Covardia
Pouco antes de morrer, o presidente francês François Mitterrand ouviu de um jornalista: "Qual a principal virtude de um governante?". Sua resposta: "A indiferença". O jornalista não conseguiu esconder seu espanto, no que Mitterrand completou dizendo que aqueles que se deixam tocar por tudo não são capazes de pensar, operar escolhas difíceis, calcular a longo termo. Para bem governar, deveríamos saber cultivar certa insensibilidade.
Essa resposta parecia conter sabedoria, mas na verdade continha apenas covardia. Pois o bom governante, aquele disposto a operar transformações reais, é, ao contrário, capaz de sentir o que a maioria da sociedade não quer sentir.
Não há sociedade sem exclusão e violência contra quem não tem força nem amparo nas normas e procura viver de outra forma. Por isso, a verdadeira ação política consiste em se perguntar quem são, onde estão os mais vulneráveis. Não é difícil encontrá-los. Basta se perguntar quem, de forma repetida, é expulso da categoria "humanidade" pela maioria da sociedade, visto como selvagem, doente, miserável e, por isso, merecedor de contínua violência.
Marx cunhou a ideia de "proletário" exatamente para descrever como a miséria eliminou da "humanidade" levas de operários que não tinham nada, a não ser sua própria miséria. Junto a eles estão hoje índios expulsos da grande narrativa do progresso, palestinos expulsos da condição de "povo", homossexuais tratados como doentes, travestis tratados como monstros. A lista pode parecer heteróclita, mas todos eles são ligados entre si por serem objetos da pior violência –a baseada no não reconhecimento de sua humanidade integral.
Pensem, por exemplo, em homossexuais vistos por muitos como "anormais", que não podem se casar, contentando-se com um reconhecimento legal de segunda classe. Um verdadeiro governante seria capaz de sentir o sofrimento de tal vulnerabilidade, lutar com todas suas forças contra a tentativa de jogar tal sofrimento à invisibilidade, mudar as leis e usar as escolas como espaço de sensibilização.
Porém, o que vemos no Brasil é o espetáculo deplorável de programas políticos que, ou não mencionam tais questões, ou são modificados do dia para a noite por medo de represálias de setores conservadores.
Mais cínico é justificar tal exclusão dizendo "não haver consenso" sobre o tema. Mitterrand, quando ganhou sua primeira eleição, ainda era capaz de agir politicamente. Uma de suas primeiras decisões foi abolir a pena de morte, mesmo contra a vontade da maioria. Hoje, quase todos os franceses reconhecem que ele tinha razão. Ele teve a capacidade de sentir e a coragem de decidir sem consenso, mas em nome de um sofrimento que deveria parar. Coragem que boa parte de nossos políticos desconhece, dentro ou fora do governo.
Folha SP
Pouco antes de morrer, o presidente francês François Mitterrand ouviu de um jornalista: "Qual a principal virtude de um governante?". Sua resposta: "A indiferença". O jornalista não conseguiu esconder seu espanto, no que Mitterrand completou dizendo que aqueles que se deixam tocar por tudo não são capazes de pensar, operar escolhas difíceis, calcular a longo termo. Para bem governar, deveríamos saber cultivar certa insensibilidade.
Essa resposta parecia conter sabedoria, mas na verdade continha apenas covardia. Pois o bom governante, aquele disposto a operar transformações reais, é, ao contrário, capaz de sentir o que a maioria da sociedade não quer sentir.
Não há sociedade sem exclusão e violência contra quem não tem força nem amparo nas normas e procura viver de outra forma. Por isso, a verdadeira ação política consiste em se perguntar quem são, onde estão os mais vulneráveis. Não é difícil encontrá-los. Basta se perguntar quem, de forma repetida, é expulso da categoria "humanidade" pela maioria da sociedade, visto como selvagem, doente, miserável e, por isso, merecedor de contínua violência.
Marx cunhou a ideia de "proletário" exatamente para descrever como a miséria eliminou da "humanidade" levas de operários que não tinham nada, a não ser sua própria miséria. Junto a eles estão hoje índios expulsos da grande narrativa do progresso, palestinos expulsos da condição de "povo", homossexuais tratados como doentes, travestis tratados como monstros. A lista pode parecer heteróclita, mas todos eles são ligados entre si por serem objetos da pior violência –a baseada no não reconhecimento de sua humanidade integral.
Pensem, por exemplo, em homossexuais vistos por muitos como "anormais", que não podem se casar, contentando-se com um reconhecimento legal de segunda classe. Um verdadeiro governante seria capaz de sentir o sofrimento de tal vulnerabilidade, lutar com todas suas forças contra a tentativa de jogar tal sofrimento à invisibilidade, mudar as leis e usar as escolas como espaço de sensibilização.
Porém, o que vemos no Brasil é o espetáculo deplorável de programas políticos que, ou não mencionam tais questões, ou são modificados do dia para a noite por medo de represálias de setores conservadores.
Mais cínico é justificar tal exclusão dizendo "não haver consenso" sobre o tema. Mitterrand, quando ganhou sua primeira eleição, ainda era capaz de agir politicamente. Uma de suas primeiras decisões foi abolir a pena de morte, mesmo contra a vontade da maioria. Hoje, quase todos os franceses reconhecem que ele tinha razão. Ele teve a capacidade de sentir e a coragem de decidir sem consenso, mas em nome de um sofrimento que deveria parar. Coragem que boa parte de nossos políticos desconhece, dentro ou fora do governo.
Folha SP
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