julho 1, 2013
Fernando Marcelino
Primeira digestão de uma curta
viagem
Algumas pessoas se revoltariam com o
título deste texto. A primeira reação pública à ideia de retomar o debate sobre
o socialismo chinês é, obviamente, uma risada sarcástica. Socialismo Chinês?
Você não pode estar falando sério! A China não é aquele país que representa
justamente o fracasso do socialismo e a adesão a um caminho de retorno total ao
capitalismo, ainda para piorar sem democracia?
Pelo que vejo, o consenso político
dominante é: diga o que quiser, desde que não se questione a verdade “óbvia”
sobre a reconversão total da China ao capitalismo. Falar em “socialismo chinês”
é uma verdadeira heresia. Pelo menos na mídia internacional este é o consenso
geral. A China liderada pelo Partido Comunista seria uma mistura de
“totalitarismo” com “capitalismo selvagem” baseado em mão-de-obra escrava. Para
superar esta situação catastrófica, seria preciso suspender as violações de
direitos humanos, implantar a democracia liberal e derrubar o partido comunista
do poder. Dessa forma é considerado normal todo o bombardeio midiático do
imperialismo ocidental que procura impor à China a mesma “democracia” que
conseguiram exportar para a URSS.
A difusão destes mitos e distorções
que a mídia ocidental trata a realidade chinesa não coopera em nada para
superar o obscurantismo. O problema é que esta situação atinge, inclusive,
setores da esquerda. Além de não serem capazes de tirar lições sobre o que
ocorre nesse país, partes da esquerda também dizem aos quatro ventos que
socialismo teria fracassado e que o governo chinês liderado pelo Partido
Comunista aderiu completamente ao capitalismo. O simplismo domina. O Muro da
China teria caído assim como o Muro de Berlin. Alguns explicam isso até como
uma consequência lógica do sentido da história: com o fim da URSS, o
“socialismo real” teria entrado numa crise irreversível que naturalmente
transformaria a China (assim como Cuba, Coréia do Norte, Vietnã, etc.) em
capitalismos reconvertidos[1]. Se há um consenso dentro da esquerda, é que,
para ressuscitar um projeto político radical, devemos deixar para trás o legado
da revolução chinesa e considerar seu regime atual como um obstáculo na
realização do socialismo, devido o caminho sem volta rumo ao capitalismo
selvagem que tomou a China com as reformas de Deng Xiaoping. É comum se
apresentar factóides que explicitariam a “óbvia” reconversão ao capitalismo:
existe trabalho assalariado, milhares de chineses passam fome, existem
desigualdades, as empresas estrangeiras têm enormes lucros, existem
capitalistas no partido etc. Dessa forma, o debate sobre o “socialismo chinês”
é evitado, dado a obviedade que o capitalismo já teria sido restaurado na China
pela direção do Partido Comunista – que teria passado a dirigir um Estado burguês
sob o regime de um ditadura contra-revolucionária.
As interpretações sobre quem seria
responsável por essa “traição degenerada” são diversas. Alguns atacam a
burocracia do PC. Outros chegam a acusar Mao Zedong que teria estimulado a
“reconversão capitalista” pela equivocada aliança com os camponeses na
Revolução de 1949. Entretanto, o mais normal é considerar que os culpados são
os revisionistas chineses liderados por Deng Xiaoping. A aproximação com os
Estados Unidos, visando atrair mais capital para as recém criadas “Zonas
Econômicas Especiais”, onde empresas estrangeiras podiam se instalar em
parceria com empresas chinesas, seria o sinal da capitulação chinesa. Dessa
forma, costuma-se sugerir que o “socialismo de mercado” inaugurado em 1978 por
Deng não passa de um neologismo chinês para disfarçar a sua gradativa transição
ao capitalismo global. Como resultado desta façanha, supõe-se que as reformas
de mercado na China não levaram à renovação socialista, mas à completa
restauração capitalista. Os comunistas chineses teriam deixado de ser
comunistas, por mais que tenham mantido a “ditadura de partido único”. Os
comunistas chineses teriam cedido ao capitalismo, mas querendo ficar no poder,
não cederam à democracia-liberal, seu principal erro, conforme os “analistas”
da esquerda.
Mesmo com estas opiniões cabais, a
China ainda parece um mistério, algo exótico e de outro planeta. Talvez seja
porque estas interpretações sejam baseadas mais em rótulos e preconceitos e
menos em conhecimento. É com tristeza que se constata esta postura insolente e
pretensiosa de setores da esquerda que desejam reprovar o socialismo chinês e
um partido comunista de dezenas de milhares de militantes, protagonistas de uma
grande revolução nacional e social que está transformando radicalmente a
geografia econômica e política mundial. Mais perturbadora ainda é a leviandade
com que a China é tratada por gente que não deveria se orientar pelas
informações erradas da mídia internacional e nem pelos preconceitos liberais
relativos às experiências contraditórias de socialismo real.
É moda dizer que o “socialismo de
mercado” represente, na verdade, um ingresso descarado ao capitalismo. Retomar
a propriedade privada e o mercado como instrumento de desenvolvimento das
forças produtivas seria uma maneira sofisticada de “trair” o socialismo. Não
haveria qualquer possibilidade de combinar a propriedade privada com a
propriedade estatal e cooperativa na construção do socialismo. O mais
complicado da ideia de um “capitalismo reconvertido” na China é explicar porque
lá existe um capitalismo diferente de todos os outros, com a direção do Estado
pelo Partido Comunista e a predominância dos setores estatal e cooperativo na
economia. Mesmo que a propriedade privada – nacional e estrangeira – tenham se
expandido bastante nas últimas décadas, não é ela que explica o crescimento a
taxas médias de 8-10% ao ano, crescente e rápido crescimento industrial e
agrícola, estabilidade monetária, altas taxas de emprego, formação de um
gigantesco mercado interno de massas, elevação constante da produtividade,
intenso processo de inovação científica e tecnológica além de outros
indicadores que inexistentes em outros capitalismos. Talvez porque o segredo do
“modelo chinês” não seja ter se reconvertido ao capitalismo, mas o poder
político do Partido Comunista estar assentado numa economia socialista de
mercado, conformada por milhões de empresas de propriedade pública, em especial
as estatais controladas por Beijing.
Alguém poderia dizer que adotar a
propriedade estatal para salvar a propriedade privada não é socialismo, vide a
crise internacional de 2008 quando centenas de bancos foram “nacionalizados”
para não quebrarem. Mas é exatamente isso que os chineses enfatizam: a
existência de formas estatais e públicas de propriedade só pode ser considerada
“socialista” dependendo do caráter do poder político, e se as formas
socializadas de propriedade são utilizadas em benefícios dos trabalhadores e
das camadas populares.
O socialismo é a primeira fase do
comunismo e, na visão dos chineses, a China ainda se encontra na “primeira fase
de construção socialista”, onde é obrigada a utilizar diversas formas de
propriedade, inclusive capitalistas, para desenvolver as forças produtivas –
isto é, a capacidade de produzir bens que atendam às necessidades sociais. Os
chineses garantem que a China é um país socialista com uma economia de mercado,
na qual cooperam e disputam múltiplas formas de propriedade, sociais e
privadas. As empresas estatais desempenham um papel central na orientação macroeconômica
e na competição microeconômica. Isso sem medo de enfrentar a concorrência e os
problemas próprios do modo de produção capitalista. E a direção política
socialista, segundo os chineses, é garantida pela liderança do Partido
Comunista sobre o Estado, que orienta e corrige os desvios e o caos do mercado,
no sentido de redistribuir a renda e melhorar o padrão de vida de todo o povo.
Desde a chegada dos comunistas ao
poder em 1949, diversas tentativas de edificar o socialismo foram
experimentadas, dentre elas a estatização e a coletivização generalizada. Ao
final da “Revolução Cultural”, na década de 1970, os chineses chegaram à
conclusão de que uma economia de mercado socialista seria um caminho melhor a
seguir do que a manutenção de um socialismo pobre. Nesta nova fase, que deveria
durar entre 50 e 100 anos, seria preciso edificar uma economia de mercado sob
orientação socialista, com a utilização do mercado – como forma de regular a
escassez e alocar recursos – e de múltiplas formas de propriedade, nucleada
pela propriedade estatal ou coletiva durante a complexa transição de modo de
produção. Se a China fosse capitalista, provavelmente a maioria das grandes
estatais teria sido privatizada e a redistribuição da renda praticamente
inexistiria. Mas não é o caso. As estatais continuam como o principal
instrumento de orientação do mercado e a distribuição da renda acompanha o
crescimento econômico, aumentando gradualmente o padrão de vida do conjunto de
sua população.
É verdade que os comunistas
chineses não conseguem explicar muito bem como é a convivência entre socialismo
e economia de mercado, como seria a transição para a “segunda fase de
construção socialista” e nem os perigos de uma experiência desta envergadura e
natureza. Mas estes aspectos contraditórios não devem levar aos socialistas ao
ceticismo niilista a respeito da China. Antes de apontar o dedo contra o
socialismo chinês é preciso, com muito cuidado, levar em conta as contradições
e dificuldades reais que surgem da teoria e da prática do desenvolvimento das
forças produtivas no socialismo. É claro que isso não nos faz fechar os olhos
para as contradições existentes, afinal não estamos no céu, mas é preciso levar
em conta as lições e os percalços do socialismo chinês.
É hora de, no interior da esquerda,
desenvolver-se um debate sobre a realidade e o papel internacional da República
Popular da China, com espírito crítico e sem preconceitos. É preciso aprender
com seus erros e acertos. O socialismo de mercado ainda é um experimento em
aberto e merece atenção. Uma atitude obscurantista em relação à experiência
chinesa é um obstáculo na construção do socialismo no século XXI, onde quer que
seja.
[1] Esta é uma formidável adesão
(talvez inconsciente) da tese do “fim da história” de Francis Fukuyama. Ele
dizia que a história teria chegado ao seu clímax com o capitalismo democrático.
Esta seria a forma final da liberdade, o horizonte ontológico último da
humanidade. Esta visão se alimentou pela queda do bloco soviético, o que trouxe
a ideia de que o fim da historia significaria o fim do socialismo. O que
sobraria é o “desejo de democracia”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário