1 – Existe consenso nas manifestações
Todo mundo que está na rua porque quer condições de vida melhores para o maior número possível de brasileiros está do mesmo lado. Podem discordar no caminho a ser percorrido, nos princípios que orientam nesse momento e até nas prioridades, mas estão do mesmo lado. E esse lado é fácil de definir: é o oposto do daqueles grupos que se beneficiaram – e muito – com o modo como as estruturas e a relação entre o setor público e privado funcionaram até hoje.
Banqueiros, empresas do transporte, construtoras (de estádios, de Belos Montes, de rodovias etc.), grandes ruralistas, os poucos donos dos meios de comunicação nacionais – só pra citar alguns – são exemplos de grupos que se fortaleceram pressionando, bancando ou corrompendo governos e políticos, que perderam a capacidade de ouvir a voz do povo. Parlamentares que tomaram para si e para seus interesses a máquina pública, parindo a insatisfação com a institucionalidade que tomou as ruas.
Na outra ponta, estão do mesmo lado os que querem saúde e educação públicas e de qualidade. Querem transporte barato ou gratuito de qualidade e que os trabalhadores possam ir e vir sem serem massacrados na condução. Querem menos desigualdade social e preferem que o Brasil conquiste bem estar pra mais gente do que emplaque mais um nome na lista dos 10 mais bilionários do mundo. Querem um país livre de opressão pela cor da pele, pelo gênero, pela orientação sexual de cada um. Querem um país democrático e com direitos sociais garantidos, e que os impostos pagos sejam revertidos nisso. Querem que os governantes ouçam a população e priorizem essas demandas, antes de mais nada.
2 - As armadilhas de quem não quer perder privilégios
Todo momento de transformação envolve riscos. Se por um lado, muitas vozes vão às ruas para gritar – à sua maneira – por um futuro melhor e por transformações sociais há muito necessárias, quem acumulou privilégios até aqui não vai abrir mão deles sem resistir. E é aí que surgem as armadilhas.
Esses grupos não vão à manifestação com bandeira ou camisas com dizeres “lucrei muito até aqui” ou “meu partido é do meu lucro às suas custas”. Nem vão aparecer na televisão defendendo publicamente que nada mude. Basta pensar que em toda batalha contra o aumento do busão em São Paulo não houve manifestação ou marcha das transportadoras, nem se viu proprietário de empresa do transporte no programa da Fátima Bernardes debatendo com a liderança do Movimento Passe Livre, muito menos gente com cartaz dizendo “contra corrupção até onde ela não afeta o meu lucro”.
Esses grupos não mostram sua cara, nem verbalizam seu discurso. Eles se camuflam e se naturalizam, defendem seus interesses a portas fechadas e se apoiam na imprensa e nos “formadores de opinião” (tipo alguns colunistas da Veja e dos principais jornais, não sei se precisa citar nomes). Infiltram, assim, seus próprios e escusos interesses na cabeça do maior número possível de pessoas, travestidos de fatos naturais ou com cara de interesses coletivos. E ninguém está totalmente imune a isso.
Furtam as reivindicações legítimas da população para manipulá-las em seu favor. E estão dispostos a baixarias que chocariam até Dercy Gonçalves. Eles precisam permanecer ocultos e jogam com a desinformação. E, claro, são sim bastante perigosos. Foram esses grupos que tentaram taxar o MPL de vândalos que precisavam ser repelidos com batalhão especial da polícia militar. Não pegou. Partiram pra a tentativa de dividir, enfraquecer e deturpar o sentido das manifestações.
3 - A corrupção e a PEC 37
A corrupção é um problema nacional histórico, grave e um mal a ser combatido com urgência. Isso é consenso. Acho que nem quem corrompe e é corrompido teria coragem de verbalizar o contrário. Justamente por sua importância, é uma reivindicação, muitas vezes, surrupiada pelos ‘grupos privilegiados’.
A ideia desses grupos é bater nessa tecla como lema, sem aprofundar ou debater medidas que enfrentem de fato a corrupção. Assim, tentam fazer com que as manifestações ecoem como as misses universo que pedem a paz mundial – cheias de boas intenções, mas sem força de mudanças reais.
Não querem debater reforma política, financiamento público de campanha, transparência e mecanismos que permitam à população maior fiscalização sobre as políticas públicas.
Em tempo, já que nesse tema a PEC 37 virou bandeira, acho que não é preciso mais se preocupar. Ela saiu da agenda e dificilmente voltará. E se voltar, dificilmente passará. Se a tarifa baixou e o pedágio não aumentou, dificilmente se compraria uma briga com as reivindicações das ruas justamente nesse ponto. Mas a PEC não passar não resolve a corrupção. Na prática, tudo continua como antes e antes não estava bom. Por isso é preciso mostrar que podemos ir além e pensar sobre os outros temas que são caros ao enfrentamento deste mal.
4 – Apartidário sim, mas sem violência
Outro tema que serve fácil aos interesses dos grupos privilegiados é o sentimento antipartido que pegou boa parte dos brasileiros. Sentimento muito legítimo, diga-se de passagem, já que há muito as políticas públicas não respondem às transformações sociais que o país pede. Por isso tudo e muito mais, as vozes que vão pras ruas reivindicam um movimento apartidário, horizontal, do povo, que não é liderado ou usado de modo oportunista por nenhuma sigla. Muito bem.
Os grupos privilegiados, antes, pregavam que a “política é suja”, que “político é tudo corrupto” e que “nada muda nesse país”, tentando fazer com que o sentimento de frustração com as políticas públicas se traduzisse em desinteresse e distância dos poderes institucionais. Isso deixava o caminho – além do ouvido e do bolso dos governantes – livre para que esses poucos grupos negociassem seus interesses a portas fechadas, como gostam.
Mas as manifestações levaram o povo pra rua e o povo na rua mostrou que muita coisa muda, sim, com pressão popular. Mostrou que a política é, sim, interesse de todo mundo. E fez com que as pessoas debatessem política como há muito não se via.
Com o sinal de alerta ligado, a tática mudou. A ideia agora é traduzir a frustração com partidos e políticas em intolerância, violência e divisão. É fazer com que um pequeno grupo agrida quem usa uma camisa de partido e muitas pessoas não reajam. É tentar calar os militantes de partidos – ainda que poucos – que ainda lutam por transformações sociais. E tentar roubar a energia popular pra manipular o resultado eleitoral do ano que vem.
As manifestações são, sim, apartidárias e qualquer partido que tente roubar a voz delas pra si próprio deve ser combatido, inclusive o partido da grande imprensa. Mas isso não pode se transformar em violência e fazer com que manifestantes que deram uma lição na PM ao bradar “sem violência” se esqueçam das palavras que disseram alguns segundos antes.
Grupos que incitam a violência não contribuem com as manifestações e contrariam reivindicações que aparecem como majoritárias, como as por mais direitos sociais e mais mecanismos democráticos.
5 – As ferramentas: informação, diálogo, reflexão e propostas
As vozes insatisfeitas tomaram as ruas e as pessoas querem mudanças. As mudanças terão que vir. Mas os seus rumos serão arduamente disputados, e de maneira suja por parte de quem se vê ameaçado por elas. Por isso o momento requer tranquilidade e atenção. Que tenhamos estômago pra digerir os ataques que vieram e virão, sem perder o discernimento. E que tenhamos a humildade de rever posições, de refletir e não permitir que as vozes de outros sejam arrotadas por nossas bocas.
Nessa hora, informação é poder. Ler, pesquisar na internet, consultar um amigo, produzir um texto, um vídeo, dialogar, reunir um grupo de amigos pra refletir, saber ouvir e ousar falar. Essas serão ferramentas importantes para evitar o roubo de reivindicações, que são de muitos, por aqueles poucos.
Elaborar e aprofundar mais ainda. Não podemos parar no slogan. Se somos contra a corrupção, vamos buscar forma de enfrentá-la. Se é preciso mais saúde e educação, vamos pensar em como melhorar o SUS e as escolas, ouvir quem atua nesta área todos os dias e quem é usuário desses sistemas, formulando conjuntamente.
É hora de pensar em como concretizar as reivindicações que queremos. De conhecer mecanismos de participação popular nas políticas públicas e saber usá-los. Dialogar com organizações que acumulam propostas em determinadas áreas – como o MPL faz nos transportes, outros tantos fazem na saúde, educação, moradia, entre outras áreas. Saber quais propostas já foram levantadas e que ajudariam nesse sentido, como a de que 10% do PIB brasileiro seja revertido em investimentos na educação.
E, claro, além de conhecer o que já existe, elaborar novas propostas, novas formaa de participação e materialização dos muitos anseios que os governantes terão de escutar, ainda que na marra. Débora Prado Correio da Cidadania
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