Nas primeiras cenas vemos um grupo de turistas no Capitólio. Um deles desmaia. Excesso de calor? Pode ser. Naquela cidade, a temperatura é infernal durante o verão. Mas pode ser outra coisa também. Como se sabe, o excesso de beleza é fatal para algumas pessoas. Uma visita ao Museu do Vaticano, ou a simples visão da Cidade Eterna num dia de luz clara, podem conduzir ao desmaio, a um mal-estar indefinido, a um desfalecimento diante do êxtase. Afinal, estamos em Roma. E numa Roma especial, transfigurada – a de A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino. Roma, lembra o protagonista, não é para principiantes. Loba velha, ela pode te devorar.
É o que pode estar acontecendo a Jep Gambardella, interpretado por Toni Servillo. Gambardella não é somente um cronista social, ele é “o” cronista, o escriba da burguesia em festa. Aquele que conhece todas as pessoas “que contam”, e é por elas conhecido. Talvez temido, talvez desprezado, ou odiado, nessa combinação bastante comum da vida social, Jep é um carro-chefe da mundanidade.
Após as cenas iniciais, há o corte para uma sequência barulhenta, que, logo descobrimos, se passa no apartamento de Gambardella, um Pallazzo cujo terraço tem vista para o Coliseu. Na festa, uma pequena multidão de deslumbrados, “toda” a Roma. Muito ruído, música alta, bebida à rodo, algaravia cortante e constante. Um excesso em cujo centro, desconfia-se, more o vazio. Será esse o tom do filme – uma dialética entre o excesso e o vácuo. É desse modo, parece, que Sorrentino toma o pulso do seu país. Uma grande cultura subterrânea, ruínas que hoje sustentam uma elite cafajeste e oca.
Jep Gambardella é um bobo dessa corte. Ao mesmo tempo, aproveita-se dela. Fez sua vida à custa da camada social que, no fundo, despreza. Escora-se num feito do passado, a publicação de um livro que teve relativo sucesso 40 anos atrás, para sustentar seu ego no presente. Mas esse recurso parece cada vez menos eficaz quando o personagem tem 65 anos de idade e portanto perdeu o direito às ilusões. No entanto, Gambardella continua cegamente a seguir sua rotina de noites em recepções sociais, acordar tarde, sair cada vez com uma mulher diferente, ter sempre a frase mais cáustica na boca, etc.
Parece também evidente que Sorrentino estabelece um elo forte com o grande cinema italiano dos anos 1960. É fácil ver em A Grande Beleza a reelaboração atualizada do clássico A Doce Vida, de Federico Fellini, ou diálogo com a chamada Trilogia da Incomunicabilidade, de Michelangelo Antonioni, em especial com A Noite. Naquela época Fellini e Antonioni percebiam que a sociedade organizada no pós-guerra daria com os burros n’água. Não havia saída honrosa para o super consumismo que já se anunciava, para o espetáculo tornado permanente, para o aviltamento dos ricos em busca de um prazer sem fim. Essa percepção, numa sociedade como a italiana, remete obrigatoriamente ao declínio do Império Romano, que tem no festim de Trimalquião, descrito por Petrônio em Satyricon (filmado por Fellini), seu símbolo mais forte da queda.
A Grande Beleza é, assim, um filme da decadência. Sobre o esplendor e a miséria da decadência, porque o ocaso de uma civilização pode ser tanto assustador como fonte de inspiração.
Cotação: ÓTIMO
Estadão
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