Raul Juste Lores
RESUMO Governo americano e ONGs investem grandes somas em programas que dão moradia, em vez de abrigo temporário, a sem-teto. Veteranos de guerra, ex-drogados e doentes mentais recebem apoio para reintegração à vida comum, e país vê queda no número de pessoas em situação de rua, apesar da crise econômica.
Deitado em um banco com encosto na praça Lafayette, em frente à Casa Branca, o porto-riquenho Miguel, 40, não acreditou na proposta feita por uma assistente social. "Oferecemos a você uma casa, ajudamos a pagar o aluguel, a comprar móveis e a cuidar da sua saúde", ele ouviu em uma madrugada no mês passado, em pleno inverno, em Washington.
Alcoólatra e desempregado, Miguel diz que apesar dos turistas e dos protestos, a vizinhança "é sossegada e segura à noite".
No dia seguinte, quando a assistente social voltou, Miguel não estava lá. "Pode ser medo da polícia, de não querer ir para um albergue. Às vezes levamos seis meses para ganhar a confiança dos nossos clientes", diz Hannah Zollman, acostumada a procurar os sem-teto embaixo de pontes, em bancos ou em pontos turísticos da capital norte-americana.
Ela tabula a localização dos sem-teto, identifica lideranças entre eles, usa perguntas "motivacionais" ensaiadas para quebrar a resistência e leva roupas, cobertores e sopa quente para iniciar a aproximação. E, de fato, oferece moradia permanente.
Sua promessa não era exagerada. De ONGs ao governo federal americano, a política hoje dominante para atender os sem-teto é a chamada "housing first" (primeiro, casa). Desde 2010, o Departamento de Habitação do governo americano tem investido US$ 2 bilhões (cerca de R$ 4,7 bi) por ano para patrocinar vouchers para pagamento de aluguel e programas de "habitação social de apoio permanente" organizados por centenas de ONGs pelo país.
Há 300 mil pessoas atualmente vivendo com vouchers do governo e com assistência social -eles são quase a metade dos 615 mil americanos em situação vulnerável de perder o teto.
"Os albergues para os sem-teto acabam perpetuando o problema. Sem-teto precisa de casa em primeiro lugar. De casa financiada pelo governo e assistência social e médica", defende o psicólogo nova-iorquino Sam Tsemberis, que fundou há 20 anos a ONG Pathways e é considerado o pioneiro do "housing first".
"É muito difícil alguém com um problema de saúde mental ou com um vício recuperar a sua vida em um albergue lotado, sem privacidade ou estabilidade."
VULNERÁVEIS
O governo comemora uma queda de 23% no número dos sem-teto no país entre 2007 e 2013, mesmo com a recessão de 2008 e 2009 e a tímida recuperação econômica desde então.
Há vários graus de vulnerabilidade entre os sem-teto, de acordo com o censo realizado no ano passado. Dos 300 mil que recebem os vouchers para pagar seu aluguel, 58 mil são veteranos de guerras que, ao retornar de campanhas militares, têm dificuldades para se readaptar à família, encontrar trabalho ou acabam sofrendo com vícios ou depressão.
Cerca de 215 mil moram em casas ou construções abandonadas, em bancos de praça ou embaixo de pontes. Desses, 100 mil são os chamados casos crônicos, com mais de um ano sem abrigo -é para eles que vai 50% do orçamento para habitação de "pessoas com necessidades especiais" do Departamento de Habitação. Nesse universo dos sem-teto crônicos, 60% são viciados em drogas ou álcool, 30% têm doenças mentais.
Como se aluga um apartamento e se coloca lá sozinho alguém com um histórico de dependência e que perdeu já há algum tempo o costume das regras e limites da vida em condomínio? "É um risco, com certeza, mas é preciso paciência. A alternativa é sempre pior", diz Christy Respress, que dirige a Pathways em Washington. O caminho da rua para o teto permanente não é simples.
Ellery Lampkin, 42, foi despejado duas vezes -atraso no aluguel é a reclamação mais comum-, e a organização Pathways Washington (de cem funcionários, entre eles cinco enfermeiros, um psiquiatra e seis ex-sem-teto) continuou a apoiá-lo.
Lampkin foi parar nas ruas da cidade logo depois de ver a mãe, viciada em crack, ser assassinada com três tiros na cabeça. Ele mesmo foi preso algumas vezes pelo envolvimento com drogas. É bipolar e sofre de transtorno de estresse pós-traumático.
Lampkin dormia diariamente diante da Biblioteca Pública Martin Luther King Jr., obra do arquiteto modernista Ludwig Mies van der Rohe na capital americana -sua marquise sobre a calçada sem grades até hoje serve de abrigo para vários sem-teto.
A última década de vida do rapaz teve acompanhamento da Pathways. Ele não consome cocaína desde 2006 e vai regularmente à sede da organização dar depoimentos de sua transformação -tanto para possíveis doadores e voluntários como para pessoas que, como ele, foram encontradas na rua por assistentes sociais.
Corpulento, com jaqueta de couro e calça jeans, ele lembra que por cinco anos teve um "gerente" para seu caso. Lampkin recebia visitas semanais de psiquiatra, tratamento de desintoxicação e apoio moral. "Mas meu apartamento é meu escudo", sublinha.
Sua saída da rua teve direito a uma semana em hotel pago e a busca por seus documentos até a organização alugar seu primeiro apartamento. Vários sem-teto têm direito a seguro do governo por invalidez (US$ 700 mensais) ou seguro-desemprego, mas sua situação impede que conheçam bem seus direitos. O contrato prevê que 30% da renda que obtêm seja para pagar o aluguel.
ONGs e prefeituras americanas têm feito uma ofensiva atrás de proprietários de imóveis com "alguma consciência social", segundo Respress, para conseguir contratos mais generosos ou paciência inicial com inquilinos desacostumados a regras de condomínios.
"Muitos sem-teto perderam todo e qualquer contato com seus parentes, com seus amigos, com seus filhos, não têm em quem se apoiar. É um processo até recuperarem o seu círculo", diz Respress.
Segundo dados do governo americano, após um ano de instalação, 83% das pessoas alojadas no "housing first" continuavam no primeiro imóvel alugado.
Na prática, isso exige um curso intensivo de como voltar à vida comum. Na sede da organização, fotos nas paredes mostram pratos de comida saudável e sugerem "como reduzir seu peso". Há cartazes com listas de regras de boa convivência para os recém-chegados, "compromisso para comportamento seguro".
Serviços de apoio também foram criados -para os veteranos militares, há uma linha telefônica de emergência para aconselhamento e ajuda em momentos de depressão ou risco de despejo, nos moldes do CVV.
CUSTOS
O secretário-assistente do Departamento de Habitação, Mark Johnston, confirma que o "housing first", visto como "ideia radical" nos anos 80, virou política "mainstream" em seu ministério.
Johnston diz que albergues são necessários como "primeiros socorros", mas que os sem-teto crônicos precisam de atenção especial. Questionado sobre os altos custos de seus programas -aluguel e atenção social custam até US$ 18 mil (R$ 42,3 mil) por ano por "cliente", valor que sobe a US$ 28 mil (R$ 64,4 mil) se precisar de acompanhamento psiquiátrico ou de reabilitação para dependentes químicos- Johnston diz que seus programas são investimento.
"Um sem-teto pode custar US$ 40 mil por ano aos cofres públicos enquanto está na rua. Uma ambulância custa no mínimo US$ 1 mil, uma noite no setor de emergência de um hospital custa US$ 1,5 mil. Um dia na cadeia custa US$ 100. Em um mês, um presidiário custa aos cofres públicos US$ 3 mil, muito mais caro que o aluguel. E esses são gastos. É mais barato dar casa do que não fazer nada", diz.
A ideia do "housing first" começa a ser exportada. A organização Community Solutions, que lançou uma campanha chamada "100 mil lares" e que reúne 230 ONGs pelos EUA, abriu uma divisão internacional e, junto com a Universidade DePaul, de Chicago, vai inaugurar um instituto internacional sobre a condição dos sem-teto.
Paul Howard, diretor da Community Solutions, diz já ter "uma lista enorme do que funciona e do que não na aproximação e no tratamento dos sem-teto", que pretende "sistematizar e compartilhar com outras ONGs pelo mundo".
Resultados chegam com a persistência, mas sem milagres.
O porto-riquenho Miguel aceitou ir morar em um dos apartamentos alugados pela Pathways na terceira tentativa das assistentes sociais. Ellery Lampkin ainda faz bicos. Além das palestras motivacionais para quem está na situação em que ele se encontrava há uma década, ele busca um emprego de verdade.
RAUL JUSTE LORES, 38, é correspondente da Folha em Washington.
EM SÃO PAULO o autor deste texto participa do 9º Seminário Internacional de Projeto Urbano da Escola da Cidade, que ocorre de amanhã a sexta e tem por tema a habitação. O primeiro dos dez convidados a falar no auditório da Aliança Francesa (Centro) será Paulo Mendes da Rocha, às 10h30. Inscrições gratuitas no site escoladacidade.edu.br
Comentários:
Pois é, e ainda tem gente que pensa que programas de assistência social só existem no Brasil. Vejam aí e aprendam: até no país mais rico do mundo o governo transfere parte do que recebe aos mais pobres. E em percentual maior que o Brasil...
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Ainda bem, porque aqui no Brasil se gasta 10 bilhões por mês em corrupção....e fora outras falcatruas.....não denunciadas.......que eu saiba o Marco Civil.....ainda não esta funcionando......
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Só dois bilhões por ano? Na derrubada do governo da Ucrânia os EUA "aplicaram" cinco bilhões. É verdade que já recuperaram, levando para o New York Fed toda a reserva de ouro da Ucrânia.
Folha SP
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