A escravidão de africanos e afrodescendentes no Brasil foi o crime coletivo de mais longa duração praticado nas Américas
A ESCRAVIDÃO de africanos e afrodescendentes no Brasil foi o crime coletivo de mais longa duração praticado nas Américas e um dos mais hediondos que a história registra.
Milhões de jovens foram capturados durante séculos na África e conduzidos com a corda no pescoço até os portos de embarque, onde eram batizados e recebiam, com ferro em brasa, a marca de seus respectivos proprietários. Essa carga humana era acumulada no porão de tumbeiros, com menos de um metro de altura.
Aqui desembarcados, os infelizes eram conduzidos a um mercado público, para serem arrematados em leilão. O preço individual de cada “peça” dependia da largura dos punhos e dos tornozelos.
Nos domínios rurais, os negros, malnutridos, trabalhavam até 16 horas por dia, sob o chicote dos feitores. O tempo de vida do escravo brasileiro no eito nunca ultrapassou 12 anos, e a mortalidade sempre superou a natalidade; de onde o incentivo constante ao tráfico negreiro. Segundo as avaliações mais conservadoras, 3,5 milhões de africanos foram trazidos como cativos ao Brasil.
O seu enquadramento no trabalho rural fazia-se pela violência contínua. Daí a busca desesperada de libertação, pela fuga ou o suicídio. As punições faziam-se em público, geralmente pelo açoite. Era freqüente aplicar a um escravo até 300 chibatadas, quando o Código Criminal do império as limitava ao máximo de 50 por dia. Mas em caso de falta grave, os patrões não hesitavam em infligir mutilações: dedos decepados, dentes quebrados, seios furados.
Tudo isso sem contar o trauma irreversível da desculturação, pois todos os cativos eram brutalmente afastados de sua língua, de seus costumes e suas tradições. Desde o embarque na África, procurava-se agrupar indivíduos de etnias diferentes, falando línguas incompreensíveis uns para os outros. Para que pudessem se comunicar entre si, tinham que aprender a língua dos patrões, gritada pelos feitores. Foi esse, aliás, o principal fator de disseminação da “última flor do Lácio” em todo o território nacional.
Outro efeito desse crime coletivo foi a geral desestruturação dos laços familiares. As jovens escravas “de dentro” serviam habitualmente para saciar o impulso sexual dos machos da casa grande, enquanto na senzala homens e mulheres viviam em alojamentos separados. O acasalamento entre escravos era tolerado para a reprodução, jamais para a constituição de uma família regular.
O resultado inevitável foi a superposição do direito de propriedade aos deveres de parentesco, mesmo sangüíneo. Há alguns anos, um pesquisador ianque encontrou, no 1º Cartório de Notas de Campinas (SP), uma escritura pública de 1869, pela qual um varão, ao se tornar maior de idade, decidiu alforriar a própria mãe, que recebera por herança de seu progenitor.
O fato é que, em 13 de maio de 1888, abolimos a escravidão tal como encerramos, quase um século depois, os horrores do regime militar: viramos simplesmente a página. Os senhores de escravos e seus descendentes não se sentiram minimamente responsáveis pelas conseqüências do crime nefando praticado durante quase quatro séculos.
Ora, essas conseqüências permanecem bem marcadas até hoje em nossos costumes, nossa mentalidade social e nas relações econômicas. Atualmente, negros e pardos representam mais de 70% dos 10% mais pobres de nossa população. No mercado de trabalho, com a mesma qualificação e escolaridade, eles recebem em média quase a metade do salário pago aos brancos, e as mulheres negras, até metade da remuneração dos trabalhadores negros. Em nossas cidades, mais de dois terços dos jovens assassinados entre 15 e 18 anos são negros.
Na USP, a maior universidade da América Latina, os alunos negros não ultrapassam 2%, e, dos 5.400 professores, menos de dez são negros. É vergonhoso que tenhamos esperado 120 anos para ensaiar a primeira medida de apoio oficial à população negra: a reserva de vagas para matrícula em estabelecimentos de ensino superior.
No entanto, tal medida representa hoje o cumprimento de um expresso dever constitucional. O artigo 3º da Constituição de 1988 declara, como objetivos fundamentais da República, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, bem como “promover o bem de todos”, sem preconceitos de qualquer espécie.
Mas o preconceito que tisna os brasileiros de origem africana não é neles marcado apenas fisicamente, como se fazia outrora com ferro em brasa. Ele aparece registrado como uma degradação social permanente em todos os levantamentos estatísticos.
Que as nossas classes dominantes tenham, enfim, a mínima hombridade de reconhecer que esse colossal passivo de nossa herança histórica ainda nem começou a ser pago!
FÁBIO KONDER COMPARATO , 71, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor, entre outras obras, de “Ética – Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno” (Companhia das Letras).
Controvérsia
A ESCRAVIDÃO de africanos e afrodescendentes no Brasil foi o crime coletivo de mais longa duração praticado nas Américas e um dos mais hediondos que a história registra.
Milhões de jovens foram capturados durante séculos na África e conduzidos com a corda no pescoço até os portos de embarque, onde eram batizados e recebiam, com ferro em brasa, a marca de seus respectivos proprietários. Essa carga humana era acumulada no porão de tumbeiros, com menos de um metro de altura.
Aqui desembarcados, os infelizes eram conduzidos a um mercado público, para serem arrematados em leilão. O preço individual de cada “peça” dependia da largura dos punhos e dos tornozelos.
Nos domínios rurais, os negros, malnutridos, trabalhavam até 16 horas por dia, sob o chicote dos feitores. O tempo de vida do escravo brasileiro no eito nunca ultrapassou 12 anos, e a mortalidade sempre superou a natalidade; de onde o incentivo constante ao tráfico negreiro. Segundo as avaliações mais conservadoras, 3,5 milhões de africanos foram trazidos como cativos ao Brasil.
O seu enquadramento no trabalho rural fazia-se pela violência contínua. Daí a busca desesperada de libertação, pela fuga ou o suicídio. As punições faziam-se em público, geralmente pelo açoite. Era freqüente aplicar a um escravo até 300 chibatadas, quando o Código Criminal do império as limitava ao máximo de 50 por dia. Mas em caso de falta grave, os patrões não hesitavam em infligir mutilações: dedos decepados, dentes quebrados, seios furados.
Tudo isso sem contar o trauma irreversível da desculturação, pois todos os cativos eram brutalmente afastados de sua língua, de seus costumes e suas tradições. Desde o embarque na África, procurava-se agrupar indivíduos de etnias diferentes, falando línguas incompreensíveis uns para os outros. Para que pudessem se comunicar entre si, tinham que aprender a língua dos patrões, gritada pelos feitores. Foi esse, aliás, o principal fator de disseminação da “última flor do Lácio” em todo o território nacional.
Outro efeito desse crime coletivo foi a geral desestruturação dos laços familiares. As jovens escravas “de dentro” serviam habitualmente para saciar o impulso sexual dos machos da casa grande, enquanto na senzala homens e mulheres viviam em alojamentos separados. O acasalamento entre escravos era tolerado para a reprodução, jamais para a constituição de uma família regular.
O resultado inevitável foi a superposição do direito de propriedade aos deveres de parentesco, mesmo sangüíneo. Há alguns anos, um pesquisador ianque encontrou, no 1º Cartório de Notas de Campinas (SP), uma escritura pública de 1869, pela qual um varão, ao se tornar maior de idade, decidiu alforriar a própria mãe, que recebera por herança de seu progenitor.
O fato é que, em 13 de maio de 1888, abolimos a escravidão tal como encerramos, quase um século depois, os horrores do regime militar: viramos simplesmente a página. Os senhores de escravos e seus descendentes não se sentiram minimamente responsáveis pelas conseqüências do crime nefando praticado durante quase quatro séculos.
Ora, essas conseqüências permanecem bem marcadas até hoje em nossos costumes, nossa mentalidade social e nas relações econômicas. Atualmente, negros e pardos representam mais de 70% dos 10% mais pobres de nossa população. No mercado de trabalho, com a mesma qualificação e escolaridade, eles recebem em média quase a metade do salário pago aos brancos, e as mulheres negras, até metade da remuneração dos trabalhadores negros. Em nossas cidades, mais de dois terços dos jovens assassinados entre 15 e 18 anos são negros.
Na USP, a maior universidade da América Latina, os alunos negros não ultrapassam 2%, e, dos 5.400 professores, menos de dez são negros. É vergonhoso que tenhamos esperado 120 anos para ensaiar a primeira medida de apoio oficial à população negra: a reserva de vagas para matrícula em estabelecimentos de ensino superior.
No entanto, tal medida representa hoje o cumprimento de um expresso dever constitucional. O artigo 3º da Constituição de 1988 declara, como objetivos fundamentais da República, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, bem como “promover o bem de todos”, sem preconceitos de qualquer espécie.
Mas o preconceito que tisna os brasileiros de origem africana não é neles marcado apenas fisicamente, como se fazia outrora com ferro em brasa. Ele aparece registrado como uma degradação social permanente em todos os levantamentos estatísticos.
Que as nossas classes dominantes tenham, enfim, a mínima hombridade de reconhecer que esse colossal passivo de nossa herança histórica ainda nem começou a ser pago!
FÁBIO KONDER COMPARATO , 71, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor, entre outras obras, de “Ética – Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno” (Companhia das Letras).
Controvérsia
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