sábado, 6 de setembro de 2014

Rentismo, fissuras no bloco no poder e as eleições

Rodrigo Alves Teixeira (*)

Como é sabido, apesar da vitória eleitoral de um partido de esquerda e que historicamente foi opositor das políticas neoliberais, o governo Lula não mudou, de imediato, as bases da política macroeconômica do governo FHC. Ainda durante o período eleitoral, diante do terrorismo do mercado financeiro, o PT divulgou a famosa “Carta aos Brasileiros”, garantindo que, sendo eleito, não iria mudar a condução da economia.

A política macroeconômica havia sido capturada pelos interesses do mercado financeiro. Porém, paulatinamente tais interesses foram perdendo sua influência, tendo o ápice deste processo se dado no governo Dilma. Não sem razão, portanto, o mercado financeiro nas eleições de 2014 tem criticado duramente o governo Dilma e dado apoio aos candidatos da oposição.


Para entender estas questões, desde a postura contraditória do governo Lula com relação às posições históricas do PT, bem como os desdobramentos mais recentes com os ataques do mercado financeiro ao governo Dilma, é necessário, numa perspectiva de economia política, sairmos do campo estritamente econômico, com seus embates teóricos e prescrições de políticas (policy), e nos deslocarmos para o campo da política (politics) e das relações de classes e grupos de interesse.


Durante o governo de FHC, consolidou-se a hegemonia da fração bancário-financeira do capital no interior do Bloco no Poder, fazendo aqui referência ao conceito do teórico Nicos Poulantzas. Isto se expressava pelo poder dos interesses ligados ao mercado financeiro, doméstico e internacional, em ditar os rumos da política econômica, sobrepujando as demais frações do capital (em especial os segmentos do capital produtivo). Esta influência era exercida seja indiretamente, por meio da influência do mercado financeiro nos meios de comunicação, seja diretamente, com postos-chave do comando da política econômica sendo ocupados por profissionais francamente favoráveis aos seus interesses ou mesmo egressos de seus quadros, ou ainda com as constantes ameaças de fugas de capital e crise cambial (algumas das quais se efetivaram) por parte de seus atores diante de qualquer sinalização de mudança de rumo da política econômica.


Este poder da fração bancário-financeira estava fundamentado numa nova dependência, que não tinha mais que ver com aquela do modelo de desenvolvimento dependente-associado que FHC havia teorizado nos anos 1970 e que, ainda que de forma dependente, permitia ao País vislumbrar o desenvolvimento econõmico – a dependência tecnológica e financeira do processo de industrialização, alicerçada politicamente em uma aliança entre as elites estrangeiras e parte das elites domésticas e outros grupos favoráveis à modernização da estrutura produtiva. A dependência que contava agora era a dos fluxos de capital volátil, fundamentais para manter a estabilidade do arranjo macroeconômico então vigente: conter a inflação pela âncora cambial, ou seja, mantendo a taxa de câmbio sobrevalorizada para baratear as importações.



Não à toa, às vésperas da eleição presidencial de 2002, George Soros, o bilionário representante do capital financeiro internacional, disse que se Lula fosse eleito, seria o caos. É sintomático desta hegemonia do setor financeiro que, em 1989, tivesse sido um industrial da Fiesp, Mário Amato, quem disse que os empresários abandonariam o Brasil se Lula fosse eleito e, em 2002, tenha sido um representante da banca internacional a fazer o mesmo tipo de terrorismo eleitoral.



É impossível compreender a mudança na postura do PT na presidência sem levar em conta a nova dependência na qual a economia brasileira foi lançada, que havia se iniciado com a abertura de Collor e que se consolida no governo de FHC. Para além do que poderiam dizer os indicadores econômicos, a “herança maldita” que o governo FHC deixou para Lula tinha uma base sociológica e política, assentada na hegemonia da banca no interior do bloco no poder. Hegemonia que, por sua vez, era garantida pela dependência financeira do País ante os fluxos internacionais de capital de curto prazo.



O fato é que essa dependência prevaleceu durante os anos iniciais do governo Lula. Frente à situação paradoxal, do ponto de vista da esquerda, em que então se colocou o governo de Lula em seus primeiros anos, muitos defenderam que não havia outra saída, dada esta “herança maldita”. Outros aderiram ao discurso dominante e chegaram a dizer que as posições históricas do PT sobre a condução da política econômica estavam erradas. E um terceiro grupo defendeu que com a vitória de Lula havia espaço e capital político para uma mudança na política econômica, ansiando por uma guinada de viés, mais condizente com as ideias originais do Partido, que continham críticas severas aos princípios e à política econômica neoliberal de FHC. Mas o fato é que se optou pela linha de menor resistência contra os interesses estabelecidos, permanecendo a fração bancário-financeira com sua hegemonia no interior do bloco no poder.



O governo Lula se inicia então com um viés conservador no campo da política macroeconômica, buscando imprimir mudanças e sua marca de esquerda por meio da ampliação da agenda social, com programas como o Bolsa Família, bem como com a elevação real do salário mínimo, forçando uma melhoria da distribuição de renda.



Uma maior flexibilização da política fiscal começa a ocorrer a partir do final do primeiro mandato de Lula, especialmente após a substituição do ministro da Fazenda Antonio Palocci, em 2005, que havia sido o grande fiador de Lula diante da elite econômica e em especial do mercado financeiro. A “ala desenvolvimentista” do governo começa a ganhar espaço, abrindo caminho para uma política fiscal mais preocupada com a aceleração do crescimento e com a distribuição da renda, com aceleração dos gastos sociais e uma política de elevação do salário mínimo.



Outra medida nesta direção foi o lançamento do PAC, no início do segundo mandato de Lula, apesar das críticas de agentes do mercado financeiro de que os gastos do programa representariam ameaça à meta fiscal. Mas é com a crise internacional de 2008 que a política macroeconômica começa a mudar mais rapidamente. Um conjunto de estímulos como redução de juros, expansão do crédito dos bancos públicos e do crédito habitacional pelo programa Minha Casa Minha Vida, continuidade da elevação real do salário mínimo e dos investimentos públicos planejados no âmbito do PAC e redução da meta de superávit primário, permitiu que a economia brasileira se recuperasse da crise mais rapidamente que vários outros países, e após uma leve queda de 0,2% do PIB em 2009, auge da crise no Brasil, cresceu 7,5% em 2010, último ano do presidente Lula, com manutenção da renda e do emprego.



No governo Dilma, os sinais de enfraquecimento da hegemonia desta fração ficam ainda mais claros, com medidas de enfrentamento direto por parte do governo. A partir de agosto de 2011, o Banco Central inicia uma trajetória de queda da taxa Selic, até atingir o patamar de 7,25%, com a taxa de juros real chegando à casa dos 2% em 2012, sob críticas do mercado financeiro e aplausos dos representantes do setor produtivo e dos trabalhadores. Além disso, vendo que a queda da Selic não estava sendo repassada aos consumidores de crédito, em maio de 2012 a presidenta dá ordem expressa aos bancos públicos para reduzirem suas taxas de juros e forçar a redução dos spreads bancários, que estavam entre os mais altos do mundo. Estas medidas de enfrentamento seriam impensáveis alguns anos antes.



Pode-se dizer que a situação de dependência financeira e de hegemonia da fração bancário-financeira no bloco no poder, consolidada no governo FHC, prevaleceu no primeiro mandato do presidente Lula, levando a uma situação ambígua para o governo do PT e a acusação de que o partido havia se convertido ao neoliberalismo, que André Singer descreveu bem como “as duas almas do Partido dos Trabalhadores”. Esta hegemonia, entretanto, que possibilitava que esta fração determinasse os rumos da política econômica, ancorada no sucesso ideológico de seu discurso, abraçado incondicionalmente pela mídia, bem como na constante chantagem das fugas de capital, foi sendo minada ao longo do segundo mandato de Lula e especialmente após a crise internacional.



Esta paulatina perda de influência se deu, até 2008, pela situação internacional favorável (calmaria nos mercados financeiros internacionais e elevação dos preços das commodities exportadas pelo Brasil) e pela estratégia do governo de acúmulo de reservas internacionais. Após a crise internacional de 2008, continuou a redução da influência e perda da hegemonia dessa fração de classe. A reversão do padrão dos fluxos de capital que, nas crises anteriores, originadas nos “mercados emergentes”, tendiam a fugir abruptamente dos países periféricos em direção ao dólar, e nesta crise fizeram o caminho inverso, permitiu que o Brasil pudesse fazer uso de uma política macroeconômica expansionista para incentivar a atividade econômica, com reduções substantivas da taxa de juros e expansão fiscal, a contragosto dos representantes do sistema financeiro. O governo Dilma consolidaria esta perda da hegemonia, cujo momento mais simbólico foi o discurso da presidenta no 1.º de maio de 2012, Dia do Trabalhador, anunciando em cadeia nacional que os bancos públicos iam travar uma batalha pela redução dos spreads bancários.



Apesar de perder o apoio da fração bancário-financeira, a presidenta conseguiu manter o apoio de parte do empresariado, com medidas de desoneração no âmbito do Plano Brasil Maior e a expansão do crédito ao setor produtivo com o BNDES. E ainda mais importante, manteve o apoio de amplos segmentos populares, fenômeno que André Singer chamou de “lulismo”, qual seja, o apoio, com o qual passou a contar o presidente Lula na sua reeleição, dos setores mais desfavorecidos, graças principalmente às políticas distributivas de elevação de salário mínimo e de redução da pobreza, bem como ao sustentado aumento da renda, do crédito e do consumo, com a inclusão de dezenas de milhões de pessoas na chamada classe C. A força eleitoral deste grupo se mostrou decisiva, como bem aponta Singer, tanto na reeleição de Lula em 2006 – quando, pela primeira vez, o PT consegue vencer nestas camadas que tradicionalmente eram reduto do voto conservador – como na eleição de Dilma em 2010.



Até junho de 2013, a alta popularidade da presidenta Dilma parecia indicar que esta parcela da população, incluindo os que haviam ascendido para a classe C, permaneceriam dando apoio a ela na reeleição em 2014. Após as manifestações de junho, entretanto, o apoio a Dilma caiu bruscamente mesmo neste segmento e não se recuperou. Não é objetivo deste artigo tratar do impacto das manifestações na avaliação do governo Dilma, mas parece que foi decisivo o sucesso tanto da mídia como da oposição em criar um clima de pessimismo e fazer a população acreditar que os diversos problemas levantados nas manifestações (transporte, saúde, educação, moradia, corrupção) teriam começado com o governo do PT, quando na verdade são problemas históricos do País que o partido estava contribuindo para enfrentar.



A presidenta também perdeu apoio em parcela do empresariado, ligada aos setores de infraestrutura, após os desgastes com a tentativa de limitar a taxa de retorno das concessões, o que segundo os críticos teria levado aos atrasos nos investimentos.



Por último, mas não o menos importante, a presidenta também tem a seu desfavor a oposição aberta de vários veículos da grande mídia televisiva, digital e impressa, que tem feito coro com os representantes do mercado financeiro na crítica, pela direita (com viés liberal e antidesenvolvimentista), à condução da política econômica.



Assim, a fração bancário-financeira do capital, a grande mídia e parte do empresariado passaram a se alinhar com as duas candidaturas de oposição. Além disso, como já apontado, parte do eleitorado de baixa renda de 2006 e 2010, que estava alinhada ao PT no fenômeno que Singer chamou de lulismo, e inclusive a parcela que ascendeu à chamada classe C, deixou de apoiar a presidenta após as manifestações de junho de 2013, influenciada pela habilidade com a qual a oposição e a grande mídia conseguiram usar as manifestações e canalizar a insatisfação e os anseios da população contra o governo federal.



O pacto social que Lula construiu, possibilitando avanços econômicos e sociais sem entrar em confronto direto com as elites, em especial sem confrontar diretamente a hegemonia da fração bancário-financeira, sofreu significativas fissuras durante o governo Dilma.



A fração bancário-financeira, confrontada diretamente pela presidenta, seja na redução da Selic, seja na redução à força dos spreads a partir da atuação dos bancos públicos, já escolheu seu lado na disputa presidencial, passando a apoiar o candidato da oposição, Aécio Neves, e ao que parece também Marina Silva, que subiu rapidamente nas intenções de voto após a trágica morte de Eduardo Campos e já acenou para o mercado financeiro com a autonomia do Banco Central, velha bandeira desses interesses. Aécio, assim como Marina, trouxeram de volta para a linha de frente da defesa de seu programa econômico, e para o ataque à política econômica do governo Dilma, alguns dos economistas ligados ao comando da economia durante o governo FHC, muitos dos quais ocupam hoje postos muito bem remunerados no mercado financeiro.



Este é o quadro que se formou para as eleições de 2014. Temos basicamente dois projetos em disputa. Um é a continuidade de uma proposta que, se não avançou no ritmo desejado pelos mais exigentes e necessário para resolver nosso enorme abismo social, conseguiu obter importantes avanços em termos de crescimento econômico e inclusão social, e poderia seguir avançando com a continuidade das políticas de distribuição de renda e com uma política macroeconômica voltada para o desenvolvimento, incluindo a forte retomada dos investimentos públicos, uma política industrial mais ousada e o resgate da capacidade de planejamento estratégico por parte do Estado.



O outro projeto, seja pela via Aécio, seja pela via Marina, representa uma volta a um passado que foi enterrado nas urnas em 2002, caracterizado por uma política econômica liberal-conservadora, com o desmonte das estruturas de planejamento do desenvolvimento, políticas de juros reais elevados, conservadorismo no combate à inflação, elevado desemprego e baixo crescimento. Representa ainda o retorno da submissão da política econômica aos interesses do mercado financeiro doméstico e internacional, o que indica a provável volta da fração bancário-financeira à condição de fração hegemônica no interior do bloco no poder e retrocesso a um padrão rentista de acumulação que representa um entrave ao desenvolvimento econômico.



O voto dos mais desfavorecidos será decisivo no resultado das eleições, como nas duas últimas, nas quais eles estiveram alinhados aos candidatos do PT. Tudo vai depender da capacidade de a candidatura de Dilma mostrar que a continuidade da melhora do padrão de vida destes milhões que ascenderam à classe C, bem como a inclusão dos muitos que ainda precisam ser incluídos, depende não de uma mudança de projeto – especialmente da volta à política econômica desastrosa dos anos FHC – mas da continuidade e aprofundamento das políticas sociais e distributivas e da política macroeconômica voltada para o desenvolvimento.



(*) Doutor em Economia, professor do Departamento de Economia da PUC-SP e secretário-adjunto de Planejamento, Orçamento e Gestão da Prefeitura de São Paulo.



Carta Maior

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