Valéria Nader
Medidas governamentais e noticiários dos últimos dias têm deixado de olhos arregalados uma boa porção daqueles que acompanham e creem no ‘neodesenvolvimentismo’ do governo atual, assim como no progressismo da mídia e na sua defesa diuturna da pluralidade e da liberdade de expressão. Neste sentido, dentre tantos acontecimentos e respectivas versões que têm dominado a pauta de governo e imprensa, dois deles podem ser tomados como ilustrativos: o último aumento da taxa de juros pelo Banco Central e mais um assassinato dentre os povos indígenas.
Voltando o olhar primeiramente para o contexto da nossa imprensa – afinal, quase onipresente na contemporaneidade em ditar as regras de corpos e mentes –, tais acontecimentos foram objeto de extensas reportagens pelos maiores veículos de comunicação nos dias que passaram. O tom maior foi de indisfarçado triunfalismo, no que diz respeito à decisão do Banco Central em elevar os juros para combater a inflação, afinal, uma prova de um governo que estaria tomando ‘juízo’. E quanto aos índios, escancarou-se, em linhas e entrelinhas, a visão dos povos originários como bárbaros invasores.
Grande mídia, Folha de S. Paulo e os juros
Entre estes veículos, os enunciados e análises da Folha de S. Paulo podem ser tomados como termômetro das falas e visões da quase maioria dos grandes órgãos de comunicação, para evitar delongas e a fim de não se cometer alguma injustiça. Afinal, ao contrário dessa maioria de veículos, que escancara seu conservadorismo, trata-se a Folha do órgão de mídia que, não raras vezes, se compraz em sua auto-identificação como progressista. Um coro que tem como portavozes, inclusive, colaboradores e colunistas já escalados para, vez ou outra, verbalizar e lembrar aos leitores das ações do diário em prol da 'democratização' da informação.
No que diz respeito à nova taxa de juros, nas suas edições a partir de quarta-feira, 29 de maio, o diário trouxe extensa lista de matérias, editoriais e reportagens. Mesmo para quem já há bom tempo não mais se ilude com o tal ‘progressismo’ da Folha, chega a surpreender o tom monocórdio de tantas reportagens. Um legítimo ‘samba de uma nota só’, verdadeiro tratado em defesa da agenda conservadora, aquela que dita as regras do mercado financeiro, que tem por trás os grandes grupos econômicos, que obviamente lucram com a subida da taxa de juros em função de suas bilionárias aplicações nos títulos da dívida pública.
Luiz Carlos Mendonça de Barros, economista famoso e colunista do jornal, foi dos únicos estudiosos com espaço profuso a emitir sua opinião. No texto chamado ‘Um dia de cão na economia’, de sexta-feira, 31 de maio, aliviou-se com a ideia de que “um novo Banco Central emergiu das cinzas da instituição que comandou com mão de ferro o sistema de metas de inflação nos oito anos do governo Lula”. E comemorou sem volteios o fato de que “os mercados financeiros vão reagir com força à decisão tomada pelo Copom sobre os juros”. Para Mendonça, a presidente Dilma, quiçá, e finalmente, teria entendido que o aumento de juros é a melhor forma de controlar a inflação e promover o crescimento.
Segundo, ainda, o Editorial de sábado, 1 de junho, ‘Alta de credibilidade’, “a decisão do BC, apesar de amarga, vem em boa hora. Talvez consiga devolver alguma firmeza à gestão da economia, perdida em devaneios intervencionistas”. Pregando ainda uma ‘política fiscal mais responsável’ no lugar da ‘frouxidão orçamentária’, conclui que a nova decisão, à medida que incidir na queda da inflação, deve ajudar a presidente na corrida eleitoral do próximo ano. Ideias reforçadas no Editorial de domingo, 2 de junho, o qual, sob o título ‘Um Plano para Dilma’, faz uma série de sugestões, sempre de cunho liberal e privatizante, para o restante de seu mandato.
Engrossando, finalmente, este coro esteve ninguém menos que o ex-presidente do Banco Central sob Lula, o também colunista da Folha Henrique Meirelles. Citando o polêmico e emblemático caso chinês, Meirelles tem uma pista para a solução dos graves problemas do país: “medidas têm sido tomadas para transferir poder de decisão à iniciativa privada, eliminando controles e burocracia para facilitar o desenvolvimento dos negócios. Se exitosas, transformarão a China em competidor ainda mais forte e inovador, com maior equilíbrio no investimento e no consumo”.
E onde estão as vozes dissonantes de reconhecidos estudiosos, não necessariamente identificados à direita ou à esquerda do espectro político, e que têm visão diametralmente oposta ou, ao menos, conflitante com a ideia convencional de que a subida da taxa de juros é a solução para a inflação que se diz estar a galope no país? Aqueles que, por exemplo, ressaltam a influência da especulação nas bolsas de commodities agrícolas na atual oferta e preços de produtos comercializados internamente? E outros mais que destacam que, mediante a queda das exportações de commodities agrícolas e, por conseguinte, o menor saldo da balança comercial, o aumento da taxa de juros seria a forma de atrair capitais financeiros e especulativos, com o intuito de fechar o balanço de pagamentos? Provavelmente, estão em algum lugar bem distante da rua Barão de Limeira.
A Folha de S. Paulo e os índios
Não fosse pouco um culto escancarado da ortodoxia por aqueles que se dizem arautos da liberdade de expressão, mais atenção chama ainda um enviesamento jornalístico a cada dia mais próximo do obscurantismo na área de direitos humanos.
Após mais um confronto entre policiais e indígenas, envolvendo índios terenas no Mato Grosso do Sul, outro índio foi morto pela polícia. Na sexta-feira, 31 de maio, a chamada para matéria ‘Índio morre em confronto com a polícia’ é no mínimo muito ambígua, uma vez que pode sugerir uma ação mais deliberada dos indígenas – geralmente armados de arcos, flechas, lanças e facas – em seu confronto com a polícia – munida de armas de fogo de alto calibre. No sábado, 1 de junho, nova chamada induz o leitor a enxergar índios como bárbaros e baderneiros, ao dizer que ‘Índios invadem novamente fazenda em MS’. Afinal, estão entrando, e não invadindo, em áreas que lhes pertencem, de direito ancestral, e que somente não ocupam até hoje em função de uma homologação de terras indígenas que nunca se completa.
E aqui nem é preciso ir tão longe na denúncia da estreiteza de visão, desrespeito e afronta aos direitos dos povos originários, reconhecidos pela Constituição, mas secularmente negados pelos governantes de turno. É um dos próprios colunistas do jornal, daqueles poucos que têm independência opinativa em nossa grande mídia, que denuncia, em sua coluna de domingo, 2 de junho, a desconsideração para com estes povos. “A facilidade com que ainda se massacram os direitos e as vidas dos índios é uma homenagem que o Brasil presta ao seu passado genocida (...) As liminares e outros volteios judiciais que facilitam a usurpação de terras reconhecidamente indígenas, como se dá agora com a área Buriti, em Mato Grosso do Sul, são uma via direta para a miséria e a morte das populações indígenas”, declara Jânio de Freitas.
E o governo, por onde anda?
É de se pensar, nesta altura dos acontecimentos, onde está o governo em meio a tal conjuntura.
O lugar em que se coloca não é nada mais admirável que aquele ocupado pela mídia, pelo menos para quem se propõe a enxergar a realidade menos desavisadamente, ou com possibilidades de despir-se de noções falseadoras.
No que se refere à temática econômica, o governo Dilma - e, anteriormente, o próprio governo Lula - tem sido acusado recorrentemente, pela imprensa e analistas conservadores, de intervencionista, dirigista e outros termos correlatos. Isso de forma a associá-lo a um ente distante dos ideais hipoteticamente criativos e libertadores decorrentes de um funcionamento mais livre das forças de mercado.
A ideia do intervencionismo é, por um lado, evitada pelos próprios governistas, de modo a não se indispor com sua base de apoio mais conservadora; mas, por outro lado, acalentada em meio à noção de neodesenvolvimentismo, sob a qual se tenta erigir a imagem de um governo progressista, que tem papel ativo em incluir os pobres ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento. Qual é, portanto, o teor de verdade dessa ideia de intervencionismo do governo Dilma?
Aqui são novamente os fatos que podem sugerir a melhor resposta. É inegável a maior atenção ao social, ainda que em sua maior parte focada em uma vertente assistencialista, assim como algum grau de ‘provocação’ (e não enfrentamento) ao capital financeiro, promovidos pelos presidentes petistas. Estão aí o Bolsa Família, os reajustes do salário mínimo, taxações impostas sobre a entrada do capital externo especulativo, dentre outros, para comprovar. No entanto, também estão presentes, de modo cabal, e desde o mandato lulista, a privatização das infraestruturas econômicas do país – mais sorrateira e disfarçadamente sob Lula e, agora, de forma mais escancarada. Portos, ferrovias, aeroportos, petróleo, energia e também o que restou das telecomunicações estão, a cada dia, mais distantes não somente das mãos do governo, mas também do controle público, em uma nação em que as agências reguladoras são, comprovadamente, bem mais articuladoras dos interesses econômicos do que dos direitos dos cidadãos. Os maiores beneficiários, ao final, e como a história do país tem confirmado, são os grandes grupos econômicos e privados externos, a partir da posição subalterna e associada do Estado nacional e da burguesia interna.
E a lista de submissão aos poderosos lobbies econômicos não para por aí. A desoneração da folha de pagamento de vários setores da economia interna, assim como uma série de medidas que vêm sendo levadas a cabo sob o rolo compressor da bancada ruralista, implicam no baixo grau de independência e autonomia na tomada de decisões internas de política econômica.
O intervencionismo, ou dirigismo, tão aventados por aí, não passam, assim, de mero jogo de palavras. Palavras, no entanto, com forte poder de persuasão sobre um governo que se perde em meio a uma extensa base de apoio e a poderosos lobbies econômicos. A atual subida da taxa de juros é acontecimento bastante sintomático desse quadro, vez que era a própria presidente Dilma que, até pouquíssimo tempo atrás, negava capitular frente às pressões para a sua elevação.
O chamado ‘neodesenvolvimentismo’ pode, portanto, ser tomado como uma ficção. Face a uma conjuntura internacional fortemente financeirizada e oligopolizada, com a crescente independentização do movimento internacional de capitais, resta exígua margem de manobra para a condução autônoma de políticas econômicas internas. Conjuntura que, obviamente, é agudizada pela dependência e subserviência de governos amparados em extensas e heterogêneas alianças políticas, reféns dessas alianças e, portanto, pouco propensos a promoverem confrontos mais pesados.
E resta uma palavra sobre a questão indígena, no caso, o assassinato de mais um índio no Mato Grosso do Sul, acima referido. Aqui, onde está o governo Dilma?
Certamente, este é tema para bem mais do que mil palavras, cabíveis em novo e profundo artigo. No entanto, forçoso é dizer que o atual mandato petista tem se mostrado, no mínimo, bem menos aberto ao diálogo com os movimentos e demandas sociais em geral do que o anterior. E, no caso em questão, são novamente os fatos que podem falar por si mesmos.
Morta a liderança indígena, a primeira providência do Planalto foi a convocação de uma reunião. Os convidados iniciais foram os interlocutores da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), ligados ao Ministério da Agricultura, sabidamente influenciado por representantes da bancada ruralista. A Funai, que tem visto seu papel na demarcação de terras indígenas cada vez mais reprimido, não foi convocada.
Em tempo
Talvez fosse interessante ao governo começar a avaliar uma troca de termos para se autodefinir. Neoconsevadorismo há tempos poderia lhe cair melhor que neodesenvolvimentismo.
Correio da Cidadania
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