abrangente e defende com ênfase causas polêmicas (mas cada vez mais populares) como a desmilitarização da polícia e a legalização das drogas. Formado em literatura, com mestrado em antropologia e doutorado em ciência política, Luiz Eduardo Soares colaborou com governos mas consagrou-se mesmo como escritor: foi finalista do Prêmio Jabuti e emplacou dois best-sellers – um deles inspirador do sucesso dos filmes Tropa de Elite.

Para ele, as bandeiras libertárias que mantém acesas por ser “um filho de 68” estão em perfeita sintonia com os desafios de pensar a polícia hoje. Afinal, a democracia não superou o modelo policial militar herdado da ditadura, e se utiliza da lei de drogas para eleger como inimigo o negro pobre, promovendo nas favelas um “processo análogo ao genocídio”. Especialista no tema, não se limita à denúncia: apresenta propostas para refundar o sistema e lamenta o desinteresse de intelectuais e políticos. “Por mim, as reuniões da esquerda seriam feitas na comunidade na hora que o caveirão sobe”.


O discurso soa trágico? Talvez porque a realidade assim o seja. Mas Luiz Eduardo Soares também percebe avanços e tende ao otimismo. Sem qualquer influência do clima de bar à sua volta.


A formação multidisciplinar influencia seu trabalho na área de Segurança Pública?


A pergunta bem poderia ser outra: como nós fomos capazes de nos fragmentarmos tanto, separando as emoções da pesquisa, o engajamento e a militância das relações interpessoais e profissionais? Essa dissociação é histórica. A modernidade cumpriu esse papel, definindo-se, em parte, justamente por essa separação das esferas existenciais. Eu nunca consegui isso. Não foi uma escolha, mas incompetência mesmo.


Isso tem a ver com a sua geração?


Geração é algo muito amplo, mas pensando nos marcos de um grupo social específico, que compartilha elementos de um itinerário, posso dizer que a minha geração chegou à universidade no abismo ditatorial mais sombrio, sob Médici, em 1972, na PUC-Rio. Nessa época, as referências existenciais e políticas não vinham só da academia, mas das artes, do mundo da literatura. No teatro, (Antonin) Artaud tornava indissociável da dramaturgia a própria experiência existencial, assim como Jerzy Grotowski e o teatro pobre, entre outros. “Acadêmico” era um adjetivo maldito, uma categoria de acusação: “Fulano é acadêmico”. E eu fiz literatura. Mas havia uma necessidade mais urgente, como um dever moral que se sobrepunha, que era a luta contra a ditadura. E isso me obrigou a tomar decisões pontuais muito difíceis. Alguns colegas optaram pela clandestinidade, amigos meus foram para o Araguaia, outros para o PC do B, uns para a luta armada. Tudo me parecia muito convincente e, ao mesmo tempo, muito insustentável do ponto de vista das críticas – que também surgiam no interior dessa esquerda. Era como se fossem religiões competindo pelas almas e eu tivesse que tomar decisões antes da conversão. Eu me sentia muito inseguro.


Diante dessa encruzilhada, como construiu seu caminho?


Acabei seguindo inicialmente um projeto bem pragmático. Estudar para conhecer o país, a sua inscrição nas dinâmicas globais, aquilo que seria indispensável para municiar métodos e práticas convenientes e razoáveis para a promoção das mudanças. Queria ter um pouquinho mais de pés no chão, sabendo por que eu tomava essa ou aquela decisão, que teoria fundamentava a minha escolha e que história do Brasil eu contaria para mim mesmo. As escolhas nos chegavam muito cedo. Com 21 ou 22 anos me tornei professor universitário, me casei com 19 ou 20 anos, e o que era para ser uma imersão temporária para me situar e agir politicamente converteu-se na minha profissão.


A memória desse período se integra à sua militância de hoje?


A questão da violência se impôs para mim. Até onde poderia ir a violência, inclusive a revolucionária. E eu acabei aderindo ao Partidão, o PCB, porque havia ali a recusa à luta armada. Não concordo até hoje que se justifique o sacrifício de um ser humano em nome de ideal algum, seja pátria, revolução, classe social ou história. Acho que pesou a minha formação cristã. Mesmo não tendo simpatia pelo que provinha diretamente da Igreja, alguns valores permaneceram comigo, como igualdade, solidariedade e compaixão. Esses valores casaram com o marxismo daquela época. Outro componente importante não era só meu, mas da geração: o componente libertário. Eu era filho de 1968 e valorizava a liberdade sexual, a espontaneidade, a natureza, uma recusa ao consumo e às repressões que não estavam apenas no Estado, mas também nos atos da vida cotidiana. Nós não participávamos da dicotomia com a qual tem se resolvido a história da esquerda no Brasil: ou a cultura é lisérgica, alucinógena, do culto ao corpo, “alienada”, sem politização, ou encontra sua identidade na caretice tradicional, belicosa, mais realista ou mais pacifista, mas bastante conservadora do ponto de vista dos valores. Nós buscávamos politizar as lutas libertárias, introduzir força criativa nas lutas tradicionais da política que defendia a democratização. Hoje, não vejo contradição alguma em manter-me associado às bandeiras de 68 e ao mesmo tempo pensar a segurança pública e lidar com a polícia.


Como esses valores libertários se aplicam à segurança pública?


Nos últimos 2.500 anos de filosofia política no Ocidente, não há tantas alternativas conhecidas: a questão da ordem social continua girando em torno das limitações que decorrem do convívio, dos pactos possíveis. Como fazer com que essa experiência seja mais cooperativa, solidária, fértil? Ela precisa se amparar na força, porque sempre haverá a ameaça da força para transgredi-la. Sendo realista e não abandonando as utopias, o que temos hoje como possibilidade é a existência do Estado. Quando o Estado puder ser suprimido, teremos inventado um caminho real de regulação muito mais democrático. Por enquanto, a integridade física precisa ser protegida contra violações, para evitar as lógicas de linchamento, a guerra de todos contra todos. Para isso nós inventamos a polícia, que sob um controle democrático pode agir em benefício dos direitos. A questão é fazer com que a polícia seja o máximo possível obediente a esses princípios. Ela existe como uma força para impedir que qualquer força se oponha aos direitos e à liberdade.


Por que o debate sobre segurança não mobiliza a opinião pública?


Os projetos sobre segurança pública que existem não possuem visibilidade, não deslocam massas pelas ruas. Todos os candidatos falam disso porque é um tema ótimo para as campanhas, para toda a demagogia, e péssimo para os governos. Mas parece que a polícia é menor como objeto intelectual. Transitamos da ditadura para a democracia direto pela reconciliação, deixando a “verdade” de lado e mantendo essa área praticamente intocável. Vamos viver esse passado como um trauma se não fizermos o luto. Seremos sempre incapazes de lidar com isso. E “isso” são os assassinatos e a tortura como práticas e políticas de Estado. Os alvos não somos mais nós, de classe média, intelectuais, militantes, professores, antigos “subversivos”. Agora, os “subversivos” são os desordeiros, os negros e pobres. Essa prática perdura porque a sociedade autoriza, porque o racismo atávico e o autoritarismo continuam presentes, porque o acesso à justiça continua marcado pela desigualdade, porque as instituições políticas, inclusive as populares, os partidos de esquerda e suas entidades não articularam essa denúncia ou proposições alternativas. Há vinte anos eu peço a insônia coletiva para o processo análogo ao genocídio que está em curso nas favelas. Nós passamos a conviver com isso como se fosse parte da natureza.


Ainda há dificuldade em compreender a segurança como um sistema?


A desigualdade no acesso à justiça começa com a abordagem policial e termina, quando houver punição, com o cumprimento de sentença na penitenciária. À direita, persiste a ideia de que é preciso armar mais, treinar melhor, reprimir com mais força. Para as esquerdas, tudo é culpa do capitalismo, pois se trata de um dispositivo coercitivo a serviço do neoliberalismo. Os discursos são clichês deste tipo. Nós estamos paralisados por essa camisa de força, já esperamos décadas demais. O maior líder popular da América Latina [refere-se a Lula] nunca falou sobre polícia. O que as esquerdas brasileiras fizeram sobre isso até hoje? Sempre achando que as questões são outras. Essa é a condição de uma mãe que não sabe se o filho chega vivo do trabalho. A esquerda entende a polícia como dispositivo de repressão. Por mim, as reuniões da esquerda seriam feitas na comunidade na hora em que o caveirão sobe. Precisamos interromper o massacre hoje e agora.


O que significa a “desmilitarização” da polícia?

Sou um dos autores da PEC-51, que defende a desmilitarização, ou seja, o fim da PM tal como ela existe hoje. Não significa o fim da polícia, mas a mudança total de sua estrutura organizacional. A desmilitarização impacta a cultura belicista que é parte do nosso problema, pois define o outro como inimigo interno. É uma visão militar que acaba aplicando situações de guerra em questões de segurança pública, o que é um desastre. As polícias existem para reduzir as chances de que direitos sejam violados, elas prestam serviço à sociedade. O Exército tem como tarefa a defesa do território nacional e a preparação para a guerra. Por que razão uma polícia deveria adotar a mesma estrutura organizacional do Exército? Alguém lembrará que há confrontos que se assemelham às guerras. Mas, em geral, esses confrontos são provocados pela própria polícia, e constituem um percentual mínimo, menos de 1% das atividades policiais ostensivas usuais. O melhor trabalho policial do tipo preventivo nas experiências nacionais e internacionais é aquele que se baseia na atividade de um profissional no território, capaz de ser um interlocutor com a comunidade e de construir redes locais que permitam um bom diagnóstico das necessidades dos moradores. Esse policial da ponta, para servir à comunidade, precisa mobilizar recursos de áreas distintas a serviço de uma estratégia conjugada. É preciso desenvolver uma experiência de participação nas comunidades, com autonomia, responsabilidade e descentralização. Isto é o oposto da estrutura atual, na qual ao policial da ponta não compete pensar. Ele é visto como uma máquina de execução de ordens. “Homens de preto, qual é a sua missão? Invadir favelas e deixar corpos no chão”. Assim o Bope é treinado nas grandes cidades, cantando em alto e bom som diante da plateia social. Este é um crime anunciado, uma ameaça que depois é cumprida.


Em termos de organização interna, a polícia também precisa mudar?


Os regimentos disciplinares da PM são códigos medievais. Permitem que o superior prenda com privação de liberdade o policial que estiver de coturno sujo, sem o devido processo legal. Hoje a PM faz uma parte do trabalho e a Polícia Civil faz a outra parte. E todos sabemos que isso não funciona, cria rivalidades, disputas e desigualdades profundas. Na Polícia Civil, um jovem de 23 anos, terminando o bacharelado em Direito, faz a prova para delegado. Se for inteligente e bem preparado, será aprovado e terá um mês de adaptação. Ele não estudou gestão e pouco conhece de segurança pública, mas assume uma delegacia com 40, 50 pessoas que estão lá há 20 anos e que ganham um quarto do seu salário. Por que essas pessoas, obtendo o terceiro grau, também não podem fazer a prova para delegado? E, mesmo assim, numa seleção, a experiência de 15 anos de trabalho no interior da delegacia não tem nenhum valor, zero. Isso provoca uma guerra interna. O grande obstáculo à corrupção policial é o orgulho profissional, a relação que se estabelece com a sociedade, com o bairro, e depende da autonomia na ponta e da responsabilização eficiente. Ninguém troca isso, que se constrói durante uma vida inteira, por R$ 50.


As penitenciárias são um espelho da desigualdade do país?


Este é um tema absolutamente crucial para a democracia brasileira e nunca foi compreendido, nem mesmo pelos que lutaram pela democracia e sentem repugnância pela violência do Estado. Somos a terceira maior população carcerária do mundo. No nosso sistema, o policial militar não pode investigar e só pode prender por flagrante – e 90% das nossas prisões são feitas por flagrante. Quem é que se prende por flagrante? Quem comete crimes na rua? O criminoso “eleito” é o negro, o pobre, o personagem estigmatizado em territórios estigmatizados, que permitem à PM mostrar a produtividade que lhe é cobrada pela população, pelo governador, pela mídia, e que deveria se traduzir em redução de violência, mas se traduz em mais prisões, apreensão de drogas e armas. E a lei que permite a prisão em flagrante é a lei de drogas.


Por isso defende a descriminalização das drogas?

Eu sou favorável à legalização, que é mais que a descriminalização. A discussão está mal colocada quando nos perguntamos se as drogas devem ou não ser proibidas. Eu desafio qualquer interlocutor a me dizer em qual lugar do Brasil ou do mundo ocidental democrático a proibição está em vigência na prática. O acesso existe. A pergunta é: em que contexto político-institucional nós queremos que esse acesso ocorra? Se a verdadeira questão fosse o mal causado pelas drogas, nós estaríamos antes de tudo discutindo o cigarro e o álcool. O álcool produz 15 milhões de alcoolistas no Brasil e um número de mortes incomparável em relação às outras drogas. E é objeto de propaganda na TV. Houve grande sucesso na redução de consumo de cigarro, e o caminho foi difusão, campanha, educação. Ou seja, limitação do uso sem criminalizar o fumante. Criar uma lei significa viabilizar o convívio apesar dos dilemas e conflitos. O que existe hoje na área das drogas ilícitas é a anarquia. Um mercado controlado por máfias poderosas e violentas que se associam aos interesses das armas ilegais provocando massacres, e com muito dinheiro, o que significa também uma capacidade de corrupção imensa de autoridades. As sociedades mais saudáveis, do ponto de vista da drogadição, são aquelas que integram as drogas e não as que excluem. Integrar significa regular, dar limites.


Que sentidos percebe nas manifestações ocorridas em junho de 2013?


Foram fenômenos originais na história brasileira, porque não houve uma convocação proveniente de entidades conhecidas e tradicionais. Quando houve o refluxo, a mídia conservadora passou a disputar o significado da categoria vândalo, que só serviu para isolar alguns manifestantes e mais adiante criminalizá-los. Eu acho que qualquer comportamento violento é negativo, até porque mimetiza o comportamento criticado, ainda que invertendo a sua direção. Significa mais uma subalternização do que libertação e demonstração de autonomia. Subalternização porque mostra a dependência da linguagem que se quer criticar, instaurando uma dinâmica de vingança que é uma reprodução e, por isso, desastrosa.


Você é otimista ou pessimista em relação ao país?


Nós estamos vivendo um momento político importante para a história brasileira, não só depois de junho de 2013 com as manifestações, mas com as reduções de desigualdade nos últimos 10 anos, com a chegada dos negros e dos pobres à universidade. As políticas afirmativas e as políticas de cotas foram fundamentais. Os números indicam uma virada que pode ter grande impacto. Ainda temos um modelo de desenvolvimento econômico com marcas autoritárias fortes, com exclusão do protagonismo popular. A institucionalidade política democrática é muito importante, mas evidentemente insuficiente. Junho marca uma virada no sentido do empoderamento dos que sempre ficaram de fora do ponto de vista da participação e do consumo. O acesso ao consumo proporcionado pela redução da desigualdade teve uma importância simbólica enorme. Esses atores sociais começaram a se perceber como potenciais cidadãos – e eles nunca foram tratados dessa maneira, pela justiça, pela polícia ou pelo mercado. Quando começam a ter acesso a essa franja de consumo, entendem que talvez a conversa sobre cidadania seja para valer, começam a assumir essa identidade do cidadão e a agir em comunidade com expectativas que alimentam a própria cidadania. Mas o consumo é apenas um fragmento em uma constelação que compõe a cidadania.


O que diria a quem descrê da democracia, julgando que vivemos num estado de exceção permanente?

Quem faz essa afirmação está dizendo que a Constituição é rasgada cotidianamente. E nós estamos de acordo em relação à substância. Porém, a descrição “estado de exceção” sugere que a democracia é uma farsa, que a Constituição é uma farsa. A Constituição não é uma farsa, ela é o resultado de um processo de luta digno e importante, tanto que nos apoiamos nela. Não se pode dar à vítima uma corresponsabilidade pela ação de seu algoz. Só quem ignora a história pode sugerir que nós vivemos numa ditadura. O fato de haver elementos autoritários da ditadura não é suficiente para homogeneizar todo o sistema. Se isso fosse verdade, os manifestantes presos em junho do ano passado não estariam vivos. E nós sequer estaríamos falando disso.

Revistadehistoria .com

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