Cláudio Marques
O Centro Histórico de Salvador amanheceu com dezenas de casas pintadas com a frase "Aqui Podia Morar Gente”. Todos os imóveis que foram marcados estão abandonados. Alguns, há décadas.
Trata-se de um protesto de moradores da região que estão cansados de ouvir as autoridades (em nível federal, estadual e municipal) falarem de forma leviana sobre a revitalização do Centro Histórico sem que nenhuma política concreta seja discutida e colocada em prática. Não existe planejamento para essa região, que é preciosa, verdadeira joia rara. Poucas cidades do mundo contam com um Centro Histórico tão belo e extenso. Aqui, temos uma mistura privilegiada de famílias baianas que vivem há décadas, com estrangeiros que se apaixonaram por Salvador, além de artistas (baianos ou não), que elegeram o Santo Antônio, Pelourinho e arredores para residir e criar.
O Centro Histórico de Salvador possui cerca de mil e quinhentos sobrados, apartamentos e salas comerciais vazios, segundo estudo do Escritório de Referência do Centro Antigo. Isso, mesmo: mil e quinhentos. A placa de "vende-se” está por todos os lados, mas são raros os negócios concretizados. O que vigora por aqui é uma especulação paralisante, que condena o bairro à desertificação e à degradação.
História recente que ilustra de forma irretocável o descaso com que a mais importante região da cidade vem sendo tratada, é a que envolve Luciana Rique. Famosa por ser herdeira do Grupo Iguatemi, ela comandou a compra de trinta e quatro sobrados (chegou-se a mencionar quarenta sobrados, em entrevistas e matérias) no Santo Antônio, anos atrás. A empresária falava em atrair investidores e construir uma espécie de shopping a céu aberto. Mas, ela desistiu do projeto e as casas estão abandonadas. Sem manutenção alguma, os imóveis acumulam lixo, atraem bichos e colocam em risco as casas vizinhas. Existe o risco de desabamento, em algumas delas.
A ação promovida por Luciana Rique provocou forte impacto econômico e social no bairro. São centenas de pessoas a menos para comprar o pão na padaria, frutas na mercearia ou mesmo frequentar os salões de beleza do bairro. No mínimo, são trinta e quatro famílias a menos nas ruas, que se tornaram mais perigosas.
Lamentavelmente, os poderes públicos nada fizeram para reverter a situação da região.
Após sete anos no poder e faltando pouco menos de um ano para a Copa do Mundo, o governo do estado mandou pintar as fachadas das casas no Centro Histórico, inclusive as abandonadas, com uma tinta acrílica que é inadequada à materialidade histórica do lugar. Lembro, aqui, que estamos em região de preservação, tombado por lei. Trata-se de Patrimônio Mundial da Humanidade, titulo conferido pela UNESCO. Usar esse tipo de tinta se equivale a trocar as telhas de cerâmica por telha metálica, por exemplo.
O governo mandou pintar as "cascas”, para maquiar a degradação, o abandono, durante grande evento.
O estado e a prefeitura possuem meios legais para exigir a manutenção ou mesmo desapropriar os imóveis abandonados.
Mas, em primeiro lugar, deve-se conversar com os moradores para que as soluções não sejam tomadas de forma autoritária. O Centro Histórico guarda marcas profundas da intervenção "arrasa-quarteirão” (nas palavras do saudoso sociólogo Gey Espinheira), promovida por ACM, o avô. No início dos anos 90, moradores foram expulsos de suas casas. No lugar, foram implantadas lojas sem nenhuma relação com a história do lugar. Aos poucos, o comércio foi minguando e a região tornou-se mais e mais deserta. Com o passar dos anos os problemas se tornaram ainda mais agudos.
Todos sabem: a resposta para a revitalização está nas pessoas, na moradia. Existe uma procura gigantesca por casas e apartamentos para alugar, sobretudo, no Santo Antônio, mas não há oferta. É preciso que uma política seja estabelecida, com metas e prazos, para que as milhares de salas e casas vazias se transformem em residências para estudantes, artistas, estrangeiros e quem mais quiser. O Centro Histórico precisa estar repleto de pessoas que cuidem da região, no dia a dia.
A moradia é necessária, ainda, para que a arquitetura especial dessa região seja preservada. Não devemos tolerar reformas a qualquer custo, sem cuidado.
"Aqui Podia Morar Gente” é o nosso primeiro grito pela moradia no Centro Histórico.
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PS1: Agradeço à Marília Hughes e Márcio Correia Campos pelas observações ao presente texto.
[Cláudio Marques é coordenador do Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha. Diretor, roteirista, produtor e montador de 6 curtas metragens]
Adital
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