sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Paz: estamos fazendo isso errado


A tolerância dos brasileiros com a violência estrutural no país não deveria ser compatível com a condenação de massacres internacionais. Historicamente, pacificação no Brasil significa ordem instituída por violência

Rodrigo Elias

Quem senta no banco da virtude, normalmente não consegue saber como será sua próxima tarefa.

Peter Sloterdijk


Qualquer um que acreditou que o Brasil é um país pacífico deve estar hoje muito desapontado. Um bom índice para a reação à “descoberta”, por amplos setores da sociedade brasileira, da violência estrutural na qual vivemos é a nossa mídia tradicional, que anda assustada desde a emergência de protestos maciços no ano passado e dos seus desdobramentos em movimentos mais pontuais e crescentemente agressivos – agressividade, aliás, em grande parte despoletada pela violentíssima e desastrada ação das forças oficiais de segurança, também tomadas de “surpresa”.


Basta, para termos uma ideia do desconforto, darmos uma olhada nos jornalões de São Paulo e, principalmente, do Rio de Janeiro, que lemos diariamente, é claro, tomados de um senso crítico muito apurado, como deve ser o dos leitores do presente texto. Nós, a parcela saudável da sociedade, somos bons cidadãos, esclarecidos, democratas, obedientes às leis, eleitores, fiéis pagadores de impostos, em dia com as obrigações militares (se somos homens, é claro, uma vez que as mulheres são, na ótica sexista e heteronormativa incorporada e naturalizada pelo Estado, incapazes nesta honrosa dimensão da vida, devendo se dedicar às igualmente belas tarefas de cuidar dos maridos, ter e criar filhos, de preferência nessa ordem). Mas somos, sobretudo, pacifistas. É inadmissível, olhando do nosso ponto de vista, que acreditamos piamente ser humanista, que alguém cogite queimar um palácio ou confrontar com pedras e bombas uma tropa de choque – índices atuais do que chamamos muito apropriadamente de “vandalismo”, mas que também se aproximam, na economia retórica do discurso da segurança, de “terrorismo”.

A mídia tradicional, é claro, fala para estas pessoas – nós, os pacíficos e democratas, religiosos ou ateus conscientes, que vamos a passeatas trajando branco e escolhemos nossos representantes com muita responsabilidade. As manchetes ou os espaços mais nobres nos noticiários da TV tratam de forma muito grave daqueles fatos, dedicando letras bem garrafais ou longuíssimas reportagens (para o padrão da TV comercial) de cinco minutos sobre o tema, de preferência com imagens assustadoras de labaredas, sempre associadas a algum jovem franzino de 22 anos, seja pobre ou mauricinho, figura das mais perigosas, quase sempre uma “liderança anarquista” (sic). Quando a ameaça vem de uma menina branca de boa estirpe, o choque é ainda maior. Onde erramos?

Se, anátema maior, um manifestante atingir um repórter, não temos dúvidas e engrossamos o coro dos jornais: é o maior ataque que se pode fazer à democracia, conquistada a duras penas. Aliás, um presidente da República chegou a dizer, nos estertores de uma das nossas ditaduras, que redemocratizaria o Brasil, e que ele prenderia ou arrebentaria qualquer um que fosse contrário a esta sua contribuição (não vou mencionar seu nome em respeito à sua vontade, já que desejava ser esquecido, mas o velho general era um bom exemplo da maleabilidade da ideia de democracia). Enfim, como sabemos e aprovamos, conseguimos colocar fim ao regime autoritário e chegamos a um novo concerto nacional, pacífico, restabelecendo sem sombra de dúvidas a ordem democrática – uma ordem que, embora reconheçamos ser muito jovem, legitimamos e fortalecemos a cada eleição, a verdadeira festa da democracia.

As ideias de paz

Acontece que a ideia do que é paz é muito complexa, assim como é a ideia de democracia, em qualquer lugar, em qualquer época. Acreditamos muito na paz enquanto um valor absoluto, e associamos essa ideia à nossa identidade enquanto povo. Mas a paz não apenas é um mito na sociedade brasileira (e todos nós, historiadores, cientistas sociais ou cidadãos trabalhadores exemplares em geral sabemos disso) como é, em si, um mito político utilizado em contextos ocidentais como forma de dominação. É claro que há pacifismos não-ocidentais, mas eles raramente estão associados ao princípio da dominação unilateral, da aniquilação do outro. Sociedades não-ocidentais em geral (assim como os gregos antes de Platão) estão bem conscientes do valor do conflito, da busca de justiça e da valorização do humano, em termos muito próximos do que escreveu Hegel, e de como a ideia de paz está ligada às noções de inércia, passividade, resignação, auto-aniquilação, domesticação da ira política e, logicamente, ressentimento – ressentimento análogo ao do civilizado, ordeiro e científico século XX ocidental, que foi guiado, do alto, para a construção de regimes fascistas e desaguou na maior tragédia da humanidade, uma tragédia que aconteceu dentro da lei e da ordem, com voto, partido e maioria parlamentar. Ou, nas palavras do filósofo alemão Peter Sloterdijk: “É preciso insistir no fato de a violência no século XX não ter ‘irrompido abruptamente’ em momento algum. Ela foi planejada por seus agentes segundo critérios empreendedores e dirigida por seus gestores aos seus objetos com uma ampla visão de conjunto. O que à primeira vista parecia uma fúria assassina num plano maximamente elevado foi na prática antes de tudo burocracia, trabalho partidário, rotina e o resultado de uma reflexão organizatória.” (Ira e tempo, 2012, p. 40).

Para usar um exemplo bem velho de como o mito pacifista opera entre nós, seja via platonismo ou cristianismo, basta lembrar da valorização da paz no início de uma das grandes expansões de “civilização” no ocidente, base do nosso mundo: o estabelecimento do Império Romano por Otávio Augusto após o ciclo de guerras civis que abateu o regime republicano. Aquele período, iniciado em 28 a.C., foi chamado de Pax Augusta, ou Paz de Augusto, e se estendeu por mais de um século, assumindo a designação de Paz Romana, durando até a dinastia dos Antoninos, no século II. Não é necessário lembrar que esta paz significou, em um primeiro momento, o aniquilamento total dos opositores de Augusto e, posteriormente, a imposição armada em vastas regiões do ocidente conhecido – aquela paz incluía a prática de crucificar pessoas. Também não é necessário lembrar que o casamento entre o estoicismo de Sêneca e o cristianismo de Paulo, mais antigo encontro ideológico entre “paz e amor”, foi bem conveniente para o tipo de atitude política autolegitimadora dos poderes nos séculos seguintes. A equação era bem simples: presença incontestável da autoridade estatal ou eclesiástica = paz. Aquela paz incluía a prática de queimar pessoas em fogueiras.

O mito do Brasil pacífico

Entretanto, não vivemos na Antiguidade e, em termos cronológicos, não estamos na Idade Média. O Brasil pacífico surgiu como mito no século XIX, sobretudo durante o Segundo Reinado (1840-1889). D. Pedro II, que não construiu sozinho a sua imagem, foi um governante que trabalhou de modo incessante para ser vinculado a uma determinada ideia de “civilização”, tal como o conceito europeu funcionava no século XIX – antimilitarismo, ordem constitucional, cultivo das letras, crença no progresso científico. O Estado imperial sob seu governo havia superado uma série de guerras internas, as chamadas Rebeliões Regenciais, por meio da cooptação de elites regionais e, é claro, da imposição das armas – foi o período no qual Luís Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias, ficou conhecido como “O Pacificador”. Aquela paz consistia na destruição total ou parcial do inimigo.

"Mesmo que tenhamos sido protagonistas do maior conflito da América do Sul, a Guerra do Paraguai (1864-1870), o Brasil foi associado ao mito de grande país pacífico. Aquela paz incluía a escravidão"

Em termos políticos, a maior expressão desta nova identidade pacífica vinculada à sociedade e, também, ao Estado brasileiro foi o chamado Ministério da Conciliação (1853-1857), comandado pelo marquês do Paraná e que contou como integrante o próprio Caxias. Consistia, basicamente, no acordo entre as elites liberais e conservadoras após a Revolução Praieira (1848), que agora pretendiam colocar as diferenças de lado em prol de dois valores: conservação e progresso. Isto é: a conservação das estruturas estatais que mantinham a sociedade tal como ela era, estabilizando a desigualdade e sustentando um modelo de reprodução da economia. Assim, mesmo que tenhamos sido protagonistas do maior conflito da América do Sul, a Guerra do Paraguai (1864-1870), a segunda metade do século XIX viu o Brasil ser associado ao mito de grande país pacífico. Aquela paz incluía a escravidão.

Todos os governantes do Brasil, desde então, não importando o lugar no espectro ideológico, repetiram a ideia de que o povo brasileiro cultua a paz. E talvez eles estejam certos: vivemos sob uma Constituição republicana (tivemos constituições mesmo sob ditaduras, o que prova que mesmo nossos ditadores são amantes da paz) e rejeitamos todos os dias, mais ou menos na hora do café da manhã, que é quando costumamos entrar no modo cidadão, qualquer atitude violenta da qual temos notícia – e ficamos muito orgulhosos da nossa atitude cívica e humanitária.

A paz dos outros

Ultimamente temos feito isso em relação aos bombardeios israelenses na Faixa de Gaza, ao mesmo tempo em que, equilibrados, condenamos os ataques do Hamas. Nós, que somos esclarecidos e só pensamos em fazer o bem, não toleramos o argumento anticolonialista do grupo palestino que dispara mísseis contra Israel, assim como julgamos imorais os bombardeios desproporcionais do Estado israelense, que matam de forma criminosa população civil palestina – mesmo que Israel garanta que suas ações militares, respaldadas em decisões de uma estrutura estatal parlamentar e constitucional, buscam o estabelecimento da paz. Instruídos e certos de que falamos a partir de um conjunto bem consolidado de virtudes, seguramos firmemente nos valores absolutos da paz e da democracia, ressoando na imprensa e no Estado brasileiro, através das justas censuras lançadas pelo Itamaraty, e atacamos qualquer ameaça àquilo que julgamos ser a verdadeira interpretação de tais valores.

Curioso, entretanto, é o fato de que não mostramos – cidadãos esclarecidos, imprensa e Estado – a mesma ênfase na indignação, por exemplo, contra os 4.761 homicídios dolosos, os 416 mortos em autos de resistência, ou os 5.926 estupros anuais no Rio de Janeiro, segundo números do Instituto de Segurança Pública para 2013. E também não perturba nossa percepção de paz e democracia ligada à preservação do Estado o fato de que as mortes em autos de resistência diminuíram desde o início do atual governo (Sérgio Cabral / Pezão) na mesma proporção em que aumentou o número de desaparecidos, que totalizaram no ano passado 6.034 casos (no Rio de Janeiro, são quase 40 mil desaparecidos desde o início do governo Sérgio Cabral, em 2007); o fato de que a Polícia Militar de São Paulo (governo Geraldo Alckmin) aumentou o índice de letalidade em 111,3% em apenas um ano também não incomoda. Como os gestores do Estado brasileiro, que é democrático e garantidor da paz, sabem muito bem, mortes praticadas por forças policiais constituídas no cumprimento do dever (mesmo não existindo entre nós pena de morte, já que somos um país oficialmente pacífico) não implicam em uma percepção por parte do público de bem (nós) de que a paz e a democracia estão ameaçadas – o Estado costuma matar pessoas que insistem em cometer o gravíssimo erro de vender substâncias psicoativas provenientes do reino vegetal para indivíduos que as querem usar por livre iniciativa.

Os números da violência concreta, praticada ou tolerada pelo Estado, não costumam nos mobilizar – apenas mortos ilustres ou “anormais”, como crianças não-infratoras brancas, viram notícia; homens entre 15 e 29 anos, pretos e pardos, são mortos já esperados; estupros muito raramente são noticiados na grande imprensa. Incendiar uma casa legislativa como a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, inequívoco templo da democracia brasileira, ou preparar coquetéis molotov, maior atentado à vida, sim, soam como ameaças reais à nossa sociedade (não consegui encontrar estatísticas sobre mortes causadas por coquetéis molotov no Brasil, mas tenho absoluta certeza de que os números são altíssimos). O Estado e a grande imprensa, parceiros, ambos interessados na manutenção da atual ordem social, fazem um grande esforço para conter atitudes tão perigosas, denunciando, investigando e reprimindo (ganhamos mais notícias, mais leis, mais policiais, temos até esperança de termos mais presídios); e nós, é claro, à esquerda ou à direita, conhecedores das ciências humanas, somos a favor da liberdade de manifestação ordeira e apoiamos qualquer esforço para punir os radicais que ameaçam a nossa paz e a nossa democracia – ameaçam não com fuzis, caveirões e sistema carcerário, mas com panos pretos, palavrões e pirotecnia.

Direita x esquerda

A oposição à direita, é claro, diz que o governo federal, a esta altura compreensivelmente constrangido, não é duro o suficiente, e cobra uma posição mais explícita a favor da manutenção da ordem, condenando qualquer protesto que não seja pacífico; a oposição à esquerda, embora apareça, às vésperas das eleições, como intransigente defensora de manifestantes perseguidos e do direito de livre manifestação, explicou, no ano passado, durante o auge dos protestos, que era contra qualquer tipo de ato de vandalismo ou de depredação – por mais que uma oposição seja de esquerda, se ela está institucionalizada em um partido ela também almeja ser governo, logo, é preciso manter algum vínculo com o compromisso mais geral de manutenção da ordem e da preservação das instituições estatais (ninguém quer incendiar a própria casa; ou a casa na qual pretende habitar).

O fato frio é que todos nós, bons cidadãos, queremos a paz e a identificamos, atualmente, com a capacidade de imposição do Estado democrático (o que não soa contraditório aos nossos ouvidos constitucionais). Ficaremos, os cidadãos e os jornais, mais tranquilos e com os espíritos apaziguados no feliz dia em que as contestações violentas ao Estado tiverem fim – quem sabe com ex-manifestantes, todos já arrependidos ou tendo aprendido a lição, vestidos de branco, sem máscaras, sem atrapalhar o trânsito, abraçando algum prédio público, símbolo da vitória da democracia... Mesmo que seja um dia como hoje, no final do qual 137 pessoas terão sido assassinadas no Brasil (e 50 em Gaza, média diária do atual conflito). Isto, é claro, se não ultrapassarmos a média de 2012, quando, segundo a Organização das Nações Unidas, 50.108 pessoas foram vítimas de homicídio doloso no país, o equivalente a 10% de todos os assassinatos do planeta naquele ano – o Brasil, de acordo com a entidade, é o campeão mundial de assassinatos em números absolutos; foram registrados entre nós 556 mil homicídios dolosos entre 2002 e 2012.

Entretanto, para alcançarmos a paz do Estado democrático no Brasil precisamos tirar de circulação quem nos ameaça – isto é, não quem de fato ameaça nossas vidas e nossa liberdade, mas, dentro de nossa excêntrica escala de valores, quem ameaça nossas concepções correntes e confortáveis de paz e de democracia. A mais famosa figura dos protestos “radicais” no Brasil de hoje responde por um singelo nome de personagem de conto de fadas. Mas, ao que parece, não é ela quem vive no mundo da fantasia.


Rhbn.com.br

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