Wanderley Guilherme dos Santos
O governo só não cai por falta de colo hospitaleiro. Ainda bem, pois escasseiam robustas lideranças democráticas capazes de desmantelar, por simples presença, arranjos contra a legalidade. O Legislativo distrai-se em conquistas predatórias ao apagar das luzes do atual mandato. Os movimentos sociais organizados, outrora valentes escudeiros de valores universais, empalideceram e a multidão de siglas que desfilam em conclamações lembra os “blocos do eu sozinho”. Em São Paulo, estado volta e meia em conflito com o resto do País, a direita brega patrocina intervenções surrealistas sem acordo prévio sobre o propósito da perturbação do trânsito. Augustos integrantes da judicatura disputam o horário televisivo com escaramuças entre bandos de traficantes.
Há um esbanjamento de despudor, ausência de autocrítica, intermináveis confabulações pré-ministeriais, além da conhecida opacidade do governo. Tudo a deixar a leve impressão de que os verdadeiros espetáculos em um só ato, ou vários, estão em exibição alhures. A rotina pós-eleitoral, que deveria ser pacífica, está em ebulição à revelia das autoridades recém-eleitas.
A insaciável antropofagia brasileira converteu o “impedimento”, mecanismo de destituição de autoridades públicas, em alavanca para a nomeação de ministros. Está aí o surpreendente novo ministro da Fazenda que não me deixa mentir, embora condenado a ser, ele próprio, deglutido: pelos conservadores, por ser Joaquim Levy de menos, pela esquerda, por sê-lo de mais. Em qualquer caso, é improvável que reconquiste a identidade pretérita. Ele e os demais figurantes em processo de escolha governamental estão sujeitos a ampla rejeição ao simples anúncio de que estão cogitados para escalação. A fonte escaladora não transfere segurança, mas doses da mesma controvérsia de que padece no momento. Ninguém pode prenunciar qual a face do governo em, digamos, seis meses.
A antropofagia continua na transformação do saudável pluralismo organizacional democrático em máfias de concorrência coordenada, com regras e procedimentos estabelecidos. É adulto de anos o entrelaçamento entre competidores privados e nichos da burocracia pública e ainda ignorada a extensão do sistema extrativista assentado em extorsão e suborno. Hoje é a Polícia Federal que determina a pauta relevante da política, precisamente pela elevada taxa de imprevisibilidade quanto aos danos políticos e econômicos gerados pelas investigações. A partidarização pretendida pela oposição, na torcida pela declaração oficial de que o Partido dos Trabalhadores está contaminado em estágio terminal pelo vírus da corrupção, não prevalecerá. Já investigações paralelas começam a revelar alguns dos escândalos a macular o longo predomínio tucano no estado de São Paulo, e sabe-se que a era Aécio Neves, em Minas Gerais, não foi um primor de lisura. Governo, oposição, Legislativo, Judiciário, grupos de pressão eficazes (OAB, CNBB, jornalismo crítico sensato) terão de lidar, por bom tempo, com um problema nada miúdo.
Não se trata de advogar uma anistia generalizada pela comprovação da universalidade do delito. A oportunidade é singular demais para exaurir-se na contabilidade de malfeitos partidários. Há uma grave crise funcional do Estado brasileiro que eleva de maneira intolerável os custos do governo e do crescimento econômico. Consequentemente, aqui se joga com a continuidade ou interrupção da distribuição iníqua dos sacrifícios inerentes à trajetória de países emergentes. Os custos excessivos, o sobrefaturamento, as propinas e mimos distribuídos não são, nem apenas nem principalmente, uma agressão a acionistas e fideístas dos bons propósitos de empresas gigantes, grandes ou médias.
Os recursos ilegalmente extraídos do Tesouro Nacional, por empresários ou servidores públicos, apontam para uma das habilidades antropofágicas de transformar o progresso material em miséria social. Sim, os brasileiros poderiam usufruir um nível de bem-estar superior se o Estado não fosse balcanizado entre grupos de burocratas e máfias empresariais de concorrência controlada.
Se existissem países sem solução, o Brasil pertenceria, talvez, ao grupo. Derrotados eleitorais tentam tornar sem efeito a derrota. Poucos os ouvem, mas outros, com relativo poder causal, ameaçam colocar sob suspeição o mandato dos vencedores. Esses escolhem ignorar a possibilidade de que, segundo a lei vigente e as conclusões da Polícia Federal, venha a ser impossível governar. Isso, óbvio, se as conclusões forem aceitas tal e qual pelo Ministério Público. Bem verdade ser praticamente impossível que o País pare de funcionar e que a fantástica quantidade de obras em andamento, das quais depende o futuro da população brasileira, seja interditada. Mas há que resolver qual o destino dos implicados nos ilícitos. Livres é que não poderão ficar.
Igualmente improvável que as eleições de 2014 sejam anuladas. Seria indigesto mesmo para alguns bons antropófagos. Mas é certo também que o País não será governado segundo o plano original e o Estado não obrará como dantes. Pois governar não se resume a nomear ministros. Tampouco a exigir que prazos sejam cumpridos. Mais do que a misteriosa reforma política, urge uma revisão estrutural no modo de operação do Estado brasileiro, em seus órgãos de controle não só a posteriori, mas de acompanhamento. E se o governo paira, sem liderança política para além da administrativa, seria cautelar ser informado de que ninguém está livre da antropofagia.
Carta Capital
A insaciável antropofagia brasileira converteu o “impedimento”, mecanismo de destituição de autoridades públicas, em alavanca para a nomeação de ministros. Está aí o surpreendente novo ministro da Fazenda que não me deixa mentir, embora condenado a ser, ele próprio, deglutido: pelos conservadores, por ser Joaquim Levy de menos, pela esquerda, por sê-lo de mais. Em qualquer caso, é improvável que reconquiste a identidade pretérita. Ele e os demais figurantes em processo de escolha governamental estão sujeitos a ampla rejeição ao simples anúncio de que estão cogitados para escalação. A fonte escaladora não transfere segurança, mas doses da mesma controvérsia de que padece no momento. Ninguém pode prenunciar qual a face do governo em, digamos, seis meses.
A antropofagia continua na transformação do saudável pluralismo organizacional democrático em máfias de concorrência coordenada, com regras e procedimentos estabelecidos. É adulto de anos o entrelaçamento entre competidores privados e nichos da burocracia pública e ainda ignorada a extensão do sistema extrativista assentado em extorsão e suborno. Hoje é a Polícia Federal que determina a pauta relevante da política, precisamente pela elevada taxa de imprevisibilidade quanto aos danos políticos e econômicos gerados pelas investigações. A partidarização pretendida pela oposição, na torcida pela declaração oficial de que o Partido dos Trabalhadores está contaminado em estágio terminal pelo vírus da corrupção, não prevalecerá. Já investigações paralelas começam a revelar alguns dos escândalos a macular o longo predomínio tucano no estado de São Paulo, e sabe-se que a era Aécio Neves, em Minas Gerais, não foi um primor de lisura. Governo, oposição, Legislativo, Judiciário, grupos de pressão eficazes (OAB, CNBB, jornalismo crítico sensato) terão de lidar, por bom tempo, com um problema nada miúdo.
Não se trata de advogar uma anistia generalizada pela comprovação da universalidade do delito. A oportunidade é singular demais para exaurir-se na contabilidade de malfeitos partidários. Há uma grave crise funcional do Estado brasileiro que eleva de maneira intolerável os custos do governo e do crescimento econômico. Consequentemente, aqui se joga com a continuidade ou interrupção da distribuição iníqua dos sacrifícios inerentes à trajetória de países emergentes. Os custos excessivos, o sobrefaturamento, as propinas e mimos distribuídos não são, nem apenas nem principalmente, uma agressão a acionistas e fideístas dos bons propósitos de empresas gigantes, grandes ou médias.
Os recursos ilegalmente extraídos do Tesouro Nacional, por empresários ou servidores públicos, apontam para uma das habilidades antropofágicas de transformar o progresso material em miséria social. Sim, os brasileiros poderiam usufruir um nível de bem-estar superior se o Estado não fosse balcanizado entre grupos de burocratas e máfias empresariais de concorrência controlada.
Se existissem países sem solução, o Brasil pertenceria, talvez, ao grupo. Derrotados eleitorais tentam tornar sem efeito a derrota. Poucos os ouvem, mas outros, com relativo poder causal, ameaçam colocar sob suspeição o mandato dos vencedores. Esses escolhem ignorar a possibilidade de que, segundo a lei vigente e as conclusões da Polícia Federal, venha a ser impossível governar. Isso, óbvio, se as conclusões forem aceitas tal e qual pelo Ministério Público. Bem verdade ser praticamente impossível que o País pare de funcionar e que a fantástica quantidade de obras em andamento, das quais depende o futuro da população brasileira, seja interditada. Mas há que resolver qual o destino dos implicados nos ilícitos. Livres é que não poderão ficar.
Igualmente improvável que as eleições de 2014 sejam anuladas. Seria indigesto mesmo para alguns bons antropófagos. Mas é certo também que o País não será governado segundo o plano original e o Estado não obrará como dantes. Pois governar não se resume a nomear ministros. Tampouco a exigir que prazos sejam cumpridos. Mais do que a misteriosa reforma política, urge uma revisão estrutural no modo de operação do Estado brasileiro, em seus órgãos de controle não só a posteriori, mas de acompanhamento. E se o governo paira, sem liderança política para além da administrativa, seria cautelar ser informado de que ninguém está livre da antropofagia.
Carta Capital
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