O combate à corrupção e a defesa dos direitos humanos são lutas siamesas. Uma não pode se separar da outra, por risco de as duas perecerem. Aí, o prejuízo será ainda maior para todos nós. Afinal, os corruptos ocupam lugar de destaque na galeria dos grandes violadores dos direitos humanos em todo o planeta. Graças a eles, melhor dizendo, por desgraça da existência deles, bilhões de reais, dólares ou euros- que deveriam financiar programas relevantes e produtivos de inclusão social- acabam no bolso, na conta bancária ou no paraíso fiscal para onde o bandido travestido de empresário ou agente público leva o dinheiro do povo. Dinheiro desviado da escola para a criança, do remédio para o idoso, da casa para o pobre e do respeito aos direitos dos exilados da cidadania em geral, como diria o Professor Cristovam Buarque.
Pois bem, no Dia Mundial de Combate à Corrupção, que transcorre hoje, a coluna homenageia uma figura humana paradigmática, brasileiríssima, que se transformou em referência internacional de defesa dos direitos humanos e do combate à corrupção, sobretudo a corrupção policial. Refiro-me a Valdênia Paulino Lanfranchi, que no dia 28 de novembro último recebeu em Bruxelas, Bélgica, o Prêmio Direitos Humanos 2014 do Conselho das Ordens de Advogados da Europa (CCBE, sigla que identifica o Council of Barsand Law Societies of Europe). Advogada e militante das melhoras causas, guerreira do bom combate, a premiada foi Ouvidoria da Polícia da Paraíba até o final do ano retrasado, quando teve que sair do nosso Estado para viver (ou continuar vivendo, literalmente) e estudar no exterior. Foi embora porque aqui sua vida corria perigo em razão das denúncias que fez contra policiais envolvidos em diversos tipos de crime. Crimes contra a vida, crimes contra o patrimônio público e privado, crimes contra a administração pública e crimes contra a humanidade.
A homenagem da coluna, singelíssima, consiste no registro da premiação e adiante na reprodução de excertos do discurso que ela pronunciou ao receber o prêmio em Bruxelas. Antes lembrando que na cerimônia na capital belga, a nossa ex-Ouvidora foi aplaudida demorada e emocionadamente por todos que compareceram ao evento, entre os quais representantes de entidades de prestígio em todo o mundo, a exemplo da Anistia Internacional, e do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Dom Oscar Romero da Paraíba, representado por seu próprio presidente, Francisco D’Aiuto. Dito isso, deixo vocês com Valdênia, a partir deste ponto.
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• É uma grande honra para mim poder dirigir a palavra a esta distinta assembleia.
Através de minha voz, peço aos senhores e senhoras que ouçam a voz de Manoel Matos, advogado, defensor de direitos humanos, assassinado em 2009 por lutar contra a corrupção e a injustiça na região nordeste, a mais pobre do Brasil;a voz da juíza Patrícia Acioli, executada a mando de um coronel da polícia militar por ter tido a coragem de processar altos oficiais da polícia por crimes cometidos;a voz de Benedito Roberto Barbosa (Dito), advogado criminalizado por defender o direito à moradia das famílias de baixa renda; a voz de Marinalva Santana, perseguida por lutar pelo direito de existir como homossexual;a voz de Luíz Couto, deputado federal, jurado de morte por denunciar oficiais da Policia Militar envolvidos em grupos de extermínio na Região Nordeste; a voz dos mais de 700 defensores de direitos humanos e lideranças sociais ameaçados de morte no Brasil.
•Outro dia uma colega do programa para defensores em risco, na Universidade de York, me perguntou quando comecei a trabalhar como defensora dos direitos humanos.Respondi que foi quando, ainda adolescente, vindo de uma das milhares de famílias que viviam em situação de exclusão social, morando em uma das periferias mais pobres e violentas da cidade de São Paulo, Brasil, comecei a me fazer umas perguntas: “Por que passamos necessidade em casa quando a patroa de minha mãe joga comida fora?Por que a polícia nos trata com arrogância, invade as casas, tortura e mata, quando deveria nos defender?Por que meus pais ganham tão pouco quando trabalham tanto?Por que tanta desigualdade?”. Essas e muitas outras perguntas fizeram com que eu assumisse o compromisso de lutar por um mundo onde a vida – incluindo a dos pobres – possa ser mais importante que o lucro, o poder e as coisas materiais.
•Ao longo dos anos de dedicação à defesa e promoção dos direitos humanos, tenho experimentado na minha própria pele a fúria dos violadores e a fraqueza do Estado.Fui vítima de violência sexual por defender meninas exploradas pelo mercado da prostituição. Sofri calúnias, difamação, atentados contra mim e meus familiares. Fui criminalizada por defender os direitos mais básicos de famílias que vivem nas favelas,por denunciar crimes de tortura e extermínio de adolescentes, por parte de agentes do Estado. Enfim, após sofrer ameaças de morte e sistemáticas invasões no meu local de trabalho, quando eu ocupava o cargo de ombudsman no controle das atividades policiais no Estado da Paraíba, sendo a primeira mulher e defensora de direitos humanos neste cargo, fui obrigada a sair daquela região porque o Estado não podia garantir minha segurança, além de prevaricar ao deixar de investigar os crimes dos quais fui vítima e os crimes que denunciamos.
•Temos, como operadores do direito, alguns importantes desafios pela frente. Quero destacar três que considero mais relevantes. O primeiro é o de enfrentar a impunidade que tem um papel crucial na manutenção da desigualdade social. O segundo é o de incluir na defesa da democracia a luta pelos direitos econômicos, sociais e culturais. O terceiro é democratizar o conhecimento do direito com vistas a empoderar o povo na luta pela promoção e defesa dos direitos humanos.Concluindo, agradeço pela concessão deste prêmio e dedico-o a todas e todos os colegas, no mundo inteiro, que sofrem perseguição por defender os direitos humanos.Caras e caros colegas, vamos lutar juntos pelo direito de defender direitos!Vamos trabalhar o direito a partir dos direitos humanos!Vamos sempre colocar o ser humano no centro e a vida em primeiro lugar!
Jornal da Paraíba
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