De volta à 1920 |
Marsílea Gombata
Quando foi elaborado, em 1941, o Código Penal brasileiro encontrava um Brasil muito diferente do atual: as mulheres nem de longe representavam os 45,4% da população economicamente ativa do País, o divórcio estava a 36 anos de ser previsto em lei, o que hoje são organizações criminosas e associações internacionais eram chamadas de bandos (inspirados em Lampião), e o tráfico de drogas não gerava monopólios ou redes de tráfico internacionais.
A sociedade mudou. O debate também. O foco hoje é sobre o casamento gay e a legalização das drogas, pontos inimagináveis há 72 anos. Mas, em vez de promover uma reforma condizente com a realidade atual, o que se vê é um combate a reformas progressistas antes mesmo de o novo código nascer.
Enquanto o vizinho Uruguai busca, a passos largos, um Estado progressista que dê soluções para problemas crônicos, com a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez, a legalização da maconha (com o Estado controlando a produção e venda), o Brasil parece caminhar na direção oposta. A proposta da Comissão de Reforma do Código Penal, composta por 16 juristas há dois anos para a elaboração do PLS 236/2012, retrocedeu antes de ser votada nas comissões e plenário do Senado.
Seu relator, o senador Pedro Taques (PDT-MT), limou em seu relatório os pontos mais progressistas (e polêmicos) que o texto proposto pelos juristas continha. Enquanto a comissão propunha que o aborto fosse permitido até a 12ª semana de gestação, o senador manteve a permissão apenas em casos de estupros ou anencefalia. No lugar do cumprimento de um sexto da pena para a progressão de regime, foi pedido pelo parlamentar a necessidade de o réu primário cumprir um quarto para passar do fechado para o semiaberto ou o aberto. Em vez de descriminalizar uma pequena quantidade de drogas que configure uso pessoal, Taques insistiu que, neste caso, o usuário passe por um processo e cumpra penas alternativas.
Diferentemente da proposta dos juristas, ainda, a eutanásia voltou a ser considerada uma violação da lei pelo relator, que também propôs que a pena mínima de homicídio passe de seis para oito anos, incluiu a corrupção no rol dos crimes hediondos e propôs a tipificação de novos crimes, como o de terrorismo.
"Nosso trabalho sofreu uma cirurgia para enfeiá-lo. Ao contrário de uma operação reparadora foi feita uma destruidora”, observa o advogado criminalista Técio Lins e Silva, que fez parte do corpo responsável pela reforma na legislação. "O projeto foi mutilado. Como um animal que é levado para ser castrado, retiraram dele todo o vigor para domesticá-lo.” Para o advogado Eduardo Baker, da ONG Justiça Global, o parecer do senador preocupa, uma vez que "em vez de medidas desencarceradoras, investe em mais prisão, mais punição e tempo de pena”.
"É preocupante atender a essa demanda da sociedade por mais punição e não levar em conta as consequências disso para o sistema prisional”, lembra Baker sobre a população carcerária de quase 600 mil presos no Brasil. "Além disso, transformar um crime em hediondo não significa que ele vai ocorrer menos. Ter mais crimes hediondos, que não preveem progressão de regime, é uma forma de inchar ainda mais o cárcere, que é um espaço de produção de violência e tortura e não de socialização.”
Pressão. Apesar de o senador argumentar que seu parecer é norteado pela "proteção da vida como bem jurídico” e dizer que o Código está "adaptado à realidade histórica na qual vivemos”, há quem diga que Taques vem sendo pressionado por entidades da sociedade civil – como a Associação Pró-Vida e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – e por parlamentares conservadores e religiosos da chamada "bancada da família”.
"Sempre há soldados de plantão contra temas que representam avanços inexoráveis ao progresso”, protesta Lins e Silva. "Temos aí um retrocesso: o Código Penal, que era da década de 1940, parece estar voltando para 1920. Não esperava que começasse assim. Não nos primeiros 15 minutos do primeiro tempo.”
Depois de receber as emendas parlamentares, o projeto de reforma do Código Penal deve ir, no fim de outubro, para votação na Comissão de Cidadania e Justiça no Senado, antes de seguir para plenário.
Adital
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