Lúcio Flávio Pinto
Ter muitos livros, e tê-los caoticamente, é ruim. Nem mesmo é garantia de muita leitura e farto conhecimento. A biblioteca do filósofo Emanuel Kant tinha apenas 300 livros, todos anotados, lidos e – o que é a sublime atividade intelectual – relidos. A releitura é que fixa a ideia alheia e dispara a concepção própria, o pensamento autônomo e criativo. Um acervo exagerado de livros pode ser mais sinal de patologia do que de fecundidade.
A monstruosa massa de papel, porém, oferece compensações. Talvez pequenas, mas vívidas. Dia desses recuperei de um Himalaia livresco o pequeno volume das Poesias completas de Cruz e Sousa. Publicação das Edições de Ouro, em formato de livro de bolso, 229 páginas (as registradas; há mais 10 sem registro, porque referentes à propaganda da própria editora, num rigor profissional em falta no mercado atual, muito dado às manipulações). A capa é gráfica, despojada, simples, marca das Edições de Ouro para baratear o volume.
Nunca tive tempo para uma pesquisa sobre a editora, apesar de tanta curiosidade sobre sua atividade, que acompanhei desde cedo. Quando comecei a comprar livros, ali pelos 11/12 anos, um dos meus alvos preferidos eram justamente os livros de bolso das Edições de Ouro. Comprei dezenas e dezenas deles, dos que estavam ao alcance do meu bolso. Os preços eram definidos conforme uma classificação particular referida a ouro. Do mais barato ao mais caro: selo, estrela, copa, coroa, leão e palma, ao menos no ano em que as poesias de Cruz e Sousa foram publicadas.
Nesse mesmo 1965, as Edições de Ouro tinham em Belém um revendedor, na Padre Eutíquio (não tenho certeza se era a Livraria Vitória ou a Contemporânea, contíguas de quarteirão), dos 35 pontos de venda espalhados por 15 Estados. Acho que nenhuma livraria ou editora possui rede igual atualmente.
Só na coleção de literatura brasileira e portuguesa, as Edições de Ouro já somavam 45 volumes, sendo nove de José de Alencar e sete de Machado de Assis. Embora os livros fossem em papel de qualidade inferior e apenas colados (o que fazia as folhas soltarem logo), o trabalho editorial era correto e o conteúdo, valioso.
A edição de Cruz e Sousa foi “rigorosamente revisada” e contou com introdução de Tasso da Silveira (uma das melhores introduções que li foi a de Lívio Xavier para O Príncipe, de Maquiavel, curta na extensão, mas – ou por isso mesmo – antológica). Os escolhidos para essas tarefas costumam ser autodidatas, amantes do tema ou do autor, numa fase em que os acadêmicos ainda eram exceção. E escreviam muito bem, ao alcance do leitor, e capazes de motivá-lo a encarar aquele volume e os outros que viessem.
Garrafas vazias
Comprei esse livro um ano antes de começar no jornalismo profissional. Uma das minhas iniciações, além-redação, foi proporcionada por dois gráficos: Osvaldo Ferreira, chefe da clicheria, e Wilson, da impressão. Pegaram-me num sábado à tarde e me levaram para a estreia numa sessão de bebedeira.
Como eu era um “foca” bem novinho, de 16 anos, lá pelas tantas me pediram para recitar um verso. Ataquei de “Canção do bêbedo”, que tinha decorado. Quando cheguei na penúltima estrofe (“Boca abismada de vinho,/ Olhos de pranto a correr,/ Bendito seja o carinho/ Que já te faça morrer!”), foi uma choradeira etílica.
Foi perplexidade mútua. Eu não sabia como Augusto dos Anjos era popular – e particularmente entre os gráficos. E os dois gráficos jamais podiam supor que o moleque conhecesse Augusto dos Anjos. Nossa amizade foi selada naquela decadente pensão alegre da zona do meretrício. Depois que as lágrimas secaram, como também as garrafas, me levantei e, aos tropeções, fui embora. Eu me tornara realmente um jornalista.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)
Cidadão do Mundo
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