Sistema de Transferência de Recursos Públicos para o Mercado Financeiro |
Carlos Drummond
Os que protestaram no Congresso o fizeram
contra um procedimento rotineiro desde FHC e cujo maior beneficiário é o
sistema financeiro
O estardalhaço da oposição e da mídia contra o projeto de lei
36, que permite aumentar o teto para abatimento de despesas do governo e assim
viabilizar a meta de superávit primário de 116 bilhões de reais, volta-se
contra um tipo de procedimento legal e rotineiro adotado desde o segundo
governo FHC.
Ele foi o primeiro presidente a lançar mão de medida análoga para
modificar a Lei de Diretrizes Orçamentárias, entre 2000 e 2001, período em que
Aécio Neves, um dos críticos mais ferozes do pl 36, foi líder do governo,
depois presidente da Câmara e defendeu a alteração da LDO encaminhada por
Fernando Henrique.
O texto aprovado na sexta-feira 5 autoriza o governo a
utilizar, além do limite atual de abatimento, de 67 bilhões de reais, os gastos
de 2014 do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), de 51,5 bilhões até
outubro mais as desonerações tributárias concedidas neste ano, de 75,1 bilhões
de reais até setembro. Somados, os abatimentos permitirão atingir com folga
aquela meta. O resultado primário da União deriva das receitas não financeiras
subtraídas das despesas não financeiras e é utilizado essencialmente para o
pagamento dos juros da dívida pública.
Fernando Henrique, Lula e a presidenta fizeram basicamente o
mesmo: procuraram atenuar o impacto do superávit primário sobre as contas e a
economia e em seguida compareceram ao guichê para entregá-lo aos credores da
dívida interna. O total desse desembolso em 2014 atingirá quase metade dos
recursos da União, segundo alguns cálculos. Significa que o Brasil, no que se
refere ao papel crucial do Estado na economia, trabalhará à meia-força.
Mais de 90% da bolada entregue por conta da dívida pública
serão endereçados ao sistema financeiro, como mostram os números da organização
Auditoria Cidadã da Dívida. Dos beneficiários, 62% são os bancos nacionais e
estrangeiros, os investidores estrangeiros e as seguradoras, muitas delas
pertencentes aos conglomerados dos bancos.
Os fundos de investimento (vários deles ligados aos mesmos
conglomerados), dominados por grandes investidores, detêm 18% da dívida e os
fundos de pensão, de distribuição mais pulverizada de rendimentos, 13% do
total. O chamado Tesouro Direto, forma de aplicação de pessoas físicas em
títulos do governo, responde por apenas 0,36% do estoque da dívida Interna.
Todos eles, pessoas jurídicas e pessoas físicas, enquadram-se na definição de
rentistas, aqueles que vivem de uma renda fixa (tanto a proveniente de juros
quanto a derivada da renda da propriedade).
Zeloso no atendimento dos interesses do rentismo, o Brasil
figurará, pelo quinto ano consecutivo, entre os cinco países com maiores
superávits primários do mundo, segundo as estimativas disponíveis.
Acrescente-se a maior taxa de juros real do mundo, de 4,68% ao ano, após a alta
da Selic na terça-feira, dia 2, para 11,75% (a Rússia vem em segundo lugar, com
3% reais), e se terá o paraíso terrestre dos rentistas.
O País procura seguir à risca a prescrição feita pelas
instituições financeiras, agências de classificação de risco e
(tradicionalmente) pelo FMI, de obtenção de superávits fiscais significativos,
em torno de 2% do PIB (há economistas brasileiros defensores de porcentuais
muito maiores, de quase 5%), independentemente da situação da economia. Diante
da estagnação mundial e brasileira de 2014, elas se darão por satisfeitas com
1,2% em 2015, patamar defendido em papers de alguns bancos privados há meses e
agora ratificado pelo novo ministro da Fazenda, o ex-diretor-superintendente do
Bradesco Asset Management, Joaquim Levy.
Entretanto, desde 2008 há um questionamento intenso dos
parâmetros econômicos dominantes, entre economistas do próprio FMI, do Banco de
Compensações Internacionais, de conglomerados privados como o Citigroup e de
universidades de primeira linha. O Brasil, alheio ao debate, corre o risco do
anacronismo. Países melhor informados e menos submissos à lógica financeira
dominante preocupam-se mais em investir, principalmente em infraestrutura, do
que em formar uma poupança drenada no ritmo determinado pelos seus credores.
A aprovação da lei 36 ajuda o governo Dilma a manter o
compromisso com investimentos e baixo nível de desemprego e faz sentido diante
de uma crise mundial ainda não debelada. Se houve, como alega a oposição,
irresponsabilidade fiscal, ela é extensiva aos mandatos precedentes, inclusive
o segundo de FHC, mas, lá e cá, a questão central permanece ao largo. O País
precisa, em algum momento, questionar a lógica do endereçamento automático dos
superávits primários ao rentismo. Isso passa pela contestação da característica
central da dívida pública, de “sistema de transferência de recursos públicos
para o mercado financeiro”, na definição de Cristiano Moreira, da organização
Auditoria Cidadã da Dívida.
“O problema essencial, no Brasil, é como desestimular o
comportamento rentista dos agentes (bancos, firmas e famílias), que faz com que
aufiram boa parte de sua receita a partir de ganhos financeiros favorecidos por
juros elevados em contexto de títulos de curto prazo. Sair do rentismo para o
produtivismo é o desafio a ser ainda enfrentado”, escreveu o economista Luiz
Fernando de Paula, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Controvérsia
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