Laércio Portela
A marcha lenta mas consistente rumo à tolerância e ao respeito às diferenças – com a mudança progressiva das mentalidades e da legislação – ou um caminho de avanços e recuos que, na prática, tem aprofundado o preconceito e a desigualdade entre os brasileiros? Para onde caminha o sentido de cidadania no nosso país? Fazer essas perguntas é mais fácil do que respondê-las.
O exercício, porém, pode nos ajudar a encarar o problema de frente. Sem as máscaras que as propagandas de todo tipo (política, governamental, de consumo, religiosa) e o entretenimento nos impõem. Sem nos deixar levar também por aqueles que interditam o debate. Para quem o silêncio é a forma mais sofisticada de defender privilégios.
Pequenas pílulas de reflexão podem ser encontradas no livro Cidadania, um Projeto em Construção – Minorias, Justiça e Direitos, publicado pelo selo Claro Enigma, do grupo editorial Companhia das Letras. Organizada pelos cientistas sociais André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz, a publicação traz 11 artigos sobre justiça, religião, racismo, segurança pública, política de gênero, homossexualidade e povos tradicionais da Amazônia, entre outros temas.
A gênese da ideia moderna de cidadania, nos explicam os organizadores do livro, surgiu com a noção de “direitos dos homens”. Nasce com o conceito de jusnaturalismo. “O Estado de Natureza aparece então como condição da liberdade individual dos homens; uma condição de certa maneira precedente à formação da comunidade política”.
Ser livre, ter direito à liberdade, não dependia mais do fato de pertencer a uma determinada casta ou comunidade. Pelo contrário, essa condição a precedia e até condicionava. A modernidade é fundada na ideia de indivíduo como sujeito jurídico e existencial cuja identidade se sobrepõe ao coletivo.
Essa concepção nasceu no século XVII, mas se aprofundou no século XVIII com a Revolução Francesa: “… os homens nascem e permanecem livres e iguais em seus direitos”.
Da igualdade nos direitos naturais derivava-se não só a liberdade, mas também a possibilidade de questionar a desigualdade, seja entre indivíduos seja entre grupos, de definir a organização social e de resistir à arbitrariedade. Se a individualidade ganha um caráter natural, toda desigualdade passa a ser entendida como resultado do arranjo social, portanto, passível de contestação e sujeita à intervenção.
Dito assim diretamente, e em tão poucos parágrafos, talvez os conceitos de indivíduo e de direito à resistência - e porque não dizer direito à revolução -pareçam coisa menor ou até óbvias. Não são. Estavam em xeque no século XVIII como estão agora. Claro que em outros patamares. A opressão às vezes se materializa até na nossa incapacidade de refletir sobre a realidade, naturalizando e justificando a vilania. O mundo certamente não é plano.
T.H. Marshall aponta três conjuntos específicos de direitos no seu clássico Cidadania, classe social e status (Zahar, 1967), citado pela professora da USP, Maria Tereza Aina Sadek, no artigo Justiça e Direitos: a construção da igualdade. São eles: os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais.
Os direitos civis significam que, independentemente das desigualdades econômicas e do lugar social dos indivíduos, todos têm igual liberdade de ir e vir, igual direito à segurança, à livre associação, à liberdade de religião, direito de propriedade, de ser julgado com o devido processo legal.
Os direitos políticos implicam em aceitar que todos são iguais e, portanto, devem ter o mesmo direito à participação no governo da sociedade e na escolha dos governantes e podem postular a posição de representantes políticos do povo. Os direitos sociais representam o entendimento de um padrão mínimo de igualdade entre as pessoas no uso dos bens coletivos, como a educação, a saúde e a moradia.
Depois da Segunda Guerra Mundial ficou claro para muita gente que a enorme desigualdade social e econômica entre os indivíduos e nações tinha potencial de abalar o conceito de igualdade fundamentado nas leis e, por conseguinte, de comprometer a paz política e social. Outras correntes de pensamento colocaram em xeque a capacidade do livre mercado de por si só reduzir as desigualdades. Ao contrário, viam na mão invisível do mercado um ponto de agravamento dessa condição.
À noção de lei para todos é incorporada a ideia de que os desiguais devem ser tratados de forma desigual. A ortodoxia liberal é superada por uma agenda de políticas afirmativas que tem por finalidade pagar dívidas históricas com grupos sociais específicos. Essas políticas partem do pressuposto de que cabe ao Poder Público agir diretamente sobre a realidade social para reduzir a desigualdade.
Se, por um lado, os direitos civis e políticos se beneficiam de um Estado não invasivo, que não cerceie os espaços de atuação individual; os direitos sociais requerem um Estado atuante, que reconheça a exclusão e promova políticas públicas distributivas e garantidoras do acesso aos bens coletivos. Hoje, a noção de direitos vai se aprofundando e passa do olhar sobre o indivíduo para o olhar também sobre grupos vulneráveis, minorias.
Os artigos de Cidadania, um Projeto em Construção exploram o olhar crítico sobre a realidade brasileira: o declínio das manifestações religiosas afrodescendentes, o racismo privado escondido sob o manto da democracia racial; o entendimento de que segurança pública não é simplesmente caso de polícia; as relações conflitantes entre o movimento LGBT e o Estado; e o avanço do mundo do capital sobre as populações tradicionais da Amazônia.
A agenda da cidadania é, por sua natureza de desafiar poderes constituídos, uma agenda de tensões, mas também de diálogo e convencimento. A abertura ao debate de ideias oxigena e fortalece suas posições.
Caótico
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