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Carlos Henrique M. Menegozzo
O movimento estudantil universitário tende a manifestar as expectativas da classe média, ainda que possa ter um caráter progressista. Por isso, quando se engajam, os estudantes da nova classe trabalhadora tendem a fazê-lo em movimentos para fora dos limites das universidades
Os protestos de junho marcaram uma virada de ciclo político no país e o momento atual é de relativa ascensão das lutas populares. A juventude vem desempenhando papel importante nesse processo – um papel que os analistas têm tido dificuldade em interpretar. Exemplo disso encontra-se em pesquisas realizadas durante as manifestações em diversas capitais. Nas ruas, 52% dos manifestantes declararam ser estudantes (Ibope), enquanto em São Paulo a proporção chegou aos 70% (Datafolha). Esse dado parece paradoxal se considerado à luz da crise que muitos analistas acreditam acometer o movimento estudantil há décadas, que é interpretada como um desinteresse do estudante pela política, reforçado com a baixa adesão ao movimento por parte dos setores da classe trabalhadora que tem alcançado o ensino superior (Pochmann, 2014).
Esse aparente paradoxo revela a fragilidade das leituras correntes sobre a experiência de engajamento estudantil no Brasil, o que prejudica uma adequada resposta a questões que vão adquirindo maior importância na nova conjuntura. Por exemplo, que contribuição pode dar o movimento estudantil neste novo ciclo em termos de potência de transformação social? Ou: pode ser ele um canal de manifestação da “nova classe trabalhadora”, que chega às universidades em maior número, e tem sido um ator decisivo neste novo momento político? A adequada abordagem dessas questões envolve a consideração de uma variável rara ou insuficientemente tratada nos estudos dedicados ao movimento estudantil: sua composição e seu conteúdo de classe.
Classes sociais: definições gerais sobre um tema controverso
O tema das classes sociais envolve muita polêmica (Bobbio, 1998; Bottomore, 1997). Não é nosso objetivo abordá-las em profundidade, mas apenas buscar definições gerais que nos serão úteis. Em primeiro lugar, é preciso estabelecer um critério para nossa definição de classe social. Adotamos aqui o critério da posse de propriedade, o qual permite reconhecer desigualdades sociais fundamentais que condicionam profundamente as experiências e dinâmicas de grupos sociais e ajudam a dimensionar sua potência transformadora, proporcional à sua incidência sobre as relações de produção – determinantes aos demais aspectos da sociedade. São proprietários os que detêm a posse dos meios de produção, trabalhadores os que vendem aos proprietários sua força de trabalho como condição de sustento, enquanto entre ambos se localizam as classes médias, que incluem setores como pequenos proprietários e antigos profissionais liberais (Pomar, 2013).
Adicionalmente, não se pode negligenciar o fato de que é constitutiva do capitalismo a separação entre a esfera da economia e a da política, conduzindo a uma igualdade político-jurídica formalmente estabelecida sobre desigualdades econômicas reais que não chegam a ser juridicamente reconhecidas ou justificadas. Isso reforça a descontinuidade entre a localização objetiva de classe (“classe em si”, definida em relação à posse de propriedade) e seu reconhecimento como comunidade de interesses correspondentes a essa localização (“classe para si”). É na política que esse reconhecimento pode ou não acontecer, daí a importância de considerarmos aspectos como as faixas de renda ou o acesso à educação superior: elas estabelecem grupos cujos critérios de estratificação não se reduzem aos critérios de classe, mas manifestam de modo mais imediato conflitos de interesse mais profundos, notadamente os de classe.
Caracterização de classe da população estudantil universitária no Brasil
Tais considerações nos ajudam a entender a relação entre as noções de “classe social” e “estudante”. A primeira pergunta a fazer é a seguinte: a condição de estudante é uma condição de classe? Afinal, não seria o papel do estudante equiparável ao de uma profissão, ou seja, de alguém que trabalha? Em termos mais elaborados: na condição de integrante da força de trabalho em processo de preparação ou de capacitação, e pressupondo seu papel de copartícipe desse processo formativo, não seria a situação do estudante a de um trabalhador que trabalha sobre si mesmo (visando à valorização de sua própria força de trabalho) e, portanto, uma condição equiparável à da classe trabalhadora?
Essa equiparação seria possível, caso o rendimento necessário ao seu sustento proviesse de um salário estudantil, correspondente ao reconhecimento social do trabalho que o estudante de fato exerce sobre si mesmo (Saes, 1978; Ovetz, 1996). Não é esse o caso em nosso país, todavia. Diante da inexistência de uma tal remuneração, a condição de classe do estudante é determinada pelas relações que o mantêm: se trabalha, sua classe será determinada por sua posição no mercado de trabalho; se depende da família, sua classe corresponderá à da família de que depende para sustentar-se (Foracchi, 1965; Saes, 1978)1.
Nesses termos, a condição estudantil não se define como uma “classe social”, mas uma “categoria social”, podendo reunir num mesmo grupo social setores de muitas classes, que se encontram “estratificados” pelo critério do acesso à educação formal, ou seja, identificados objetivamente pelo pertencimento a uma instituição de ensino por meio de relação formalizada com o ato da matrícula. Isso significa que, na ausência de um salário estudantil, não é na própria condição estudantil que encontramos elementos para sua caracterização de classe, mas no grau de abertura do sistema de ensino – no caso, o ensino superior – às distintas classes sociais.
Embora inexistam pesquisas abrangentes capazes de identificar precisamente as oportunidades de acesso ao ensino superior conforme a condição de classe (definida com base na propriedade), algumas tendências podem ser identificadas. É fato inquestionável, por exemplo, que a expansão recente tem favorecido o ingresso de estudantes de baixa renda (DataPopular, 2010), não obstante o aumento das taxas de evasão nesse segmento (Semesp, 2011). Identificado em termos de status aos setores médios e almejando ascender pela educação (podendo assim ser compreendido como parcela de um “estrato” médio), esse setor da classe trabalhadora tem sido equivocadamente denominado por alguns de “nova classe média”.
Além dessa tendência geral, é preciso reconhecer que a distribuição das classes sociais no sistema de ensino superior não é homogênea; e portanto a consideração do movimento estudantil por esse aspecto deve levar em conta determinados padrões. A julgar por pesquisas realizadas nos anos 1990 no estado de São Paulo, e diferentemente da impressão corrente sobre o tema, a proporção de estudantes provenientes de famílias de classe média e trabalhadora era equivalente nas redes pública e privada; que tendiam a se elitizar conforme localização geográfica (proximidade das capitais), região do país (Sul e Sudeste), configuração do estabelecimento (universitário em relação ao não universitário), carreira (profissões concorridas) e também conforme a carga horária/período dos cursos (Cardoso e Sampaio, 1994).
Atitudes de classe dos estudantes em relação à educação
Se aqueles critérios gerais de distribuição das classes sociais no sistema de ensino superior no Brasil permanecem, isso é algo ainda a se verificar. Inegável, de qualquer forma, é que existem padrões de distribuição da população estudantil pelo sistema de ensino superior se considerarmos o critério de classe. Inegável também que cada experiência de classe se traduz numa atitude particular do estudante em relação ao próprio sistema educacional e sua transformação. Em outras palavras: as atitudes dos estudantes diante do processo educacional e sua disposição de transformá-lo não é algo que se possa considerar abstratamente, como um dado homogêneo no meio estudantil. Elas variam conforme a experiência de classe, sugerindo haver padrões de comportamento que uma melhor compreensão da distribuição das classes sociais pelo sistema de ensino poderia apontar mais claramente.
No que tange às atitudes diante do ensino, vejamos primeiro o caso dos estudantes de classe média. Nesse segmento, diferentemente do que ocorre com os setores privilegiados da sociedade, observa-se uma íntima associação entre a formação técnico-científica proporcionada pela educação superior e as oportunidades de ocupação profissional. Assim, não é de espantar que nele se encontre acentuado comprometimento com a educação superior – além de tendencialmente portadores da chamada “ideologia da ascensão social pela educação” (que absolutiza o acesso a educação como fator de ascensão, minimizando aspectos econômicos), manifesta na demanda pela ampliação de oportunidades educacionais – esses estudantes mostram-se particularmente sensíveis aos problemas do ensino e das condições futuras de exercício da carreira, encontrando aí um verdadeiro germe do processo de politização (Foracchi, 1972 e 1982; Saes, 2004).
Relativamente diversa é a situação do estudante oriundo dos estratos superiores da classe trabalhadora. Ascendendo à universidade, também vivencia a possibilidade de ascensão, assumindo por isso a ideologia de ascensão pela educação e pelo esforço pessoal. Mas a fragilidade de sua condição familiar, suscitando a valorização positiva exacerbada do ensino superior, pode reforçar uma valorização também positiva das autoridades professoral e universitária, desfavorecendo o engajamento (Saes, 2004; Foracchi, 1965 e 1972). O oposto parece se verificar nos estratos inferiores da classe trabalhadora (notadamente no meio rural), onde se observa uma maior disposição de enfrentamento político. Pelo menos é o que se deduz de uma leitura preliminar da dinâmica das lutas estudantis em instituições localizadas às margens do sistema de ensino superior. Isso poderia ser explicado pela relativização do valor positivo atribuído à formação superior, pois pouco decisiva às possibilidades de ascensão social, nesse caso (Saes, 2004).
Condicionamento de classe do movimento estudantil universitário
Mas a localização de classe do estudante não incide apenas sobre sua disposição do estudante ao envolvimento político e à mudança educacional; envolve também sua disponibilidade ao engajamento. Com isso se quer dizer que a condição estudantil, e portanto também o movimento estudantil, não se define por uma determinada localização de classe. mas determinadas localizações de classe favorecem o engajamento e a existência do movimento estudantil, fazendo deste (tendencialmente) a expressão privilegiada de determinadas classes sociais presentes no meio universitário.
Para uma melhor apreciação dessa questão precisamos partir de uma desnaturalização da ideia de “estudante”. Tende-se a empregar o conceito de maneira indiscriminada, tomando-o como sinônimo de “aluno”, ou seja, definido pela situação administrativa correspondente à matrícula num estabelecimento de ensino superior. Pois a ideia de “estudante” é mais complexa que isso. Corresponde a um grupo ou “categoria social” que se constitui não apenas naquela condição objetiva compartilhada, mas também no reconhecimento dos interesses comuns suscitados por aquela condição compartilhada. Em outras palavras, a condição de “estudante” representa uma “categoria para si” derivada da condição de “aluno”, entendida como “categoria em si”. Ser estudante é mais que ser aluno: é olhar para o mundo e agir sobre ele desde esse ponto de vista particular.
Resta-nos perguntar que condições determinam essa passagem e que incidência tem nesse processo a questão de classe. O primeiro fator importante daquela passagem é a condição juvenil. Ela se define, primeiro, pela busca de uma identidade social – de um lugar no mundo –, que nesse caso acaba preenchida pelo sentimento de pertencimento coletivo a uma “comunidade universitária”. A isso se soma a tendência à agregação e ao convívio, que é estimulado pelo desejo de compartilhamento e reelaboração das aflições próprias dessa etapa transitória da vida. Mas essa agregação, base de movimentos de caráter coletivo, só pode acontecer nos casos em que o ambiente social possibilite a integração – algo que a universidade tem deixado cada vez mais de oferecer desde os anos 1960 (Ferreira, 1985) que explica em parte aquilo que se define correntemente como uma crise do movimento estudantil.
A esses dois fatores deve-se acrescentar um terceiro, que os determina, pois está relacionado justamente à condição de classe. Vejamos: a busca por um lugar no mundo e por uma identidade coletiva, preenchida com o sentimento de pertença a uma “comunidade acadêmica”, só pode se estabelecer nos casos em que o aluno não definiu esse lugar ainda, inclusive profissionalmente. Ou seja, depende de uma privilegiada desobrigação com o próprio sustento, a permitir uma relação “experimental” com o presente. Ao mesmo tempo, aquele sentimento só floresce com o convívio universitário. Pois essa possibilidade depende de uma relativa autonomização diante das exigências e pressões familiares, obtida pelo estudante com recursos advindos de uma atividade ocupacional de tempo parcial (que não lhe impede a vivência universitária, como ocorre com o trabalhador que estuda) e cujo rendimento ele pode empregar conforme seus próprios desejos e interesses (Foracchi, 1965, 1972 e 1982).
Em outras palavras, embora diferentes classes componham a população estudantil, é na classe média que a passagem da condição de aluno (“categoria em si”) à de estudante (“categoria para si”) é favorecida. Existem aí a expectativa de ascensão pela educação (a reforçar a relação do aluno com o estabelecimento de ensino) e a frustração com o curso e a profissão (presente também entre os alunos de origem popular, mas atenuada entre as classes dominantes). Com o tempo livre advindo da relativa desresponsabilização para com o próprio sustento e a relativa autonomização em relação à família possibilitada pela ocupação em tempo parcial (situação menos provável entre alunos de extração popular), essa frustração pode ser reelaborada coletivamente no espaço da universidade e gerar politização. Isso pressupondo a instituição como espaço agregador – coisa que já não acontece como nos anos 1960.
O movimento estudantil e as transformações econômicas
Diante do exposto até aqui, conclui-se o seguinte: na ausência de um salário associado ao exercício dessa “profissão”, a condição de “aluno” não se define como uma condição de classe, mas como “categoria social” cuja condição de classe é determinada pelas relações de manutenção que estabelece com o mundo do trabalho ou a família e cuja composição varia conforme o grau de elitização do ensino superior; apesar dessa diversidade, a passagem da condição de “aluno” à de “estudante” é favorecida por determinadas condições de classe, e não outras, fazendo do movimento protagonizado por estudantes a expressão tendencial de certas classes sociais, e não de outras; e as condições associadas àquela passagem correspondem, sobretudo, às da classe média.
Neste ponto podemos então afirmar que o esforço por determinar a potência transformadora do movimento estudantil, considerando suas determinações de classe, deve levar em conta não apenas a disposição e a disponibilidade ao engajamento associadas às classes médias (tal como fizemos até aqui) ou o alcance de sua prática em termos de mudança do aparelho educacional (como fizemos em artigo anterior – ver Menegozzo, 2013), mas também a potência transformadora das classes médias relativamente à estrutura econômica da sociedade. Muito já se discorreu sobre o tema nas últimas décadas, e seria impossível aqui resgatarmos a complexidade do debate (ver a nota O debate sobre o papel dos estudantes da classe média).
Creio que as formulações mais adequadas sobre esse tema se encontram em Martins Filho (1987), Foracchi (1965, 1972 e 1982), Soares (1968) e Saes (1978), entre outros, e aparentemente também em Bresser-Pereira (1979), Mandel (1979) e Habermas (1987). De uma maneira geral, nesse caso, o potencial de mudança da “pequena burguesia” aparece ampliado, se comparado a outras leituras, seja em função de um processo de “proletarização” das ocupações de classe média, seja pela mercantilização do ensino, a deslocar aquele setor de uma posição marginal a uma condição de maior centralidade econômica na sociedade. Outro aspecto dessa ampliação aparece no próprio sentido do protesto: carentes de um projeto próprio de sociedade, os setores médios se voltam contra os obstáculos de sua própria perspectiva de ascensão, podendo sofrer polarizações à esquerda e à direita, servindo às forças da reação ou da revolução. Isso, a partir da politização das frustrações e disposições próprias dessa classe, tal como o descontentamento com as condições de ensino ou seu estilo de participação “iluminista”, que, pretendendo falar em nome de outros setores no papel de vanguarda esclarecida, pode servir de estímulo ao engajamento no meio popular.
Conclusão
Do exposto se conclui que a condição estudantil universitária e, portanto, o movimento estudantil também, muito embora não se definam pela condição de classe, encontram na situação da classe média condições mais favoráveis para se desenvolver, tendendo a manifestar as aspirações e frustrações dessa classe social. Isso não significa que esteja reduzido a uma posição meramente corporativa e estrategicamente marginal. Carente de um projeto próprio de sociedade, a classe média – representada aqui pelos estudantes e pelo movimento estudantil – pode sofrer polarizações à esquerda e servir às forças da revolução. Ademais, sua posição econômica marginal é relativizada por muitos, que admitem poder ter havido um deslocamento da posição do estudante com a mercantilização do ensino, o que elevaria sua potência transformadora no que tange à incidência sobre a esfera da economia, para além de sua incidência sobre o aparelho educacional.
Quanto à relação do movimento estudantil com a “nova classe trabalhadora”, pode-se concluir, em caráter de hipótese, o que se segue. Primeiro: não obstante as disposições progressistas existentes nesse segmento estudantil, sua condição de classe tende a desfavorecer a disposição quanto à mudança educacional. Segundo: tais condições restringem as possibilidades de participação num movimento com as características do estudantil, problematizando tanto a possibilidade de que se possa estabelecê-lo como movimento constitutivamente popular quanto a expectativa de que a politização dos estudantes da “nova classe trabalhadora” se manifeste plenamente por aí. Nessa limitação, todavia, reside um enorme potencial, frequentemente negligenciado: ligado à sua comunidade de origem por vínculos fortes, esse estudante desempenha um papel de formador de opinião no seio da “nova classe trabalhadora”, podendo servir de ligação entre os setores médios radicalizados e as periferias neste momento de relativa ascensão das lutas populares.
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