domingo, 7 de setembro de 2014

Um papo com a Cobra Vadia sobre preconceito

Juremir Machado

Encontrei a Cobra Vadia num terreno baldio de Porto Alegre. Amanhã explico quem é ela. Adianto que ela tem a língua viperina. Peço apenas que não a confundam com a Cabra Vadia. A Cobra estava indignada. Aproximei-me com cautela, pois tinha lido um artigo sobre cobras. Elas podem picar mesmo depois de perder a cabeça. A Cobra Vadia estava visivelmente descabelada.

– Que horror! – foi logo esbravejando.

– Que houve? – sempre falo pausadamente com desconhecidos.

– Para onde vamos?

– Não tenho a menor ideia. Pretendo ir ao cinema.

– Não se pode mais chamar negro de macaco em estádio de futebol, não se pode mais defender maus tratos a presos em emissoras de rádio, não se pode mais fazer piada de fresco – a Cobra é antiga –, não se pode mais chamar negrão de crioulo, não se pode fazer mais nenhuma brincadeira inocente e saudável. Onde vamos parar desse jeito?


– Dizem que é culpa do politicamente correto – provoquei.

– Claro que é – a Cobra soltou a língua –, tudo culpa do tal de politicamente correto, essa idiotice importada dos Estados Unidos, que está tornando a vida insuportável, insípida, chata, aborrecida, totalmente sem graça, com tudo controlado, vigiado e censurado.

– De fato – digo cinicamente –, não dá mais para humilhar ninguém sem que a pessoa tenha o atrevimento de reclamar, de denunciar, de fazer um escândalo, de encontrar apoio nas redes sociais e de conseguir punição para o inocente que apenas queria se divertir praticando o inocente direito ao preconceito, ao bullying e ao linchamento.

– É o que eu sempre digo – a Cobra não escuta –, o politicamente correto não deixa nem tirar sarro de anão. Onde já se viu achar que tem racismo em chamar negro de macaco? Isso é até preconceito com os macacos. Eu não sou preconceituoso. Tenho até amigos negros. Também não sou contra frescos. Já até apertei a mão de um veado. É tanto preconceito desse politicamente correto que já tem gente com vergonha de ser heterossexual. Onde vamos parar? A liberdade acabou. Foi-se.

– Que coisa! A situação é grave – observo. – Parece que a sociedade resolveu acabar com a lei do mais forte. Como vão se virar aqueles que viviam de defender tortura, de achar que bandido bom é bandido morto, de esculachar os diferentes e de pisotear os mais frágeis?

– Mais fraco é para apanhar mesmo – indigna-se a Cobra. – Ou que se torne mais forte. Eu, quando era criança, apanhei muito, pegavam no meu pé, no sentido figurado, claro, e, graças a isso, sou o que sou. Só me fez bem. Minoria é para andar no ritmo da maioria. Assim é que eu penso, eu que sou uma cobra de bem, que paga seus impostos e quer dormir à noite sem ser incomodada por arruaceiros e esquerdistas.

– A punição ao Grêmio te incomodou? – perguntou timidamente.

– Um horror. Um despautério. Um absurdo. Os torcedores não podem mais nem se divertir sacaneando um goleiro adversário! Não tinha racismo naquilo. Era até carinhoso. Onde vamos parar assim? É o fim da civilização. Ou acabamos com o politicamente corretou ou…

– Ou o politicamente correto acaba com o preconceito – emendo.

A Cobra Vadia desmaia. Bato em retirada. Até amanhã.


Correio do Povo

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