Com raízes nas ditaduras brasileiras, a Polícia Militar mantém uma estrutura autoritária e violenta. Em vez de proteger os cidadãos, serve aos aparatos do Estado
Nashla Dahás
Nascida na Ucrânia durante a fuga de sua família para a América, Clarice Lispector chegou ao Brasil nos anos 20 e aqui viu sua mãe definhar lentamente em razão de uma sífilis adquirida após sofrer um estupro coletivo por soldados russos. Em 1962, ela escreve uma crônica “baseada em fatos reais” sobre um homem, de apelido Mineirinho, “um facínora”, que morreu ao levar 13 tiros, quando bastava apenas um. No primeiro, um “alívio de segurança”; o “terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”. Em entrevista posterior, e muito próxima de sua morte, ela conta que este foi, talvez, o texto mais importante, porque no décimo terceiro tiro ela mesma havia sido assassinada de tanta revolta, era capaz de sentir a agonia do morto.
Em 1964, o golpe de Estado desferido pelos militares com amplo apoio e cooperação de elites civis – atualizando a aliança civil-militar que nos anos 30 havia levado Getúlio Vargas ao poder - instaurou uma perversa ditadura tanto mais potente, quanto mais institucionalizada tornava-se a fusão entre justiça civil e militar, em termos de ideais e de procedimentos práticos. A repressão, como nos regimes nazista e fascista na Alemanha e na Itália, foi, aos poucos, vestindo máscaras de legalidade e alterando gradualmente os seus aspectos relativos à liberdade individual e política; até que sete anos depois passasse, como se sabe hoje, à matança sistemática dos militantes de esquerda de menor visibilidade pública.
Em outra frente, redefinia-se a cidadania através da criminalização/repressão de determinados comportamentos destacando-se os chamados crimes contra a autoridade e de “não conformismo sociopolítico”. Como num quartel, a disciplina, a hierarquia, e a correção exemplar foram pouco a pouco sendo aplicadas indiscriminadamente pelo Estado sobre a população. O historiador Carlos Fico lembra ainda que em 13 de março de 1967, Carlos Medeiros, ministro da Justiça do presidente general Castelo Branco, com a ajuda do chefe do gabinete militar Ernesto Geisel redigiram a Lei de Segurança Nacional legalizando a “Guerra interna” e permitindo que brasileiros civis fossem aleatoriamente acusados e torturados pelo crime de tentativa de subversão da ordem ditatorial estabelecida.
Em agosto de 2013, a divulgação ostensiva de vídeos na internet nos permitiu ver um grupo de policias espancando uma jovem, mesmo depois de conscientes de sua inteira incapacidade de defesa. É possível acreditar que os primeiros momentos da agressão possam ter ocorrido para imobilizá-la, mas todos os outros, todas as outras longas cenas de espancamento aconteceram por pura vontade de violentar uma mulher já indefesa.
Talvez valha o parêntesis de um amigo sobre a única diferença que passa pela cabeça do homem que bate, quando quem apanha é uma mulher e não outro homem: é que a vitória sobre ela é mais certa ainda e, portanto, a satisfação do agressor mais plena. Na última semana foi a vez dos professores em defesa de reformas no falido sistema de ensino do qual fazem parte, e antes deles os integrantes do Black Bloc, linha de frente civil no violento enfrentamento provocado pelas manifestações contra as instituições políticas. Antes deles, há pelo menos 25 anos, favelados, prostitutas, travestis, pobres, negros, indígenas, moradores de rua, entre muitos outros, tem conhecido de bem perto a mão forte do Estado. Como Clarice, todos nós, filhos da Constituição de 1988 e de seu Estado Democrático de Direito, todos nós morremos um pouco.
Este período de 25 anos corresponde um pouco mais ou pouco menos, ao tempo em que sociedade e Estado vem submetendo-se ao pacto selado em 88, cujo legado autoritário pode ser encontrado na estrutura jurídica, nas práticas políticas e na violência institucionalizada, com consequências em quase todas as esferas da vida social brasileira.
“Era uma espécie de triunfo, mas não isento de ambiguidades”. Clarice, novamente, falando de seu mundo interior, se refere à liberdade na qual se vê lançada sem mesmo saber utilizar. De certa forma, o fim do regime militar marca também uma vitória social em termos de liberdade, mas igualmente cheia de contradições, cujo resultado individual e coletivamente incidiu em décadas de silêncio. Negociada, a transição vendeu direitos individuais, políticos e sociais negados durante vinte anos - como o direito à greve, e à liberdade de imprensa, por exemplo - trouxe de volta os exilados políticos, e devolveu o governo aos civis. Em troca, alçou José Sarney à presidência, manteve a fiel Rede Globo de televisão como instituição privilegiada em suas relações com o Estado, não julgou nem puniu nenhum agente do Estado por perseguição, tortura, ou assassinato, e fechou os olhos para as condenações civis e militares proferidas no período anterior.
Após décadas de exercício de uma mentalidade autoritária no interior das Forças Armadas e no Judiciário, à base da ideologia de Segurança Nacional, nenhuma reforma foi feita nestes setores e muitos dos mesmos servidores se mantiveram em seus cargos, constituindo dia a dia o fracasso brasileiro em construir instituições genuinamente democráticas. Ou, diante da dificuldade de definir graus de democracia, a derrota de grande parte da população que continuou recebendo tratamento autoritário e discriminador por parte daqueles que servem à Justiça (judiciário, polícia, sistema prisional) e que, como na ditadura, continuaram agindo mais para a imposição de normas do que para a efetiva resolução de conflitos. Pode-se mesmo dizer que uma cultura institucional arbitrária e violenta tornou-se marca de grande parte da Polícia Militar que se comporta ainda hoje como um simples órgão de defesa da ordem constituída, e não da cidadania que nem mesmo puderam conhecer.
À parte da sociedade que viveu a ditadura restou uma liberdade tutelada e autocensurada, muitas vezes ressentida e sem voz; aos pobres, como de costume, uma liberdade cínica, espremida entre o controle repressivo e as formas de inserção social pela via do consumo. Às gerações nascidas a partir de 1985 foi negada oficialmente uma consciência histórica sobre o passado guerrilheiro e ditatorial, ao mesmo tempo em que, sem historicidade a que se apegar e mergulhadas em formas de comunicação impensáveis até bem pouco tempo, tiveram que encontrar sozinhas sentidos para a liberdade, assim como para a revolta. Fazer isso na era do “tecnoconsumo”, em que o amor pelo outro, pela causa, pela vida, foi sendo transformado no desejo compulsivo por mercadorias tanto “curtíveis”, quanto descartáveis, não parece nada fácil.
Sobre essa geração e seu modo de viver e de sentir, o escritor norte-americano Jonathan Franzien nota que “se uma pessoa dedica sua existência a ser curtível e passa a encarnar um personagem bacana qualquer para atingir tal fim, isso sugere que perdeu a esperança de ser amado por aquilo que realmente é. E, se tiver êxito na tentativa de manipular os outros para que seja curtido, será difícil que, em algum nível, não sinta verdadeiro desprezo por aqueles que caíram em seu embuste”. Enfim, uma sociedade incapaz de sentir amor é também uma sociedade incapaz de sentir ódio, e se isso chega bem próximo do avesso da natureza humana, só lhes/nos resta cinismo, apatia e, claro, silêncio e mais silêncio. Como num caso de amor, quando não há brigas por tanto tempo, e vinte e cinco anos são apenas o mínimo que podemos contar, é de se esperar que uma das partes, ao menos, esteja vivendo uma fantasia, ou que algumas realidades não estejam sendo verdadeiramente levadas em conta – parafraseando um dos romances do escritor chamado “Liberdade”.
Entre “elas” e coexistindo uma “visão condescendente da vida convencional, humana – casar, ter filhos e, finalmente, ser feliz”, fermentada desde o século XIX e que tanto asfixiava a alma de Clarice Lispector, e certo “não saber o que fazer de si mesmo”, de sua liberdade recém-adquirida e de quase insuportável tédio – que a escritora pôde antecipar como melancolia e angústia de gerações posteriores, mulheres atualmente chamam a si mesmas de vadias e vomitam toda a repressão engasgada em um radicalismo confuso, como só elas poderiam fazer. O dever de ser feliz não as convém, legitimidade e ética não bastam para uma existência cujo destino parece estar fora de controle, e à violência social paga-se com a autoviolentação do próprio corpo, da intimidade aberta e devassada nas ruas.
O austríaco Hans Gumbrecht em recente passagem pelo Brasil lembrou ainda dos “piercings, tatuagens, mutilação autoinfligida e, finalmente, ondas de suicídio; aqueles que são “suas próprias vítimas” quase sempre associam (desde que ainda possam falar) essas atividades com o forte desejo por testar a presença de seus corpos por meio da dor”. Elas, as novas vadias, ao que parece, buscam transformar a moral social ainda vigente da mulher-objeto-sexual, mulher-mera-reprodutora, mulher-esposa-submissa, mulher-independente-carente-vagabunda, conciliando o modo de viver que pode surgir dessa subversão com os acontecimentos mais contingentes do dia a dia. Desde o ônibus lotado até o assédio grosseiro nas ruas, a sádica violência policial, os esforços sobre humanos para alcançar bons salários, pen drives perdidos e vídeos íntimos divulgados na internet, o peso do papel familiar obrigatório e dos ideais de beleza.
Em cada pedaço dessa luta, encontra-se a construção lenta de individualidades capazes de lidar, em todos os ambientes – linguagem, trabalho, família, desejo -, com situações de anomia social, de perda de historicidade, e, sobretudo, de questionamento de todos os tipos de autoridade. Ainda assim, é de se perguntar pelos sentidos de uma atitude pública tão agressiva em relação ao próprio corpo. De que valerá tal rebeldia quando a moça de seios descobertos na praça pública estiver no metrô superlotado na Central do Brasil? Cansada, sufocada e esfregada, ela será uma mulher como as outras, desrespeitadas pela igualdade de direitos que a colocou ali, no mesmo vagão que qualquer homem que possa pagar os R$3,20 de passagem, e que não tenha o hábito de tratar com elegância uma donzela que vai às ruas seminua, com uma placa no peito: “Sou vadia com muito orgulho”.
Ao mesmo tempo, estudantes “sem ideologia”, sem partido, sem líderes, sem “política”, tal como havia nos anos 60, desencadearam protestos sem pauta definida, sem objetivo “prático” identificável, sem uma única questão a qual possam ser reduzidos ou a partir da qual possam ser explicados. Eles gostam do capitalismo, se servem igualmente da tecnologia, tanto para a organização de suas manifestações, quanto para o simples prazer de “curtir” ou de ser “curtido”. Possuem, em média, situação econômica acima da média, no Brasil que, segundo a mídia e o executivo, vai muito bem das pernas. Ou seja, não são político-partidários anticapitalistas, socialistas ou comunistas, não são pobres se insurgindo contra o Estado, não são minorias em busca de leis afirmativas; reconhecimento e diferença. Talvez, tenham o direito de haver nascido em tempos alheios ao mundo da política, do “novo homem”, e da revolução.
“Para alguém com a sua formação, tendo em vista aonde a revolução e a ideologia levaram, provavelmente não poderia ser diferente. A liberdade só pode mesmo vir de dentro. A ânsia por esse estado de graça é que é a sua fonte de energia”, diria um biógrafo de Clarice Lispector, sobre sua indignação “apolítica” com o conservadorismo social. Ela mesma acrescentaria que “nem todos são bastante fortes para suportar não ter ambiente próprio, nem amigos” reais – eu diria hoje-, “para carregar duas almas em um só peito”. À vida plácida e burguesa, pode, talvez, faltar uma metade “carismática e selvagem”, que ao encontrar identificação ampla e inesperada pelas ruas e pela internet torna-se cada vez mais disposta a violentar e a violentar-se, faminta de saber mais de si: “mais do que dos outros, estamos precisando de nós mesmos”.
É pela via da dor que a juventude do êxtase volta a ser protagonista da cena pública, não há alegria e risos genuínos entre vadias, black blocs ou professores, a felicidade se tornou mais profunda, como a de alguém que acaba de sair da prisão. Não por acaso, a ditadura, a tortura, a guerrilha e a Comissão da Verdade começam a fazer eco social, ao menos vinte anos após se constituírem como tema acadêmico relevante em toda a América Latina. Não parece fácil entender ou explicar que o Estado brasileiro tenha optado pela ditadura, a sociedade, pelo golpe militar, ou por que a repressão legal não bastou às autoridades entre 1964 e 1985, e como, evidentemente não basta agora.
Já em 4 de abril de 1935, precedeu a instauração da ditadura varguista, a aprovação pelo Estado de uma Lei de Segurança Nacional que definia os crimes contra a ordem política e social. “Sua principal finalidade era transferir para uma legislação especial os crimes contra a segurança do Estado, submetendo-os a um regime mais rigoroso, com o abandono das garantias processuais”, nos conta a Fundação que ora leva o nome de Getúlio Vargas. Em 1937, a criação do “Tribunal de Segurança Nacional” inaugurou um tipo de colaboração civil-militar na aplicação da legislação “de exceção”, ou seja, da legislação arbitrária que deveria servir à “Guerra interna”, em nome da “segurança do Estado”; todas nomenclaturas oficiais para repressão civil. À época, como mostra o já citado Carlos Fico, uma pessoa acusada passou a ter que provar inocência, em um contexto no qual as denúncias anônimas e os relatórios policiais sem provas poderiam levar à condenação. Em 1945, após o fim do Estado Novo, a Lei foi mantida nas Constituições brasileiras tornando-se a base de legitimação da ditadura em 1967.
Ainda assim, a maioria dos acusados nos processos por crimes políticos durante a ditadura não ocorreram por participação em ação armada contra o governo. Muito mais recorrente era a acusação por crimes de associação ou opinião, combinados às campanhas de desqualificação pessoal e de marginalização de gente considerada fora do padrão moral imposto, sobretudo, gays, lésbicas e filhos e filhas de comunistas, “herdeiros do mal”. Já dizia a filósofa Hannah Arendt que a radicalização está relacionada não apenas à violência física e explícita, mas à potencialização ou extinção daquilo que torna o homem Homem, daquilo que lhe permite autonomia: o pensar, a espontaneidade, a liberdade humana. A radicalização “está sempre relacionada à dignidade humana, à pessoa jurídica, mas também à pessoa moral”, como, por exemplo, aconteceu com “os prisioneiros judeus obrigados pelos nazistas a fazer escolhas entre alternativas criminosas” como incinerar ou ordenar vagões cheios de judeus para as câmaras de gás.
Esse pacto civil-militar iniciado na década de 30 e aperfeiçoado durante a ditadura, com tudo o que ele implica para a formação técnica e psicológica dos agentes da repressão, não se rompe magicamente com a formalização da democracia em 1985, nem com a nova Constituição em 1988. A violência no trato com a sociedade se mantém institucionalizada naquilo que naturalmente chamamos hoje de “entulho autoritário”, exemplificado pela permanência de dispositivos como o Ato de Disposição Constitucional Transitório (ADCT) 23, que dispõe sobre a realocação dos censores, personagens simbólicos da ditadura, em outros cargos da Polícia Federal do novo Estado Democrático.
Além disso, o cientista social Ruy Mauro Marini, ainda no ano de promulgação da Carta Magna, denunciava como o próprio processo eleitoral de que resultou a Constituinte havia cerceado a possibilidade de uma autêntica representação popular, ao não contemplar a eleição de candidatos avulsos, propostos pelas organizações sociais e de classe e pela cidadania em geral, em benefício do sistema partidário artificialmente imposto pela ditadura. E continua: “A conjuntura muito particular na qual se realizaram as eleições de 1986 – signadas pelo Plano Cruzado – teria contribuído por sua vez, para deformar a configuração da representação política na Constituinte, ao conferir esmagadora maioria ao PMDB - no governo, desde o ano anterior, mediante eleições indiretas”. Assim, apesar de um ou outro lampejo de independência, a Constituinte se fez dentro do quadro institucional surgido em 1964, isto é, sob a pressão de um executivo centralizador e a das Forças Armadas. Hoje, soma-se a isso, o fato de que entre os mais de cem dispositivos não regulamentados desta Constituição estão o piso salarial nacional para professores e agentes de saúde da rede pública determinados apenas em emendas constitucionais.
Institucionalizada, mas também internalizada pelos seus agentes e naturalizada pela sociedade, a violência continuou imperando absoluta no trato com as classes mais pobres da população, onde as leis ou se calam, ou calam a sociedade, ou simplesmente não existem. Como já está claro, a prática de tortura não se devia a “excessos” de subalternos, mas era determinada pelo alto comando militar e pelo escalão presidencial ditatorial, tal como continua acontecendo, com a importante diferença, ao que parece, de que a mentalidade policial brasileira nos anos 60 e 70 - muito semelhante àquela levada a cabo pelos executores nazistas três décadas antes, de que a humilhação, o sofrimento e a morte das suas vítimas era estimulada pelo cumprimento nacionalista de seus deveres, quase como um esforço ético - talvez, mas só talvez, faça menos sentido hoje. À impunidade, corporativismo e gosto pelo exercício da autoridade, característicos das instituições militares, fundiu-se o desprezo ou o nojo demonstrados por muitos setores sociais diante de quem vive ou convive com o “submundo”, além dos baixos salários dos policiais militares, e a precária formação em termos de educação formal dispensada e exigida destes.
No conto de Clarice Lispector, sobre a morte de Mineirinho, a escritora dá vida a uma ideia mais antiga, presente em outros textos seus, de que não há o direito de punir, mas apenas poder de punir: o Estado pune porque é mais forte que os homens, assim como a natureza da representação do crime na mente humana é o que há de mais instável e relativo, já que a punição existe para defender as instituições, como uma necessidade destas pra se manter no poder. O trecho é grande, mas vale à pena até com o fôlego suspenso:
“Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. [...] Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade. Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso - nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato. O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno”.
Controvérsia
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